EDITORIAL
Párias por efeito do complexo da pequenez
Tanto como a mentira da bolha de segurança, a
subserviência ante a UEFA, a corrosão da autoridade do Estado ou o descontrolo
e a indecisão, o complexo de pequenez face à final europeia causa um dano
grave. Quem for rico e vier de fora fica imune à situação de calamidade.
Manuel Carvalho
30 de Maio de
2021, 21:30
https://www.publico.pt/2021/05/30/sociedade/editorial/parias-efeito-complexo-pequenez-1964661
Os britânicos
voltaram a gozar de privilégios no Porto que se julgavam extintos há séculos.
Como outrora, tiveram por estes dias direito a leis exclusivas e a estatutos de
excepção. Puderam fazer o que os indígenas não podem, como reunir-se aos
magotes com cerveja na mão, assistir a um jogo de futebol ao vivo, deambular em
hordas pela rua e, aqui e a ali, dar largas ao mau feitio estimulado pelo
álcool. Tinham prometido que nada disto aconteceria, que eles viriam e iriam
numa bolha de segurança, que teriam os movimentos condicionados por “fanzones”,
que haveria a garantia de que todos tinham feito testes e seriam acompanhados.
Era mentira.
Os jovens que
jogaram a final do campeonato de râguebi acreditaram que a recusa da DGS da
presença de 500 espectadores se baseava na aplicação de um critério universal,
como manda o Estado de direito. Os jovens que noite sim, noite não são
convidados pela polícia a desamparar os miradouros, também. Os donos dos
restaurantes que correm com os clientes que se atrasam na sobremesa à hora do
fecho, também. Os adeptos do futebol que sonharam com uma última jornada com
duas ou três mil pessoas nos estádios, também. Quem se sujeita ao cumprimento
da lei não pode aceitar que o Estado o trate como um pária no seu próprio país.
Foi isso que
aconteceu. O que os portugueses não podem fazer outros podem. Aquilo que os
portugueses têm de cumprir os ingleses não têm. O estado de calamidade só
vincula os nacionais. As medidas de protecção, os avisos, os apelos, as
matrizes existem para que o vírus não se transmita de uns para outros, mas essa
hipótese não existe com adeptos do Chelsea ou do City. Tanto como a mentira da
bolha de segurança, a subserviência ante a UEFA, a corrosão da autoridade do
Estado ou o descontrolo e indecisão que este domingo assinalámos neste espaço,
o complexo da pequenez face à final europeia causa um dano grave. Quem for rico
e vier de fora fica imune à situação de calamidade.
Portugal precisa
de turismo e para o ter precisa de mostrar ao mundo um certo ar de normalidade.
Uma final da Champions serviria para esse fim, sem dúvida. Mas há um equilíbrio
obrigatório entre os eventuais ganhos de imagem lá fora e o insulto à dignidade
dos portugueses cá dentro. Um país decente não ajusta nem suspende as regras em
vigor. Nem para os adeptos do Sporting, como aconteceu no final do campeonato
nacional, nem para estrangeiros. Todos são iguais perante a lei. O Governo
deixou essa regra basilar em pousio. Deslumbrou-se com a final e cometeu um
erro grave.
tp.ocilbup@ohlavrac.leunam
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