INVESTIGAÇÃO
INVESTIGAÇÃO PÚBLICO
Judeus sefarditas. Reparação histórica em Espanha marcada
por processos fraudulentos
Madrid concedeu um prazo de quatro anos para concessão de
nacionalidade a sefarditas que terminou em Dezembro de 2019. Aos candidatos
foram exigidos testes de língua e cultura espanholas.
Paulo Curado
11 de Fevereiro
de 2022, 6:30
A lei espanhola
para reparar as feridas abertas pela expulsão dos judeus sefarditas em 1492,
por decreto dos Reis Católicos (Isabel de Castela e Fernando de Aragão), entrou
em vigor a 1 de Outubro de 2015 e terminou em Outubro de 2019 (Lei 12/2015 de
24 de Junho) – um prazo definido de quatro anos, ao contrário da legislação
portuguesa, que se prolonga indefinidamente no tempo. A bem-intencionada
reparação histórica acabou por ser aproveitada por um número ainda
indeterminado de candidatos (entre as centenas e os milhares) para obterem o
passaporte espanhol com documentação duvidosa.
No final de 2018,
após uma queixa recebida numa embaixada de um país latino-americano, as
autoridades policiais alertaram o Ministério da Justiça para a existência de
uma organização criminosa e possíveis fraudes relacionadas com estes processos
de naturalização. O alerta veio alterar drasticamente a forma de analisar as
solicitações dos requerentes (serão avaliadas todas as que foram apresentadas
dentro do prazo), pressionando os funcionários dos registos a verificarem mais
profundamente os documentos e aumentando exponencialmente o número de recusas,
segundo revelou o jornal El País, a 20 de Agosto de 2021. Em milhares de casos,
constatou-se que os requisitos impostos pela lei não eram cumpridos.
Para concederem a
nacionalidade, as autoridades exigiam, entre outras condições, a comprovação da
condição de judeu sefardita e uma vinculação a Espanha, uma prova para obtenção
do Diploma Espanhol como Língua Estrangeira, nível A2, e outra de Conhecimentos
Constitucionais e Socioculturais de Espanha, ambas realizadas através do
Instituto Cervantes.
Eram também
exigidos um certificado expedido pelo presidente da Comissão Permanente da
Federação das Comunidades Judaicas de Espanha (FCJE), um certificado emitido
pelo representante da comunidade judaica da zona de residência do interessado e
o certificado da autoridade rabínica competente, reconhecida legalmente no país
de origem ou de residência habitual do candidato.
O processo só
podia ser concluído presencialmente em Espanha, perante um notário espanhol, ao
contrário de Portugal, para onde os candidatos podem remeter o processo por
correio ou através de um advogado, sem necessidade de se deslocar ao país. De
acordo com a lei portuguesa, no caso de ser concedida a naturalização é
possível tratar do cartão de cidadão e do passaporte no país de origem e
residência.
No total, de
acordo com dados do Ministério da Justiça foram apresentados 153.767 pedidos de
nacionalidade espanhola, 31.222 dos quais tinham sido concedidos até Outubro de
2019. O México liderou o ranking, com 33.653 processos, seguido pela Colômbia,
com 28.214, a Venezuela, com 22.363.
Acusações de
anti-semitismo
Em resposta ao
maior zelo administrativo na análise da documentação, algumas comunidades
judaicas e escritórios de advogados especializados na atribuição de
nacionalidade acusaram o governo espanhol de anti-semitismo e de alterar os
critérios de aprovação dos processos. Críticas que foram prontamente refutadas
pelo Ministério da Justiça e pela própria FCJE, sublinhando que nada tinha sido
mudado em relação ao previsto na legislação.
O que se
verificou foi uma maior morosidade na análise das candidaturas, muitas das
quais ainda esperam hoje por aprovação. Se nos primeiros anos após a entrada em
vigor da lei os problemas com os processos eram praticamente inexistentes – até
2020, 20.908 petições tinham sido aprovadas e apenas uma rejeitada –, após o
alerta de eventuais fraudes, fontes governamentais admitiram a descoberta de
milhares de candidaturas que não respondiam a todos os requisitos.
