sexta-feira, 3 de março de 2017

O Trump de falinhas mansas é o mais perigoso


O Trump de falinhas mansas é o mais perigoso
Com Trump a tentar adormecer-nos e os líderes europeus a não quererem acordar-nos, é a próxima crise que me inquieta.

Rui Tavares
3 de Março de 2017, 7:06

Houve dois discursos importantes esta semana, e nenhum me deixou mais tranquilo.

Numa encenação cuidada e noticiada à exaustão, Trump foi ao Congresso e fez tudo aquilo de que os media e o público americano gostam: ler tudo a partir do teleponto, dar tempo aos aplausos no fim das frases e parar a meio do discurso para uma homenagem patriótica a um veterano de guerra. De repente, o mundo parecia ter entrado de novo nos carris. Os comentadores já podiam proclamar à vontade que o Presidente era um homem de estado, que Trump era capaz de aprender a comportar-se e que, se lhe ao menos lhe déssemos uma hipótese, talvez ele fosse capaz de mudar.

Só que, como é evidente, este não é um Trump mudado. Nem esta foi a primeira vez que o agora Presidente dos EUA decidiu disciplinar-se por razões táticas. O mesmo aconteceu em pelo menos duas fases diferentes no passado recente — após a sua vitória nas primárias republicanas e no último terço da sua campanha eleitoral. Estas mudanças de velocidade não correspondem a mudanças de personalidade. Quando se sentiu sob ataque, Trump voltou a fazer campanha para os seus fiéis, perante os quais usou toda a sua retórica vociferante e paranóica. Depois de escorado nesse apoio da sua base, dirigiu-se ao Congresso e ao mundo para, como bom sedutor que é, tirar o máximo proveito de um breve momento de falinhas mansas. A sua personalidade bastante inteligente e altamente manipuladora tem perfeita consciência de quando pode avançar e quando deve parar.

E é nestes momentos — em que tenta descansar alguns dos seus aliados e hipnotizar as suas vítimas — que Trump é mais perigoso.

Isto leva-nos ao segundo discurso, pronunciado pelo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, perante o Parlamento Europeu reunido no seu hemiciclo de Bruxelas, para apresentar um Livro Branco sobre o futuro da Europa até 2025. Não costumando ser reconhecido por isso, Juncker é também um bom taticista. Sabendo que poderia sempre ser criticado por ter uma visão do futuro da Europa que fosse demasiado modesta ou demasiado ambiciosa, decidiu-se por apresentar cinco cenários diferentes para o futuro da Europa.

A opção foi inteligente. Assim, perante qualquer interlocutor, Juncker pode sempre dizer: “esta é a minha visão para a Europa; se não gostar, tenho mais quatro diferentes”.

O único cenário que ele recusou no seu discurso foi o de a União Europeia se remeter a ser apenas um mercado único. O grande problema, quando se lê o Livro Branco da Comissão Europeia, é que não se consegue escapar à sensação de que os cinco cenários propostos são na verdade cinco versões de um mercado mais ou menos integrado. Não há nada sobre a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais e a sua aplicação na ordem interna dos estados-membros. Nada sobre democratização da UE. Nada sobre a defesa do estado de direito no interior da União. E relativamente pouco sobre o papel global da Europa. O Livro Branco é um exercício interessante para a era pré-Trump num momento em que os europeus não podem confiar em Trump.

Ora, a União Europeia deve habituar-se à ideia de que a eleição de Trump já mudou o mundo de uma forma tão radical que agora existem quatro atores globais essenciais, de que — com os EUA, a China e Rússia — a UE faz parte. Perante essa nova realidade é bastante inútil ficar, como de costume, a discutir a resolução da última crise que passou.


Com Trump a tentar adormecer-nos e os líderes europeus a não quererem acordar-nos, é a próxima crise que me inquieta.

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