Jornalista acusa o editor Manuel Alberto Valente de
assédio sexual
SOCIEDADE
01.05.2021 às
13h50
A jornalista e
escritora Joana Emídio Marques relata uma investida indesejada num jantar de
trabalho que foi para ela uma "humilhação". Manuel Alberto Valente,
editor, tradutor e poeta, é o primeiro nome revelado publicamente num movimento
de #metoo nacional
O caso veio
agitar o meio literário e jornalístico português. É a primeira denúncia em
Portugal de assédio sexual contra uma figura pública revelada em “on” e com um
nome, escalando assim o movimento #metoo nacional que tem vindo a crescer nas
últimas semanas.
A jornalista e
escritora Joana Emídio Marques acusou ontem publicamente o reputado editor,
tradutor e poeta Manuel Alberto Valente de a ter assediado em 2012. Manuel
Alberto Valente, 75 anos, é uma figura de referência da literatura em Portugal,
cujo mercado ajudou a redesenhar nas últimas quatro décadas, foi diretor
editorial da Porto Editora entre 2008 e 2020, de onde saiu reformado, colaborou
com diversos meios de comunicação social (atualmente escreve no Expresso) e é
casado com a também conhecida editora Maria do Rosário Pedreira.
“Gostava que os
jornais falassem ( também) dos casos de assédio que se passam dentro das
redações, nos meios onde, supostamente, reina a liberdade e o humanismo como o meio
literário e, se querem imitar as americanas, digam os nomes desses homens,
porque a coragem é cousa que não tem limites”, começa a jornalista que
trabalhou no Diário de Notícias e colabora com o Observador, onde escreve
sobretudo sobre literatura.
“No meio
literário, por exemplo, toda a gente sabe que Manoel de Oliveira assediava e
perseguia as suas jovens colaboradoras. Que Saramago, David Mourão Ferreira,
Urbano Tavares Rodrigues assediavam mulheres e não sabemos sobre quantas usaram
o seu poder para obter favores sexuais. Uma questão geracional? Não. Uma
questão de percepção da mulher como objecto e não como gente. Deixem-me contar
uma história, houve outras, mas esta é particularmente ilustrativa, porque
muitas mulheres partilharam comigo ter sofrido situações idênticas com a mesma
pessoa, mas não só estão caladas como me vão repudiar por estar a contar esta
história. Lamento. Lamento-as”, prossegue.
O alegado
assédio, tal como o descreve num longo post de Facebook, que títula como “mais
um dia normal”, conta-o com todos os detalhes. Revela uma investida imprópria
que sentiu como uma “humilhação”, num jantar de trabalho no âmbito de uma
história que estava a investigar, depois de uma série de mensagens
“pseudo-sexutoras” trocadas no Facebook.
«No ano de 2012
começou a correr a notícia de que a Porto editora ia comprar a mais importante
chancela de poesia a Assírio e Alvim, cujo catálogo tinha nomes como Herberto
Helder. Para quem está fora do meio literário isto pode não significar nada.
Para quem trabalha no meio era uma cacha (um furo jornalístico) e eu queria-o
para mim. Era “amiga”, no facebook, do editor e homem forte da Porto Editora,
que já então me enviava mensagens pseudo-sexutoras (não é erro, inventei esta
palavra). Aceitei jantar com ele para falarmos da compra da Assírio. Não por
acaso ele marcou o jantar num fim de semana em que a sua mulher estava num
festival literário no México. Mas esta ligação eu só fiz muito depois. Fomos a
um restaurante (caro) ali ao fundo da rua do Alecrim, um que serve sushi. Ele,
cavalheiro-me a ajudar-me a despir o casaco, a puxar a cadeira para eu me
sentar. Estava eu a ficar bem impressionada, quando ele tira do bolso uma
caixinha de comprimidos que espalhou na palma da mão e aproximou do meu rosto e
lançou: estás a ver? Não tenho aqui nenhum comprido azul. Eu, que acabara de
conhecer o homem e não queria parecer burra, forcei o meu cérebro a tentar
entender a “piada” mas não consegui. “Oh, soltou ele ” não te faças de sonsa”.
Assim, logo a tratar-me por tu e a insultar-me de forma velada. Nesse momento
eu entendi ( se nasces mulher aprendes cedo a descodificar alusões sexuais): o
homem estava a mostrar-me, a dizer-me que não tomava Viagra. E aquilo que era
para mim um jantar de trabalho tornou-se logo ali uma humilhação. Não me lembro
do que falamos, para além de coisas como as dívidas e a falência iminente da
Assírio, entre piadinhas aqui e ali ainda ouvi “pensava que fosses uma mulher
totalmente frivola, mas és esperta”. Mesmo assim, nada de concreto consegui
saber sobre o negócio da Porto Editora e a única coisa que eu realmente trouxe
deste encontro foi um “diz que disse”. Nada consistente para a minha notícia.
Perks of the job. Por essa altura já tinham sido medidas as forças. Ele já
tinha percebido que não me ia levar para a cama e eu já tinha percebido que sem
isso não havia estória. Só história. Como fazia sempre, tinha deixado o meu
carro estacionado na Rodrigues Sampaio, junto à porta do DN. Ele ofereceu-se
para me dar boleia até lá. Aceitei. Erro meu. Quando parou o carro e ia dar-lhe
os tradicionais 2 beijos de despedida, o Manuel Alberto Valente ainda achou por
bem começar a tentar beijar-me na boca, com uma descontração que mostrava que
ele deve ter feito isto centenas de vezes. Eu afastei-me e sai do carro. Em
silêncio chamei-o de velho porco, em silêncio humilhado chorei até Setubal.»
Após diversas
tentativas de contacto, Manuel Alberto Valente não esteve disponível para
comentar esta denúncia.
Joana Emídio
Marques diz que apenas contou a história a alguns amigos e ao assessor de
imprensa da Porto Editora, mas nunca chegou a apresentar queixa.
“Se fores mulher,
ser tratada sem vergonha nem respeito, é apenas mais um dia normal na tua vida.
O Manuel Alberto Valente acabou no final do ano passado, por ser afastado da
Porto Editora. Hoje em dia é cronista do Expresso. Colega do Henrique Raposo
que veio a público pedir às mulheres que digam nomes. Aqui está um nome, caro
Henrique. E tenho mais. Mas talvez não dê jeito ouvir”, conclui Joana no post
que leva já milhares de “gostos”, muitas mensagens de apoio e muitas centenas
de partilhas.
Será o primeiro
de vários outros nomes denunciados, será esperar para ver.
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