Sudoeste Alentejano: receita para o desastre
A situação no concelho de Odemira resulta de um problema
de base: a negligência dos responsáveis institucionais que não acompanham, não
fiscalizam, nem controlam.
Nuno Carvalho
Mestre em
Engenharia do Ambiente, dedicou a sua vida a trabalhar nas áreas do planeamento
do território, conservação da natureza e comunicação de ciência. É actualmente
responsável por um projecto agrícola, educativo e de investigação no concelho
de Aljezur.
19 de Maio de
2021, 7:30
https://www.publico.pt/2021/05/19/p3/cronica/sudoeste-alentejano-receita-desastre-1962904
Quando em 1988 se
criou a área de Paisagem Protegida e em 1995 se constituía o Parque Natural do
Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) identificava-se a zona litoral
do sudoeste de Portugal como uma das regiões menos adulteradas nos seus
aspectos naturais a nível europeu e estabelecia-se a sua defesa como uma
prioridade nacional. Já em 1997 toda a área do PNSACV é colocada na lista
nacional de sítios e em 1999 é criada a Zona Especial de Protecção da Costa
Sudoeste, integrando a totalidade da área na Rede Natura 2000. Acorda-se então
para a necessidade urgente de preservar e salvaguardar este património natural
e alertando-se já para a interdependência destes valores naturais com as
práticas agrícolas extensivas, tradicionais neste território, reforçando já a
ameaça que as práticas agrícolas intensivas representavam para este território.
Ora, em sobreposição
com parte do PNSACV, está instalado o Perímetro de Rega do Mira (PRM),
estrutura de regadio, construída nos anos 60 e que alimenta a região com água a
partir da barragem de Santa Clara. Uma estrutura baseada em canais abertos de
irrigação por gravidade, distribuídos sobretudo pelo concelho de Odemira e que
despejam a água doce não utilizada directamente no oceano. Estamos então
perante um sistema de regadio desenhado de acordo com a realidade da época, com
enormes desperdícios, desfasado da realidade actual e inadequado para fazer
face a fenómenos actuais, como as alterações climáticas. Todo este perímetro é
gerido pela Associação de Beneficiários do Mira (ABM). Desde 2019, e seguindo a
tendência da região, os níveis de água da barragem de Santa Clara atingem o
chamado “nível morto” obrigando à instalação de bombas, para fazer face às
necessidades do PRM.
Com a criação do
PNSACV, são definidas condicionantes aos vários actores que operam na região
com a ambição de compatibilizar as várias vertentes sociais e económicas com as
ambientais. Vale a pena esclarecer que estes instrumentos de gestão territorial
(Plano de Ordenamento do PNSACV) existem para regulamentar, ordenar e planear a
ocupação dos territórios com vista a compatibilizar e harmonizar as questões
ambientais, sociais e económicas e em simultâneo garantir um desenvolvimento
sustentável. Esta é a função destes instrumentos, e não satisfazer fantasias
ambientalistas ou cassetes ecologistas, como algumas vezes se parece confundir.
Assim, o Estado atribuiu à entidade responsável pela gestão do parque natural –
o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) – uma série de
obrigações que passam, inclusive, pela implementação de um plano de gestão e
monitorização da biodiversidade com as empresas instaladas e a ABM, avaliações
regulares da qualidade dos solos e águas e ainda o controle da aplicação de
fitofármacos. O ICNF fica também responsável pela atribuição de pareceres sobre
o que se implanta no território.
Ora, ocorre que
até aos nossos dias o ICNF nunca conseguiu cumprir com o lhe foi imposto. Dos
vários pareceres que o ICNF atribuiu a projectos agrícolas nos últimos anos,
mostrou-se também incapaz de fazer o devido acompanhamento, não impedindo,
porém, tomadas de posição quase sempre favoráveis. Esta situação chega ao ponto
em que, desde 2011 (pelo menos) que não há informação fidedigna sobre a área
agrícola e o tipo produção dentro do parque. Esta incúria leva então à ruptura
da capacidade do território, onde uma das consequências é a situação de
desrespeito pelos direitos humanos que encontramos actualmente no concelho de
Odemira e já amplamente divulgada. Foi este abandono a que está dotado este
território que justificou as queixas judiciais, a nível nacional e europeu, que
o Movimento Juntos Pelo Sudoeste apresentou.
Com a total
ausência de controlo e fiscalização, o fácil e barato acesso à água, a ausência
de licenciamento (nem numa área protegida a agricultura necessita de
licenciamento para se instalar) e as condições climáticas excelentes para a
produção criam-se as condições ideais para a instalação de empresas ou fundos
de investimento predatórios na região ao longo da última década. Crescem as
produções agrícolas intensivas na região a um ritmo de 200 a 300 hectares anuais,
à revelia da legislação e com a conivência do Estado. Prolifera o esgotamento
dos recursos hídricos, o crescimento do uso de fitofármacos, o recurso a
mão-de-obra imigrante barata em regime de outsourcing. Atendendo sobretudo à
exportação e refugiando-se nas exigências dos compradores e na compra de
certificações atribuídas segundo critérios vagos e com uma verificação no
mínimo suspeita, estas empresas procuram passar uma imagem “verde” que em nada
se coaduna com a realidade.
Com a total
ausência de controlo e fiscalização, o fácil e barato acesso à água, a ausência
de licenciamento (nem numa área protegida a agricultura necessita de
licenciamento para se instalar) e as condições climáticas excelentes para a
produção criam-se as condições ideais para a instalação de empresas ou fundos
de investimento predatórios na região ao longo da última década.
Face a este cenário calamitoso questionamos: A quem serve
este desenvolvimento? Que benefícios justificam o desleixo e o desprezo pelo
interesse público?
A situação no
concelho de Odemira resulta de um problema de base: a negligência dos
responsáveis institucionais que não acompanham, não fiscalizam, nem controlam
tornou este desfecho óbvio que, com a onda pandémica, foi exposto. Não foi por
falta de alertas por parte das comunidades locais e científicas — as
consequências dos danos no território e ambiente estão à vista de todos, com a
destruição de importantes habitats, impactos nos solos e nas águas e
naturalmente com os respectivos impactos sociais e económicos para a região.
Como alerta a comunidade científica nas últimas décadas, quando o território
esgota a sua capacidade, os resultados são graves danos económicos e sociais
que tendencialmente se perpetuam, deixando um lastro para gerações vindouras.
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