Lojas com História é uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa para preservar o comércio tradicional da cidade, mas nem com esse selo A Minhota evitou o encerramento.
Era um verdadeiro centro comercial , tudo o que imagina
podia comprar aqui"
Nas ruas de Santa Marta e de São José fecham lojas todos
os dias, culpa da pandemia. Mas há anos que o comércio tradicional está em
morte lenta: restaurantes, prontos-a-vestir, sapatarias, talhos, peixarias,
antiquários, ourivesarias, cabeleireiros e tantos outros.
Céu Neves
31 Outubro 2021 —
00:22
As ruas de Santa
Marta e São José, em Lisboa, já foram um centro comercial com porta para a rua.
Havia de tudo à venda, contam os comerciantes dessa altura. Com a pandemia - o
teletrabalho e a diminuição de turistas -, e a mudança do perfil de residentes,
as duas artérias perderam comércio e muita da tradição. Fecham lojas todos os
dias, os que resistem tentam adaptar-se à nova realidade. Também há novos
negócios mas que não compensam os extintos.
Santa Marta e São
José são duas das artérias interiores que ligam o Marquês de Pombal aos
Restauradores, paralelas à Avenida da Liberdade. Começam no cruzamento com a do
Conde Redondo e terminam no Ascensor do Lavra. Prédios antigos, um ou outro
restaurado, outros em construção, espaços entaipados, lojas encerradas ou a
anunciar o fim.
Mudou depois para
artigos de decoração, já era assim quando entrou a Rosário, em 1988.
"Vendíamos artigos de cozinha, loiças, vidros, panelas e utensílios
domésticos que não se encontram facilmente." Há quatro anos fizeram obras
e adaptaram-se ao incremento do turismo. Passaram a vender souvenirs, como
panos e artigos típicos, recordações de Lisboa e artigos de cortiça. "Tudo
produto nacional, só se não houver é que procuramos lá fora."
É esta
diversidade que os tem mantido, mesmo durante os meses de confinamento.
"Aqui, até carvão se fazia, o cliente vinha de longe para vir às ruas de
Santa Marta e de São José. Tudo isso desapareceu e nós resistimos porque o que
vendemos não tem concorrência, ninguém abre uma loja para vender panelas",
defende Agostinho.
Entra uma
cliente, entusiasma-se com um copo de alumínio, acha graça à forma de filhós,
compra um pequeno grelhador. "É suficiente, vivo sozinha", justifica
Rosa Branca, 60 anos, que vive no Lumiar. "Sou transplantada do Hospital
de Santa Marta , em 2010. E faço toda a minha vida aqui, gosto do comércio
tradicional, não gosto de grandes superfícies."
Lojas que eram
tradição
Agostinho vai à
porta da sua loja e começa a enumerar o comércio que desapareceu e cujos
lugares alcança só com o olhar: o Ferrador, cujo prédio vai para obras, a
Taberna de Santa Marta, o Atelier de Beleza, a casa dos relógios cujo dono
faleceu, o alfaiate, a casa de chá, a loja de eletrodomésticos, o talho que deu
lugar a congelados e, depois, a florista, outro talho que fechou, a ourivesaria
que agora é restaurante, a peixaria que desapareceu, vários prontos-a-vestir
falidos, a sapataria em liquidação, o prédio onde era a Cerimónia que ardeu e
está a ser reconstruído, o estofador que deixou a arte, prédios devolutos... E
tantos antiquários que faziam da zona um centro do ramo.
O DN não
conseguiu encontrar dados sobre o número de espaços que encerraram e abriram na
última década junto dos organismos oficiais. A Junta de Freguesia de Santo
António, que inclui as duas ruas, remete para a Câmara Municipal de Lisboa, que
é quem licencia os negócios - eles apenas são responsáveis pela ocupação da via
pública e desde 2015. Tinham, então, 46 estabelecimentos com ocupação da via
pública em Santa Marta e São José - atualmente têm 59. Refira-se que, com a
pandemia, muitos restaurantes abriram esplanadas, logo não é indicativo, o
melhor, aconselham, é ir à zona com alguém que a conheça e contar.
Longe estão os
anos de 2018 e 2019, os melhores segundo Agostinho Gonçalves. Espera recuperar
parte, agora que o país, e o mundo, voltou a abrir-se em resultado da vacinação
contra o SARS-CoV-2. Está a tentar que o seu espaço seja considerado uma loja
com história, um símbolo de diferenciação e que lhe traria maior divulgação.
As lojas com
história são uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa. "Uma das suas
prioridades é trabalhar com o comércio tradicional e histórico da cidade no
sentido de, por um lado, preservar e salvaguardar os estabelecimentos e o seu
património material, histórico e cultural e, por outro lado, dinamizar e
reativar a atividade comercial, essencial para a sua existência",
justifica a autarquia, salientando ser uma iniciativa pioneira no país. Mas
ostentar este selo não é uma garantia de clientela. A Leitaria e Manteigaria A
Minhota, na Rua de São José, era uma loja com história e não resistiu.