Entre as
irregularidades encontradas, verificou-se que tinham sido apresentadas
certidões de comunidades judaicas em países sem vínculo com os requerentes. Em
outros casos, os documentos solicitados foram apresentados num cartório por
procuração, quando a lei exigia que isso fosse feito presencialmente.
Para fiscalizar
com maior detalhe cada processo, o Executivo espanhol reforçou os departamentos
ministeriais responsáveis pela concessão da nacionalidade, que se queixavam de
falta de pessoal, com uma centena de novos funcionários. Os efeitos fizeram-se
sentir, entretanto: na primeira metade de 2021 houve 15.274 naturalizações
concedidas, mas mais de três mil recusadas. A título de comparação, em Portugal
foram reprovados menos de 1% dos pedidos de nacionalidade, até Dezembro de
2021, segundo dados do Ministério da Justiça (Ver texto).
“Acreditamos que
a Justiça não está a examinar os casos com mais cuidado, está simplesmente a
rejeitar os candidatos porque não quer que os sefarditas se tornem cidadãos”,
censurou Sara Koplik, directora do programa de património sefardita da
Federação Judaica do Novo México (FJNM), nos Estados Unidos, citada pelo El
País. Declarações proferidas após cerca de 20 mil certificados terem sido
emitidos por este organismo sem a devida verificação da origem sefardita dos
interessados, segundo fontes policiais revelaram ao jornal espanhol El
Periodico.
As críticas de
Sara Koplik foram apadrinhadas por outros responsáveis de comunidades judaicas
e advogados que trataram destes processos, que continuaram a acusar Madrid de
impor novos critérios, colocando em causa o trabalho das comunidades judaicas e
dos cartórios. Em Julho de 2021, um artigo no jornal americano New York Times
insinuava um comportamento anti-semita do Governo espanhol, com base no
crescente número de recusas de nacionalidade espanhola. Pelo mesmo caminho
seguiu o jornal israelita Ha’aretz semanas depois.
“O trabalho das
comunidades judaicas em todo o mundo está a ser questionado, assim como a fé
pública nos notários. Estão a ser acusados de fraude e não é verdade”, garantiu
ao El País o espanhol Luis Portero, um advogado que participou na discussão do
texto da lei e que organizou mais de 12 mil processos de nacionalidade. Destes,
600 foram recusados.
Já a FCJE, que
tem competência para provar a ascendência de qualquer candidato, rejeitou as
sugestões de anti-semitismo na decisão governamental. “Se os processos não
atendem aos requisitos da lei, não estão bem apresentados ou possuem
documentação incorreta, é normal que sejam negados”, concluiu um porta-voz
deste organismo, esclarecendo também que a concessão de nacionalidade a
sefarditas não está ligada à confissão (religiosa), mas sim à origem
judaico-espanhola, havendo uma maioria de não-judeus que obtiveram o
passaporte.
Mais lapidar é o
advogado espanhol Alberto de Lara Bendahan, que tratou igualmente de processos
de naturalização de descendentes de judeus sefarditas nos últimos anos: “O
procedimento [administrativo] foi uma peneira. Confiavam nos critérios do
tabelião [notário], que era quem avaliava a idoneidade da documentação e o
ministério aprovava-os com leviandade. De repente, perceberam que havia
milhares de processos que tinham certificados de ancestralidade de valor
probatório questionável (…). Tem sido uma oportunidade de negócio muito
lucrativa para advogados, assessores, notários e algumas entidades que se
dedicaram a apoiar os pedidos [de nacionalidade].”
EXCLUSIVO
INVESTIGAÇÃO
Comunidade Israelita do Porto tem lucros milionários com
nacionalidade portuguesa
Advogado Francisco de Almeida Garrett é a figura
proeminente da comunidade judaica portuense. É sobrinho de Maria de Belém, a
proponente da lei que permitiu a atribuição da nacionalidade portuguesa a
judeus sefarditas. Responsáveis da CIP têm lucros privados com o negócio da
cidadania.
