OPINIÃO
A aliança entre os censores e os que assinam de cruz
Ser enganado é um custo da liberdade, mas é mil vezes
melhor do que dar ao Estado o poder de decidir o que eu devo ou não conhecer,
pela censura do que é informação e do que é “desinformação”.
José Pacheco
Pereira
29 de Maio de
2021, 0:10
https://www.publico.pt/2021/05/29/opiniao/opiniao/alianca-censores-assinam-cruz-1964490
Existe um
considerável desprezo entre os políticos e os que seguem a política – uma
minoria muito longe do interesse geral mínimo que é a regra – sobre as matérias
que não dão espectáculo mediático. Podem ser mais que importantes, mas, se não
contribuem para a festa dos títulos e para a jigajoga das opiniões tribais,
ninguém lhes liga. Dá-se então por regra um efeito de invisibilidade, por
detrás do qual se escondem dois tipos de pessoas: as que têm um interesse
próprio ou colectivo numa determinada questão e querem ver se ninguém dá por
ela, e os que assinam de cruz, os da intenção e os da inércia.
Um exemplo é o
Acordo Ortográfico, o maior atentado à língua portuguesa das últimas décadas,
que todos já perceberam ter dado resultados contrários aos pretendidos – a
começar no Brasil, o seu principal pretexto –, é um desastre diplomático e, ao
ser imposto à força e ilegalmente, abastarda e degrada a língua nas escolas e
na burocracia do Estado. Porque é que não se acaba com essa aberração? Porque
uns não querem, e outros não querem saber.
O mesmo se está
nestes dias a passar com a aprovação de uma Carta de Direitos Fundamentais na
Era Digital, um verdadeiro nome em linguagem orwelliana, porque de “direitos
fundamentais” não tem nada e é uma legitimação de todas as censuras. Pode-se
dizer que nunca vai ser aplicada, que é inócua de tão vaga, genérica e mal
feita que está, mas é só esperar até um dia, ou até quando servir a algum poder
ou a algum interesse. Tudo é mau, a atribuição de actividades censórias à
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, o apelo à bufaria, a inexistência
de medidas para efectivamente combater o cibercrime sob controlo judicial e não
por uma “entidade” de nomeação partidária, o palavreado politicamente correcto
que é hoje norma do “politiquês”. (Diga-se de passagem que eu sempre defendi a
extinção da ERC, há já muito tempo.)
Como é que esta
Carta passou? Proposta pelo PS, os primeiros censores, votada a favor pelo PSD,
CDS, BE, PAN, Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues, os segundos censores,
e com a abstenção do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal, a que benevolamente
chamo assinantes de cruz. Depois, o Presidente da República também assinou de
cruz, embora não seja impossível que a lei seja inconstitucional. A Europa
assinou do lado dos censores, dado que tem muita responsabilidade nestas coisas
que têm a sua matriz. A comunicação social, salvo raras excepções, ficou muda e
calada, sem qualquer sombra do sobressalto que qualquer irrelevante “estrume”
lhes suscita.
Ou seja, toda a
gente. É também por coisas como esta, que são demasiado sérias, que não há
verdadeira crítica ao Governo. E é também porque não há liberais onde devia
haver. Liberais de liberdade, da causa da liberdade. Os do nome abstiveram-se.
Tudo isto sob a
capa de um “direito à protecção contra a desinformação”, em si mesmo uma coisa
bizarra, que pensa que numa sociedade democrática os cidadãos podem ser
“protegidos” contra uma forma peculiar de “narrativas”, um termo na moda, sem
limitar a liberdade de informação. Não estamos a falar de crimes, como a calúnia
e a difamação, que esses são crimes que, como disse já mais de mil vezes, devem
obedecer à regra de que o “que é crime cá fora é crime lá dentro” e mereceriam
sem dúvida um esforço legislativo para dar à justiça leis que entrem em conta
com a nova realidade das redes sociais, mas de “desinformação”, que é
suficientemente ampla para nela caber tudo.
Para se perceber
o espírito censório da proposta original do PS, veja-se uma das versões da lei
onde se explica o que é “desinformação”:
Toda a narrativa
comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter
vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja
susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos
políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a
bens públicos.
As sociedades não são imunes à mentira, à crença e à
crendice, mas querer instituir por lei critérios de conformidade que nada têm a
ver com a democracia e a liberdade de expressão é absurdo. A censura
protege-vos, era o grande lema da censura dos 48 anos de ditadura
“Toda a narrativa
comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter
vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja
susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos
políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a
bens públicos.”
A parte final
sobre a “ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de
elaboração de políticas públicas e a bens públicos” serviria para impedir e
punir qualquer crítica ao Governo.
Numa sociedade
democrática, onde há liberdade de expressão, não se pode controlar e muito
menos punir através de uma qualquer ERC “informações falsas, imprecisas,
enganadoras, concebidas, apresentadas e promovidas para causar dano público ou
obter lucro”. Esta fórmula aplica-se, por exemplo, à publicidade e, por maioria
de razão, a essa forma de publicidade que é a propaganda política. O que é, por
exemplo, o “dano público”? E quem o julga? Associemos ainda o apelo à denúncia,
cuja eficácia tende a ser maior exactamente nos meios que se pretendem
controlar, nas redes sociais, que são em si mesmo o terreno privilegiado para a
bufaria. A proposta de atribuição de “selos de qualidade” às publicações que o
Estado considera verdadeiras seria ridícula, se não fosse perigosa.
As sociedades não
são imunes à mentira, à crença e à crendice, ou, pior ainda, a interpretações
diferentes dos mesmos factos, que um lado considera mentiras e o outro
verdades, seja com má-fé seja com boa-fé, mas querer instituir por lei
critérios de conformidade que nada têm a ver com a democracia e a liberdade de
expressão é absurdo. Eu acho que certos discursos sobre a ditadura do Estado
Novo proferidos no MEL são falsos e enganadores; e os negacionistas acham que a
covid é uma “gripezinha” usada pelo PS para limitar as liberdades – tudo
asneiras que deveriam arrepiar qualquer pessoa, mas defendo a liberdade plena
de dizerem o que quiserem. Ser enganado é um custo da liberdade, mas é mil
vezes melhor do que dar ao Estado o poder de decidir o que eu devo ou não
conhecer, pela censura do que é informação e do que é “desinformação”. “A
censura protege-vos” era o grande lema da censura dos 48 anos de ditadura.
Historiador
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