OPINIÃO
A zanga cresce
Se o “mau viver” cresce, em termos materiais e
“espirituais”, estamos mesmo muito tramados.
José Pacheco
Pereira
23 de Julho de
2022, 0:05
https://www.publico.pt/2022/07/23/opiniao/opiniao/zanga-cresce-2014741
Há várias razões
por que não se deve escrever sobre temas como este, a começar porque li o Dr.
Freud e há certas coisas em que este discurso é inútil. Primeiro, porque é
demasiado impressionista, demasiado psicologista, demasiado preso a “estados de
alma”, tudo coisas de que costumo fugir a sete pés. São matérias difíceis de
colocar numa perspectiva histórica, são difíceis de colocar em qualquer
contexto, abundam as percepções subjectivas e pessoais, não tem métrica, nem
existe qualquer instrumento que meça a zanga, um zangómetro. O risco da
superficialidade e da generalização é enorme. E no entanto…
Numa sociedade em
que uma associação de estudantes reivindica psicólogos porque os novos exames
são difíceis e geram muita “tensão”, e em que tudo é impregnado de “ansiedade”,
que é o grande mercado de trabalho da Ordem dos Psicólogos, a julgar pela
montra em que se escreve, na variante do português chamado inclusivo, “eu
sinto-me ansios@”. A mesma Ordem que não teve problemas em ter psicólogos a
participar em experiências com ratinhos humanos como eram (e não sei se são,
porque deixei de ver) os Big Brother originais. Adiante.
Não é preciso ir
mais longe do que ir às ruas de Lisboa, onde uma parte substancial do trânsito
não segue qualquer regra perante a indiferença geral e a fúria dos outros.
Trotinetas, bicicletas, TVDEs, param e passam por todo lado, não respeitam
sinais nem sentidos obrigatórios e os automobilistas buzinam com fúria ao mais
pequeno impedimento ou atraso, de condutores presos aos telemóveis, que
respondem com berros e gestos obscenos. Pode-se aprender com a ciência dos
taxistas? Sobre a zanga e a fúria pode.
Depois de uma pandemia, de uma guerra convencional no
centro da Europa, de incêndios incontroláveis por todo o mundo, não me admira a
zanga. Podia ser tristeza e depressão, também é, mas a zanga é outra coisa. É
mais perigosa
Chegadas a casa,
no defeso do futebol, as pessoas têm televisões monotemáticas, com as imagens
“fortes” que dão audiências, seja da guerra da Ucrânia, seja dos incêndios.
Uma, duas, três, o que for preciso até aparecerem outras imagens do mesmo tipo
para se esquecer as primeiras. A logomaquia do comentário é apenas a moldura
sonora do drama em directo. Dias inteiros de “breaking news” não
“consciencializam” ninguém, muito menos informam, mas deixam o rastro de um
mundo cruel onde não há esperança, adormecem a razão e alimentam a irritação.
Depois de uma pandemia, de uma guerra convencional no centro da Europa, de
incêndios incontroláveis por todo o mundo, não me admira a zanga. Podia ser
tristeza e depressão, também é, mas a zanga é outra coisa. É mais perigosa.
Os antídotos
habituais e culturais, “civilizacionais”, a moderação, a civilidade que antes
se chamava “boa educação”, desaparecem em sociedades em que a maioria dos
adultos viveram toda a vida dominados por um princípio lúdico e de prazer, e
que, com o avanço das contrariedades, reagem com depressão, torpor e fúria.
Muitas discussões revelam como o fim do mundo pacífico e relativamente fácil e
prazenteiro em que a Europa viveu nas últimas décadas suscita egoísmo e fúria.
Já na pandemia chorava-se baba e ranho porque não se podia ir às discotecas à
noite, como agora se receia que o aumento dos preços ponha em causa a
solidariedade com a Ucrânia, porque sofrer é com eles e não connosco.
Nestas condições, a violência da zanga cresce por todo o lado no quotidiano das pessoas comuns e há uma razão por que o populismo do Correio da Manhã retrata melhor a sociedade tal como ela é do que o elitismo do PÚBLICO, mas ambos exercem efeitos nefastos sobre a democracia. E arrisco-me nestes terrenos porque o que verdadeiramente me interessa é o “estado” da democracia, cuja fragilidade vem de ser uma escolha e não uma inevitabilidade. E a zanga não é boa conselheira, até porque o populismo é muito mais eficaz e o elitismo a forma menos capaz de o travar. A zanga está por todo o lado, na radicalização política e no pântano, na destruição da conversa democrática, na arregimentação tribal, no desperdício dos meios pela corrupção, pelo mau governo, pela chantagem dos poderosos, pelo crescimento da ignorância agressiva nas redes sociais a pretexto do igualitarismo, pelas novas censuras, pela substituição da democracia pela sua irmã infame, a demagogia.
Claro que eu, no
meu bom, velho e ultrapassado marxismo, penso que em primeiro lugar a zanga
cresce porque as pessoas vivem pior, e, segundo, porque não têm esperança de
que possam vir a viver melhor. No primeiro, a “luta de classes” ajuda. No
segundo, nada ajuda. O segundo factor é que é mais importante, porque é dinâmico,
é dos dias de hoje, até porque viver mal é talvez a experiência mais comum que
por aí existe e não tem novidade nenhuma. A falta de esperança, que é do
domínio cultural, é que é mais perigosa para a democracia.
Mas, se eu
deixar, em termos freudianos, que o Id cresça, e mate o Ego, e o Super-Ego, eu
não dou qualquer oportunidade para essa janela precária que é a democracia e
liberdade. Eu sei bem que no combate final é o Id que ganha, mas pode ser que a
gente adie esse combate, entretendo o animal, e vá vivendo razoavelmente
algumas gerações, e, como sou incréu, nesse intervalo milhões de homens passam
a sua vida na terra melhor do que muitos mais milhões no passado. Mas se o “mau
viver” cresce, em termos materiais e “espirituais”, estamos mesmo muito tramados.
O autor é
colunista do PÚBLICO
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