Morador e turista
diferente
Carlos Santos,
dono do Minimercado Garrafeira, no número 40 de Santa Marta, tem uma explicação
para a ausência de clientela. "As empresas e os escritórios têm estado
fechados, as pessoas não vêm trabalhar. É consequência da pandemia, mas havia
muita coisa que já tinha fechado. Daqui até ao Hospital de Santa Marta não há
comércio. O maior problema é que não há moradores. E eram eles que faziam
funcionar o comércio local. As pessoas que vêm para aqui morar não compram à
gente, chegam tarde e compram online. Os turistas também mudaram, eram famílias
que vinham para o alojamento local e davam uma certa gracinha à loja. Agora,
são jovens e querem ir para o Bairro Alto. Até a própria restauração teve uma
grande quebra".
Explora há 40
anos o minimercado que já se chamou Mercearia Bijou de Santa Marta. Vende um
pouco de tudo, "vai dando para a despesa". A sorte é que a
"renda não é cara". Explica que a sua mais-valia é a qualidade e ter
produtos que não se encontram nos estabelecimentos asiáticos do género.
Os estabelecimentos
tradicionais têm dado lugar a espaços explorados por cidadãos de Nepal,
Bangladesh e Paquistão, não só mercearias como restaurantes. E há um ou outro
negócio que abriu para ficar, mesmo que outros do mesmo ramo tenham morrido. É
o caso da DegAtelier, arranjos e confeção de roupa, que Elisabete Santos, 45
anos, abriu há nove anos. "Temos uma boa clientela, tivemos problemas no
início da pandemia mas estabilizou. Temos tanto trabalho que precisamos de mais
funcionários e não encontramos."
Veio do Brasil há
16 anos, onde já trabalhava no ramo. O seu braço direito é a filha, Liliana
Leite, 26. Tem clientes individuais e muitas lojas da Avenida que a ela
recorrem. Sobretudo para arranjos de roupa, mas também confeção. Completam a
equipa um alfaiate do Bangladesh e um costureiro do Uzbequistão.
Mais à frente
está a Casa das Conchas, na família há mais de 60 anos, conta Ângelo Fernandes,
53, casado com uma das herdeiras. Foi uma colchoaria, depois o sogro começou a
vender móveis por catálogo, mais tarde a fazer artigos em casquinha, até se
transformar num antiquário. "Com o 25 de AbrilMercearia Bijou de Santa
Marta., muita gente vendeu o recheio das casas e ele começou a comprar e a
vender", explica. Desde 1974.
"Estas ruas
chegaram a ter 12 antiquários, agora somos três", lamenta Ângelo. Eles
próprios tiveram de se adaptar, sublinhando que é a mulher, Cristina Fernandes,
a grande mentora. Atualmente, é uma loja vintage, bricabraque, compra usado e
recicla. "Começámos a recuperar os móveis, depois fizemos workshops para
as pessoas aprenderem a reciclar e, agora, vendemos os materiais. Tivemos de
nos adaptar à pandemia."
Recorda os tempos
em que trocavam experiências e peças entre antiquários, as empresas ali
instaladas. Por exemplo, os CTT que empregavam 430 pessoas.
Há um ano e meio
veio a pandemia e foi o golpe fatal. A Casa das Conchas aguentou: "Não nos
podemos queixar, tivemos de nos reinventar. Fechámos três meses no primeiro
confinamento, mudámos a oficina para casa e passámos a vender online. No
segundo, fechámos a loja, trabalhávamos cá dentro e entregávamos em casa. Fazem
muita falta os turistas, era um cliente certo e acabou. Agora é malta nova, que
não tem dinheiro."
Manuel Ferreira,
64 anos, sente o mesmo problema na faturação. Está à porta do Cantinho S. José,
eleito uma das 25 tasquinhas de Lisboa. Toma conta da casa com dois cunhados -
antes da pandemia tinham sete funcionários. O espaço é de 1956 e está nas mãos
da família há 30 anos. Servem almoços e jantares, comida típica portuguesa,
alguns dos pratos verdadeiras raridades.
"Sobrevivemos
mas infelizmente o bolso está a esvaziar, está uma desgraça. Chegámos a servir
120/130 almoços, agora são 20, às poucas pessoas que vêm aos escritórios. À
noite são turistas, mas é malta nova, com pouco dinheiro." Enumera os restaurantes
vizinhos que fecharam, vários até chegar ao cruzamento com a Rua das Pretas.
Abriram outros, mais modernos, mas alguns também já fecharam.
ceuneves@dn.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário