EUROPA
Salvini anti-sistema ou Salvini europeísta. Qual deles
vai falar ao Chega?
No domingo, o líder do maior partido da extrema-direita
italiana vai discursar no Congresso do Chega. Quer ajudar Ventura, mas também
reforçar o seu poder na Liga e na Europa. A dúvida é sobre qual das peles vai
vestir em Coimbra.
Bárbara Reis
29 de Maio de
2021, 6:07
O processo de
internacionalização do Chega dá este domingo mais um passo. Quatro meses após
Marine Le Pen ter viajado até Lisboa para estar ao lado de André Ventura no
início da campanha para as presidenciais portuguesas, agora é a vez de Matteo
Salvini discursar no congresso do Chega, em Coimbra.
Salvini e Le Pen
são dois dos mais fortes líderes da extrema-direita europeia — a Liga por
Salvini (ex-Liga do Norte) e o Rassemblement National (ex-Frente Nacional). No
Parlamento Europeu (PE), pertencem ao grupo Identidade e Democracia (ID), criado
em 2019 e que tem 76 eurodeputados de dez países. Esta é a família europeia do
Chega. Em Julho de 2020, Ventura formalizou a adesão ao Partido da Identidade e
Democracia (PID), criado em 2014, com muito em comum com o grupo do PE.
Em dois anos,
Ventura passou de desconhecido a protegido da elite da extrema-direita
europeia. No primeiro congresso do Chega, em Algés, em 2019, não houve
convidados estrangeiros. Um ano depois, no segundo congresso, em Évora, houve
quatro: os eurodeputados Gerolf Annemans, belga e presidente do PID; Thierry
Mariani, ex-ministro de Nicolas Sarkozy e hoje na UN de Le Pen; Nicolas Bay, da
UN; e Georg Mayer, do Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ). Agora, no
terceiro congresso, o Chega sobe a parada: Ludovit Goga, do Nós Somos Família,
da Eslováquia; o eurodeputado Jean-François Jalkh, veterano da UN e conhecido
por posições anti-semitas e de negação do Holocausto; Martin Helme, líder do
Partido Popular Conservador da Estónia (Ekre), ex-eurodeputado e actual
ministro das Finanças, e Salvini.
“As ligações
internacionais entre os populistas da direita radical estão a aumentar em
quantidade e qualidade”, escrevem Duncan McDonnell e Annika Werner em
International Populism - The Radical Right in the European Parliament (Oxford
University Press, 2019). Parece uma contradição os partidos nacionalistas serem
internacionalistas, notam diplomatas e politólogos ouvidos pelo PÚBLICO. Os
partidos nacionalistas têm um interesse nacional — não pelos outros — e, em
teoria, não cooperam. Hoje é diferente. Os líderes da extrema-direita europeia
têm as agendas cheias com encontros a dois, três ou dez, visitam-se
regularmente, enviam mensagens em vídeos e trocam elogios em cartas serem lidas
em público, publicam fotografias juntos nas redes sociais, criam e recriam
alianças, frentes pan-europeias e vão aos congressos uns dos outros.
Sonho de Le Pen,
25 anos depois
“Hoje os
populistas da direita radical na Europa não se sentem sozinhos”, escrevem os
investigadores. “São partidos cada vez mais desinibidos em relação ao que têm
em comum e mostram-no com orgulho. Além disso, vêem a sua influência aumentar
não só a nível nacional, mas também europeu e para além da Europa.” São
partidos que juntam “populismo internacional” (“o povo” é baseado na nação) e
“populismo transnacional” (“o povo” é continental). A prova, dizem McDonnell e
Werner, é o facto de Le Pen, Salvini e Geert Wilders, líder do Partido da
Liberdade holandês, também de extrema-direita, serem proeminentes nos seus
países, mas também fora deles. “São talvez mais internacionais do que muitos
dos líderes dos partidos mainstream.”
Como exemplos,
citam os trabalhos de Paul-Jasper Dittrich, que fez um estudo comparado das
redes sociais dos populistas e descobriu que 40% dos likes de Le Pen no Facebook
são de pessoas que estão fora da França, e de Caterina Froio e Bharath Ganesh,
que analisaram o discurso da extrema-direita nas redes sociais e concluíram que
Le Pen “tem uma audiência genuinamente transnacional no Twitter”. “O mesmo é
verdade para Wilders”, escrevem McDonnell e Werner, “que começou a desenvolver
um perfil populista global há muitos anos” e discursa na Europa, mas também na
Austrália e EUA.
O “movimento
global” da ascensão do populismo era um sonho de Jean-Marie Le Pen, pai da
actual líder da UN. Em 1997, Le Pen-pai defendia que “o fenómeno nacionalista
não pode ficar restringido a uma ilha — a cooperação é essencial”. Mas esbarrou
nas diferenças entre os partidos e não conseguiu criar uma plataforma comum.
As eleições
europeias de 2014 foram o momento da viragem. Na actual “quarta vaga” do
populismo (como lhe chama Cas Mudde), os partidos radicais de direita já não
são “párias esporádicos e marginais”, mas partidos fortes, “normalizados” e, às
vezes, no Governo. Reorganizaram-se e criaram o seu grupo no PE, reagrupando
partidos dispersos por três grupos — Europa da Nações e Liberdade, Europa da
Liberdade e Democracia Directa e Reformistas e Conservadores Europeus.
Mas as divisões
são grandes. Ainda há pouco Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, recebeu
em Budapeste Salvini e o primeiro-ministro da Polónia, Mateusz Morawiecki e, no
fim, chegada a hora do “renascimento dos valores tradicionais europeus”,
anunciaram que vão criar uma “nova aliança europeia”. O trio já se encontrou
outras vezes e é sabido que, quando Orbán está, Le Pen não está e vice-versa.
Numa entrevista de 2019, o líder húngaro disse secamente: “Não tenho nada que
ver com a senhora Le Pen. Nada.”
Já Salvini dá-se
com todos. Em Coimbra vai fazer por Ventura o que, no início da sua ascensão,
outros fizeram por si. Em Novembro de 2013, Le Pen e Wilders anunciaram na Haia
que iam criar um novo grupo político no PE — demorou seis anos — e, um mês
depois, Wilders, Annemans (o mesmo que foi ao congresso do Chega de Évora),
Heinz-Christian Strache, então líder do FPÖ, e Ludovic de Danne, conselheiro
de Le Pen, foram ao congresso da Liga do Norte em Turim. Mas Salvini vai a Coimbra
também a pensar no seu futuro.
Italianos “per
bene”
Agora que “é um
leão da extrema-direita”, diz ao PÚBLICO Gianluca Passarelli, professor de
Ciências Políticas da Universidade de Sapienza, em Roma, “Salvini vai ao
congresso do Chega, porque quer manter o controlo do seu partido e manter a
posição de líder da extrema-direita europeia ajuda”. “A Liga está a descer
muito nas intenções de voto. Salvini está a lutar fora pelo seu futuro dentro.
Estas visitas internacionais servem para mostrar que ele é o líder”, diz
Passarelli, co-autor, com Dario Tuorto, do livro La Lega di Salvini. Estrema
destra di governo (2018, Il Mulino). “Daqui a um ano há eleições e ele tem de
mostrar: ‘Vejam, o partido sou eu.’”
A relação que a
extrema-direita populista tem com a Rússia e o Presidente Vladimir Putin é uma
das clivagens do grupo. Há partidos contra a mais leve aproximação ao regime
russo — como os Democratas Suecos. Outros fazem o oposto. Em 2016, Strache, do
FPÖ, assinou um acordo de cooperação de cinco anos com a Rússia Unida, o
partido de Putin, e trabalhos de investigação jornalística revelaram
contribuições de milhões de euros da Rússia para o partido de Le Pen e a
intensidade de viagens a Moscovo de Salvini.
Em comum, todos
estes partidos têm o discurso anti-União Europeia, anti-imigração e
pró-tradição cristã. Muitos já não podem dizer que são “anti-sistema” porque
fazem parte do sistema. Salvini é um deles: foi vice-primeiro-ministro e
ministro do Interior, foi deputado, eurodeputado e agora é senador. Desde que
entrou no primeiro Governo — há 27 anos — a Liga esteve no poder mais de metade
do tempo, sublinha Passarelli. “Salvini é pró-sistema!” Desde Fevereiro, a Liga
tem três ministros, um vice-ministro e oito secretários de Estado no Governo de
Mario Draghi, o mais célebre europeísta da Itália. Salvini explicou: não queria
“ficar à janela” enquanto se discutia a “bazuca” italiana.
Em Coimbra,
escolha a pele que escolher, será fácil fazer eco, apesar de todas as
diferenças. A começar pela retórica: Ventura fala dos “portugueses de bem” e
Salvini fala dos “italiani per bene”.
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