Paulo Curado
11 de Fevereiro
de 2022, 6:30
Os gabinetes do
primeiro-ministro, António Costa, e da ministra da Justiça, Francisca Van
Dunem, receberam uma carta de alerta a 20 de Janeiro de 2016. A Comunidade
Israelita do Porto (CIP) advertia para a possibilidade da ancestral Comunidade
Judaica de Belmonte, descrita como “uma comunidade de judeus muito pobres
(sempre foram feirantes e pequenos lojistas) que nunca teve recursos económicos
sequer para contratar um rabino”, recorrer à fraude se autorizada pelo Governo
a certificar descendentes de judeus sefarditas para efeitos de obtenção da
nacionalidade portuguesa.
O aviso deu
resultados, deixando apenas a CIP e a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) com
essa sensível missão. A partir dessa data, e com destaque para a CIP, a
certificação gerou um negócio que ascende a várias dezenas de milhões de euros.
Desde 2015, data da entrada em vigor das alterações à Lei da Nacionalidade, até
ao final do ano passado, a CIP e a CIL certificaram 86.500 pedidos de
nacionalidade, tendo mais de 32 mil sido já concedidos pelo Ministério da
Justiça e estando ainda por analisar algumas dezenas de milhares. Do total de
pedidos, perto de 90% foram instruídos pela comunidade judaica do Porto (76,5
mil), incluindo o do multimilionário Roman Abramovich, amigo pessoal do
Presidente russo, Vladimir Putin, que se tornou cidadão português em Abril de
2021, como foi revelado pelo PÚBLICO a 18 de Dezembro.
Com o presidente
a viver em Israel, a comunidade judaica portuense tem o advogado Francisco de
Almeida Garrett como figura proeminente. É sobrinho da ex-deputada do PS, Maria
de Belém Roseira, proponente das alterações à Lei da Nacionalidade, aprovadas por
unanimidade no Parlamento, em 2013, que permitiram um reparo histórico e sem
termo aos sefarditas expulsos de Portugal a partir do final do século XV. O que
surgia como um gesto de boa vontade e uma justa reparação histórica acabou por
transformar-se num negócio com enormes lucros para a CIP e para elementos da
sua direcção.
Há apenas uma
década, a então modesta comunidade portuense era igualmente qualificada como
uma entidade judaica sem recursos. “Não tinha sequer dinheiro suficiente para
contratar um rabino ou mesmo consertar o telhado da sua sinagoga”, descreveu o
jornal israelita The Jerusalem Post, em Novembro de 2019. “Hoje, esta
congregação ortodoxa de 400 pessoas [seriam apenas 20 em 2012] no norte de
Portugal tem [dinheiro] suficiente para ambos, além de um hotel kosher, um
banho ritual, um cantor [solista da Sinagoga], seguranças e um novo museu”,
concluía a publicação.
A transformação
radical ter-se-á iniciado em 2011, com a chegada à CIP de Francisco de Almeida
Garrett, e, especialmente, com os avultados lucros gerados pela certificação
dos descendentes dos judeus sefarditas. Por cada certificado, a CIP cobra um
emolumento de 250 euros (para além dos 250 euros da taxa da conservatória), o
que resulta em muitos milhões de euros para os cofres deste organismo. Os
números exactos são desconhecidos. A par desta preciosa fonte de rendimento,
alguns elementos da direcção desenvolvem também negócios privados paralelos
igualmente lucrativos relacionados com a nacionalidade dos descendentes dos
sefarditas.
No total, são
sete os elementos que compõem a direcção da CIP: Yigal Ben Zion, presidente;
Isabel Ferreira Lopes, vice-presidente (com funções executivas) e uma outra
vice-presidente de que se desconhece o nome; como vogais tem Francisco de
Almeida Garrett e Gabriel Senderowicz (membro da B'nai B'rith Portugal, uma das
mais antigas organizações mundiais judaicas); Eliran Eliahu Graedje é
secretário e Michael Rothwell é tesoureiro e porta-voz. A comunidade conta
ainda com dois rabis – Daniel Litvak e Joel Zekri.
Francisco de Almeida Garrett tem sido o grande
impulsionador da “nova” CIP, segundo várias fontes contactadas pelo PÚBLICO
para esta investigação. Nascido a 18 de Dezembro de 1969, em Paranhos, no
Porto, o advogado ter-se-á convertido ao judaísmo, numa cerimónia muito
reservada, adoptando o nome de David Ariel.
