segunda-feira, 31 de maio de 2021

Párias por efeito do complexo da pequenez

 



EDITORIAL

Párias por efeito do complexo da pequenez

 

Tanto como a mentira da bolha de segurança, a subserviência ante a UEFA, a corrosão da autoridade do Estado ou o descontrolo e a indecisão, o complexo de pequenez face à final europeia causa um dano grave. Quem for rico e vier de fora fica imune à situação de calamidade.

 

Manuel Carvalho

30 de Maio de 2021, 21:30

https://www.publico.pt/2021/05/30/sociedade/editorial/parias-efeito-complexo-pequenez-1964661

 

Os britânicos voltaram a gozar de privilégios no Porto que se julgavam extintos há séculos. Como outrora, tiveram por estes dias direito a leis exclusivas e a estatutos de excepção. Puderam fazer o que os indígenas não podem, como reunir-se aos magotes com cerveja na mão, assistir a um jogo de futebol ao vivo, deambular em hordas pela rua e, aqui e a ali, dar largas ao mau feitio estimulado pelo álcool. Tinham prometido que nada disto aconteceria, que eles viriam e iriam numa bolha de segurança, que teriam os movimentos condicionados por “fanzones”, que haveria a garantia de que todos tinham feito testes e seriam acompanhados. Era mentira.

 

Os jovens que jogaram a final do campeonato de râguebi acreditaram que a recusa da DGS da presença de 500 espectadores se baseava na aplicação de um critério universal, como manda o Estado de direito. Os jovens que noite sim, noite não são convidados pela polícia a desamparar os miradouros, também. Os donos dos restaurantes que correm com os clientes que se atrasam na sobremesa à hora do fecho, também. Os adeptos do futebol que sonharam com uma última jornada com duas ou três mil pessoas nos estádios, também. Quem se sujeita ao cumprimento da lei não pode aceitar que o Estado o trate como um pária no seu próprio país.

 

Foi isso que aconteceu. O que os portugueses não podem fazer outros podem. Aquilo que os portugueses têm de cumprir os ingleses não têm. O estado de calamidade só vincula os nacionais. As medidas de protecção, os avisos, os apelos, as matrizes existem para que o vírus não se transmita de uns para outros, mas essa hipótese não existe com adeptos do Chelsea ou do City. Tanto como a mentira da bolha de segurança, a subserviência ante a UEFA, a corrosão da autoridade do Estado ou o descontrolo e indecisão que este domingo assinalámos neste espaço, o complexo da pequenez face à final europeia causa um dano grave. Quem for rico e vier de fora fica imune à situação de calamidade.

 

Portugal precisa de turismo e para o ter precisa de mostrar ao mundo um certo ar de normalidade. Uma final da Champions serviria para esse fim, sem dúvida. Mas há um equilíbrio obrigatório entre os eventuais ganhos de imagem lá fora e o insulto à dignidade dos portugueses cá dentro. Um país decente não ajusta nem suspende as regras em vigor. Nem para os adeptos do Sporting, como aconteceu no final do campeonato nacional, nem para estrangeiros. Todos são iguais perante a lei. O Governo deixou essa regra basilar em pousio. Deslumbrou-se com a final e cometeu um erro grave. 

 

tp.ocilbup@ohlavrac.leunam

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