segunda-feira, 25 de julho de 2022

A zanga cresce

 



OPINIÃO

A zanga cresce

 

Se o “mau viver” cresce, em termos materiais e “espirituais”, estamos mesmo muito tramados.

 

José Pacheco Pereira

23 de Julho de 2022, 0:05

https://www.publico.pt/2022/07/23/opiniao/opiniao/zanga-cresce-2014741

 

Há várias razões por que não se deve escrever sobre temas como este, a começar porque li o Dr. Freud e há certas coisas em que este discurso é inútil. Primeiro, porque é demasiado impressionista, demasiado psicologista, demasiado preso a “estados de alma”, tudo coisas de que costumo fugir a sete pés. São matérias difíceis de colocar numa perspectiva histórica, são difíceis de colocar em qualquer contexto, abundam as percepções subjectivas e pessoais, não tem métrica, nem existe qualquer instrumento que meça a zanga, um zangómetro. O risco da superficialidade e da generalização é enorme. E no entanto…

 

Numa sociedade em que uma associação de estudantes reivindica psicólogos porque os novos exames são difíceis e geram muita “tensão”, e em que tudo é impregnado de “ansiedade”, que é o grande mercado de trabalho da Ordem dos Psicólogos, a julgar pela montra em que se escreve, na variante do português chamado inclusivo, “eu sinto-me ansios@”. A mesma Ordem que não teve problemas em ter psicólogos a participar em experiências com ratinhos humanos como eram (e não sei se são, porque deixei de ver) os Big Brother originais. Adiante.

 

Não é preciso ir mais longe do que ir às ruas de Lisboa, onde uma parte substancial do trânsito não segue qualquer regra perante a indiferença geral e a fúria dos outros. Trotinetas, bicicletas, TVDEs, param e passam por todo lado, não respeitam sinais nem sentidos obrigatórios e os automobilistas buzinam com fúria ao mais pequeno impedimento ou atraso, de condutores presos aos telemóveis, que respondem com berros e gestos obscenos. Pode-se aprender com a ciência dos taxistas? Sobre a zanga e a fúria pode.

 


Depois de uma pandemia, de uma guerra convencional no centro da Europa, de incêndios incontroláveis por todo o mundo, não me admira a zanga. Podia ser tristeza e depressão, também é, mas a zanga é outra coisa. É mais perigosa

 

Chegadas a casa, no defeso do futebol, as pessoas têm televisões monotemáticas, com as imagens “fortes” que dão audiências, seja da guerra da Ucrânia, seja dos incêndios. Uma, duas, três, o que for preciso até aparecerem outras imagens do mesmo tipo para se esquecer as primeiras. A logomaquia do comentário é apenas a moldura sonora do drama em directo. Dias inteiros de “breaking news” não “consciencializam” ninguém, muito menos informam, mas deixam o rastro de um mundo cruel onde não há esperança, adormecem a razão e alimentam a irritação. Depois de uma pandemia, de uma guerra convencional no centro da Europa, de incêndios incontroláveis por todo o mundo, não me admira a zanga. Podia ser tristeza e depressão, também é, mas a zanga é outra coisa. É mais perigosa.

 

Os antídotos habituais e culturais, “civilizacionais”, a moderação, a civilidade que antes se chamava “boa educação”, desaparecem em sociedades em que a maioria dos adultos viveram toda a vida dominados por um princípio lúdico e de prazer, e que, com o avanço das contrariedades, reagem com depressão, torpor e fúria. Muitas discussões revelam como o fim do mundo pacífico e relativamente fácil e prazenteiro em que a Europa viveu nas últimas décadas suscita egoísmo e fúria. Já na pandemia chorava-se baba e ranho porque não se podia ir às discotecas à noite, como agora se receia que o aumento dos preços ponha em causa a solidariedade com a Ucrânia, porque sofrer é com eles e não connosco.

 

Nestas condições, a violência da zanga cresce por todo o lado no quotidiano das pessoas comuns e há uma razão por que o populismo do Correio da Manhã retrata melhor a sociedade tal como ela é do que o elitismo do PÚBLICO, mas ambos exercem efeitos nefastos sobre a democracia. E arrisco-me nestes terrenos porque o que verdadeiramente me interessa é o “estado” da democracia, cuja fragilidade vem de ser uma escolha e não uma inevitabilidade. E a zanga não é boa conselheira, até porque o populismo é muito mais eficaz e o elitismo a forma menos capaz de o travar. A zanga está por todo o lado, na radicalização política e no pântano, na destruição da conversa democrática, na arregimentação tribal, no desperdício dos meios pela corrupção, pelo mau governo, pela chantagem dos poderosos, pelo crescimento da ignorância agressiva nas redes sociais a pretexto do igualitarismo, pelas novas censuras, pela substituição da democracia pela sua irmã infame, a demagogia.

 

Claro que eu, no meu bom, velho e ultrapassado marxismo, penso que em primeiro lugar a zanga cresce porque as pessoas vivem pior, e, segundo, porque não têm esperança de que possam vir a viver melhor. No primeiro, a “luta de classes” ajuda. No segundo, nada ajuda. O segundo factor é que é mais importante, porque é dinâmico, é dos dias de hoje, até porque viver mal é talvez a experiência mais comum que por aí existe e não tem novidade nenhuma. A falta de esperança, que é do domínio cultural, é que é mais perigosa para a democracia.

 

Mas, se eu deixar, em termos freudianos, que o Id cresça, e mate o Ego, e o Super-Ego, eu não dou qualquer oportunidade para essa janela precária que é a democracia e liberdade. Eu sei bem que no combate final é o Id que ganha, mas pode ser que a gente adie esse combate, entretendo o animal, e vá vivendo razoavelmente algumas gerações, e, como sou incréu, nesse intervalo milhões de homens passam a sua vida na terra melhor do que muitos mais milhões no passado. Mas se o “mau viver” cresce, em termos materiais e “espirituais”, estamos mesmo muito tramados.

 

O autor é colunista do PÚBLICO





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