Filho de Ana Maria Roseira Dias Coelho, irmã de Maria de
Belém Roseira, antiga candidata à Presidência da República – ex-ministra da
Saúde e ex-ministra da Igualdade, nos governos de António Guterres, deputada em
várias legislaturas e que já presidiu ao Partido Socialista –, o advogado, com
vários livros publicados, é casado com Florbela de Almeida Garrett, quadro do
Serviço de Informações e Segurança (SIS).
Contactada pelo PÚBLICO, Maria de Belém admitiu ter “um
sobrinho que integra a CIP”, mas garantiu não saber exactamente em que funções.
“Não articulei nada com ele [Lei de 2013]”, começou por dizer. “Não faço a
mínima ideia que funções tem na comunidade. Mas aquilo que me foi transmitido é
que a avaliação dos processos é feita pelo rabinato”, esclareceu.
“Na altura [2013]
era presidente do PS e entendi que devíamos apresentar uma lei que foi
sustentada por todo o grupo parlamentar e, depois, acompanhado por outras
bancadas e aprovada por unanimidade”, contou, relembrando que a regulamentação
do diploma foi feita já pelo Governo de Passos Coelho (2015).
Pouco tempo
depois da sua chegada à CIP, Francisco de Almeida Garrett viu ser aprovada a
nova legislação sobre a Lei da Nacionalidade, proposta por Maria de Belém, que
permitiu a atribuição da nacionalidade portuguesa por naturalização aos
descendentes de judeus sefarditas que provem laços de pertença a Portugal. Uma
iniciativa que acabou por reforçar a posição do jurista na comunidade judaica
portuense, mantendo ao mesmo tempo uma total discrição para o exterior.
Mais visível tem
sido o papel de Yigal Ben Zion que, apesar de viver em Ra’anana, Israel, viaja
várias vezes para o Porto para assistir a cerimónias oficiais ou para
representar a CIP perante o Estado português, como aconteceu na visita do
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, à sinagoga da comunidade, em
Janeiro de 2019. Ben Zion cresceu na cidade israelita de Kfar Saba, depois de
ter deixado a Turquia. No início de 2017, obteve a nacionalidade portuguesa,
como descendente de sefarditas.
Lucros com
passaportes
É em Israel que
Ben Zion tem os seus negócios e onde lucra com a lei da nacionalidade
portuguesa. É dono da empresa C.N. Immigration Agency, LTD, especializada em
imigração para o Canadá, mas também na cidadania e obtenção do passaporte
português. Em Abril de 2018, participou na Exposição Internacional de Emigração
e Propriedades de Luxo, em Moscovo, com uma palestra intitulada “Imigração para
o Canadá. Oportunidades de residência e cidadania na Europa”.
Na página da
empresa na Internet pode ler-se o comentário de um cliente satisfeito com o
serviço prestado, com o título “Arranjei o meu passaporte português!”. Ami
Cohen relata a sua experiência: “Graças à CN Immigration, consegui receber o
meu passaporte português, que mereço por lei. O procedimento foi
surpreendentemente fácil, e o gerente foi muito simpático!”
No negócio da
nacionalidade portuguesa movem-se igualmente Eliran Eliahu Graedje e o rabino
Joel Zekri. Ambos são sócios com partes iguais na empresa Eliran & Joel,
que presta serviços nos processos de certificação e na obtenção da cidadania (o
mail da empresa é precisamente nationalityportuguese@gmail.com), mas também
oferece consultoria em potenciais negócios para a crescente comunidade judaica
do Porto.
O negócio do
imobiliário
A par disto,
Eliran Graedje – que trocou Israel por Portugal em 2007 e integra a direcção da
CIP, pelo menos, desde 2016 – está profundamente envolvido na mediação e
promoção imobiliária, através das empresas Enjoyseason, LDA; Neptunesecrets,
LDA (ambas constituídas a 3 de Outubro de 2019); Jungle Clover, LDA (em
funcionamento desde 26 de Julho de 2018); Pereira & Eliran, LDA
(constituída a 10 de Maio 2017 e já dissolvida) e Invicta Portucale XXI, LDA (7
de Julho de 2017).
