OPINIÃO
Eufóricos, desiludidos e zangados: a desunião do Chega
O militante do Chega é “moderado”, “sensato” e “pessoa de
bem”. O problema está nos “outros” militantes, que são “fanáticos”,
“extremistas”, “antidemocráticos” e “radicais”. Deus e democracia são os temas
da discórdia.
Bárbara Reis
30 de Maio de
2021, 23:11
Três dias a ouvir
delegados do III Congresso do Chega, que acabou este domingo em Coimbra,
mostram o que os militantes têm em comum: estão eufóricos com a promessa de
poder e zangados com a esquerda, o Governo, Portugal e o mundo. Em quase tudo o
resto, a desunião do Chega é evidente.
Se há coisa que
não existe no partido criado por André Venture é um uniforme. Vêem-se mulheres
com ar beato e ar pós-punk, colares de pérolas e cortes de cabelo gótico,
cabeças rapadas, cabelos azuis, boinas militares e kipás judaicas, vestidos
espampanantes e fatos cinzentos, ténis e saltos-agulha, looks de menino-bem, de
operário fabril e ultramusculados, John Travoltas tardios e nerds desajeitados,
urbanos, suburbanos e rurais.
Na forma, o Chega
é ecléctico. A amostra dos 400 delegados de Coimbra reflecte o padrão de voto
nas presidenciais de Janeiro, nas quais Ventura foi “o candidato dos
intermédios”: teve mais votos de pessoas com escolaridade intermédia e de
idade intermédia, teve votos de todos os escalões de rendimento e de todas as
regiões do país distribuídos por igual (sondagem do CESOP-Universidade
Católica Portuguesa feita para a RTP à boca das urnas a 24 de Janeiro).
As divisões não
têm a ver com a diversidade. A desunião do Chega está na forma como os
militantes olham para si e para os outros. O militante do Chega é “moderado”,
“sensato”, “normal” e “uma pessoa de bem”. É o auto-retrato que fazem. O
problema está nos outros militantes. Os “outros” são pessoas “sem maneiras”,
“agressivas”, “fanáticas”, “extremistas”, “antidemocráticas”, “radicais”,
“autoritárias” e representam “alas perigosas”. Num movimento circular, todos
parecem sentir-se a lutar contra uma “facção” ameaçadora.
Nos discursos e
moções de Coimbra houve referências constantes à “desunião” do partido, às
“lutas internas”, à “conflitualidade”, às “divisões”, “disputas”, “quezílias
internas”, “pedras na engrenagem”, “dissidentes” e “problemas de disciplina”.
Fernanda Marques Lopes, presidente do conselho de jurisdição do Chega nos
últimos dois anos, subiu ao palco e disse que nos 700 dias de vida do órgão recebeu
718 queixas. Nuno Afonso, afastado por Ventura do cargo de vice-presidente,
disse — também no palco — que tinha sido “apunhalado”. A sua despromoção foi
uma surpresa para muitos e ficou a ideia de que também para o próprio. Afonso
está ao lado de Ventura há 20 anos, são amigos de infância e ele é o militante
n.º 2.
O Chega nasceu
como partido de protesto e dois anos depois assume que a “única obsessão é
governar Portugal” — Ventura disse-o em Coimbra nos seus três discursos. O
parto está a ser difícil. O Chega acolhe o que para já são tribos
incompatíveis: encalhados de máquinas partidárias que esperam ter agora maior
sucesso; desiludidos das estruturas concelhias — o nível mais baixo da pirâmide
partidária — do PS, PSD e CDS; militantes de vários partidos, de esquerda e de
direita; ultra-religiosos. E acolhe também uma outra tribo: as “pessoas comuns”
que nunca trabalharam nem militaram em nenhum partido e que vêm de todos os
lados, incluíndo o PCP e o Bloco de Esquerda.
Desta multidão
complexa emergem duas divergências: Deus e democracia. Foram as mais ruidosas e
as mais discutidas no palco e nos corredores do congresso de Coimbra. Muitos
militantes criticam o facto de as estruturas concelhias continuarem a ser
nomeadas e não eleitas, e houve uma moção a acusar a direcção nacional de
violar os estatutos ao manter um militante em dois órgãos dirigentes — Rui
Paulo Sousa, do círculo íntimo de Ventura.
Um dos momentos
mais tensos foi causado pela moção que propôs a “clarificação ideológica do
Chega”. O militante subiu ao palco e defendeu que o partido “não é, nem quer
ser um partido da democracia cristã”, nem da “direita descaracterizada e
mansa”, e disse que as “pessoas comuns” estão “cansadas” de serem “manipuladas”
pela “direita cristã”, pelos “lobbies do Opus Dei” e pelo “centro-direita que
se deita com Deus e acorda com o Diabo”. Quem falava assim? Luís Alves, um
engenheiro ambiental de Sintra que em jovem foi militante da Juventude
Centrista da Amadora e se desfiliou do CDS em 1998. Mal acabou, Rafael Santos,
do antigo Portugal Pró-Vida, foi ao palco e berrou repetidamente “calúnia!”. Ao
PÚBLICO, Alves explicou: “Escrevi esta moção para defender o partido. Isto é um
partido de pessoas comuns que querem o bem comum. Não vamos deixar os fanáticos
religiosos tomarem conta do Chega.” Alves é um moderado? No Chega, dir-se-á que
sim. Noutro lugar, será visto como extrema-direita.
A religião é um
tema fracturante. No Chega, Deus é omnipresente de forma taxativa. Ventura
concorda com a separação entre religião e partido, mas descreve o sucesso
eleitoral como “milagre” e diz que foi “escolhido por Deus” para liderar o
Chega. Alinhado com o amigo português, Matteo Salvini, líder da Liga por
Salvini — o convidado-estrela da festa —, fez um breve discurso em italiano.
As duas mensagens
que deixou aos delegados do Chega parecem ter sido escolhidas de forma
cirúrgica. Uma sobre Deus, outra sobre desunião. Salvini quer ir a Fátima,
porque é cristão e “a Itália é cristã!”. Os delegados gostaram. A sala
levantou-se em peso e gritou “Salvini!”, “Salvini!”. A outra teve um efeito
ambíguo. “Sei que tiveram um congresso combativo, que uns ganharam e outros
perderam. Quero dizer-vos, de militante para militante: o adversário não está
aqui, o adversário está lá fora.” A ideia era o leão da extrema-direita
europeia ajudar Ventura, o novo protegido. Calçando os sapatos de mestre,
sugeriu a fórmula do sucesso: agregar populistas, conservadores e identitários.
A receita para a ascensão do Chega. Ou para a queda.
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