Já em Fevereiro
de 2018, o secretário da CIP congratulava-se com o potencial do negócio e dos
lucros, num artigo publicado pelo Jornal de Notícias, com o título “Israelitas
‘à caça’ de investimentos imobiliários no Porto”. No artigo, Eliran Graedje
surge com o sócio, Nélson Bento Pereira – partilhavam em partes iguais a
empresa Pereira & Joel, extinta a 27 de Setembro desse ano, com Bruno
Monteiro Pereira, vereador do PSD na Câmara Municipal de Matosinhos –,
garantindo que são muitos os clientes israelitas interessados em investir.
Nos seus
escritórios, “aparecem com fundos de investimento de cinco ou dez milhões [de
euros], para gastar de uma vez. Mas também particulares dispostos a gastar 400
ou 500 mil euros num edifício”, revela Nélson Pereira, engenheiro civil
português, militante do PSD, que é também gerente da sociedade Invicta
Portucale XXI, LDA, detida por Eliran Graedge (15%) e pela Piedade
Investimentos, SA (70%), da empresária Maria Alves de Oliveira.
“Os judeus gostam
de negociar e no Porto podem fazer-se grandes negócios. Pelo que percebemos, em
Israel ainda existe muito a prática de aforrar. Qualquer chefe de família, aos
45 anos, já tem meio milhão de euros, o que para nós é muito bom, mas para eles
é considerado normal”, contou o secretário da CIP. Os dois sócios revelaram
ainda que a obtenção da nacionalidade portuguesa tem proporcionado grande parte
destes negócios. Sem essa possibilidade, “muitos nunca investiriam no mercado
português”, diz Eliran Graedge, que perspectivava que o Porto pudesse “até vir
a ter um bairro judeu” no espaço de cinco anos.
Apesar de Yigal
Ben Zion ser o presidente da CIP, é a vice-presidente Isabel Ferreira Lopes
quem tem o poder de assinar documentos e contratos que vinculam a entidade.
Muito próxima de Francisco de Almeida Garrett – que várias fontes contactadas
pelo PÚBLICO sob anonimato garantem ser quem lidera de facto a comunidade –,
esta economista, antiga funcionária da Sonae, é neta de Artur Barros Basto, o
fundador da CIP nos anos de 1920.
É também Isabel
Ferreira Lopes que trata de toda a logística dos certificados, ainda que seja o
rabino Daniel Litvak o responsável pela sua verificação. Daniel Litvak passa
parte do ano em Israel, onde é o representante da empresa GM Investment and
Placement, liderada pelo empresário de Barcelona Manuel Sánchez Bastán.
Trata-se de uma corretora especializada em engenharia financeira que opera no
mercado internacional.
Denúncias
anónimas
A Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou a 19 de
Janeiro que está a investigar a concessão da nacionalidade a Roman Abramovich,
na sequência de uma investigação do PÚBLICO, através do Departamento Central de
Investigação e Acção Penal (DIAP) Regional de Lisboa. Mas as autoridades já
tinham sido alertadas anos antes para algumas irregularidades que estariam a
ocorrer na CIP, que emitiu o certificado de descendente de judeus sefarditas ao
multimilionário, dono do clube de futebol inglês Chelsea.
A 21 de Novembro
de 2017, chegou ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP)
uma queixa anónima, a que o PÚBLICO teve acesso, denunciando Francisco de
Almeida Garrett como o autor do articulado do Decreto-Lei n.º 30/A/2015, que
regulamentou a atribuição da nacionalidade aos descendentes das antigas
comunidades judaicas portuguesas, expulsas pelo rei D. Manuel I. Nesta
denúncia, é sublinhado que o advogado tomou o “controlo absoluto da CIP”, que
teria uma direcção “artificial” e um “presidente ausente”.
Cartas idênticas
foram enviadas em 2020 para vários deputados da Assembleia da República, mas
também para o Ministério da Educação, Ministério da Justiça e Ministério dos
Negócios Estrangeiros. Na altura, estavam a ser debatidas algumas
condicionantes à legislação sobre os sefarditas, que acabaram por não seguir em
frente.
Até a PGR
anunciar a investigação ao caso Abramovich desconhecia-se a existência de
qualquer outra diligência relacionada com a CIP.
Na sequência da publicação do processo que levou à
naturalização de Roman Abramovich, o PÚBLICO foi convidado pela CIP para uma
visita às instalações da comunidade e uma conversa com o rabino Daniel Litvak,
responsável pela verificação dos certificados para descendentes de judeus
sefarditas, onde seriam explicados os critérios e actuação desta entidade. A
visita esteve marcada para dia 13 de Janeiro e serviria também para abordar os
temas desenvolvidos nesta investigação. Dois dias antes, o encontro foi cancelado
sem qualquer explicação.
Já esta
quinta-feira, Francisco de Almeida Garrett respondeu por escrito a algumas
perguntas enviadas por email, admitindo ser vogal da direcção desde 2016, mas
garantindo não ter tido qualquer tipo de intervenção na lei da nacionalidade
para os descendentes de judeus sefarditas e na sua regulamentação. “A CIP
entregou ao Governo, em 2013, um parecer dizendo que deveria ser nomeada uma
comissão internacional”, sublinhou, referindo que a comunidade “foi convocada
pelo Governo PSD/CDS", em 2015, para fazer processos de certificação:
“Ninguém da Comunidade conhecia qualquer membro do Governo.”
Judeus sefarditas. Advogados prometem passaporte
português em seis meses
Suspeita de “práticas mercantilistas” levou o PS a tentar
reforçar as provas de “ligação a Portugal”. O ensaio de mudança na lei foi
chumbado. Maria Belém Roseira e Ribeiro e Castro, advogado que trabalha na área
da nacionalidade, entre os que mais se opuseram à mudança.
Paulo Curado
11 de Fevereiro
de 2022, 6:30
Não é apenas
sentimental o apelo aos descendentes de judeus sefarditas para a obtenção da
nacionalidade portuguesa ao abrigo de um regime especial da Lei da
Nacionalidade. A reparação histórica da trágica decisão do rei D. Manuel I de
expulsar as ancestrais comunidades judaicas de Portugal (os sefarditas), no
final do século XV, tem sido aproveitada por empresas privadas em todo o mundo
para angariarem potenciais interessados, publicitando de forma pragmática as
vantagens associadas a um passaporte português.
A livre
circulação em países da União Europeia (UE), beneficiando de apoios sociais, e
a isenção de vistos para os Estados Unidos são alguns dos principais benefícios
apresentados para cativar candidatos. Um escritório de advogados israelita
afirma mesmo ter a “confiança” de “membros-chave” das autoridades de imigração
portuguesas para acelerar o processo.
A página de
internet do consultor jurídico e economista espanhol Elias Bendahan, fundador e
presidente da Sephardic-Citizenship, surge com um título sugestivo: “Tem
ascendência sefardita? Obtenha o seu passaporte em seis meses!!!” São depois
sublinhadas as vantagens da nacionalidade portuguesa em relação à espanhola. “A
lei portuguesa (ao contrário da lei espanhola) não exige exames linguísticos ou
culturais em português, nem é obrigatória a presença física em Portugal. Pode
processar tudo através de uma procuração para um dos advogados da nossa firma.”
Os apelos
sugestivos da Sephardic-Citizenship estão longe de ser um caso isolado entre as
empresas que operam neste lucrativo e concorrencial mercado da nacionalidade. O
escritório israelita de advocacia Cohen, Decker, Pex & Brosh, especializado
em direito de imigração e “em pedidos de cidadania portuguesa para israelitas e
estrangeiros” aposta também numa publicidade agressiva.
Com versões em
hebraico, inglês, russo, francês, alemão, árabe, espanhol e português (do
Brasil), o site da sociedade demonstra igualmente as vantagens da nacionalidade
portuguesa em relação à espanhola. Mas, vai mais longe, garantindo ter
contactos profissionais de confiança em Portugal. “Trabalhamos com um
escritório de advocacia de imigração local que trata das etapas finais do
processo de obtenção de cidadania, temos contactos com a comunidade judaica no
Porto que emite a aprovação necessária e temos a confiança de membros-chave das
autoridades de imigração.”
A Cohen, Decker,
Pex & Brosh alerta ainda para a abrangência da lei portuguesa, que entrou
em vigor em 2015, em relação a potenciais candidatos. “Quem puder provar que,
pelo menos, um dos seus antepassados era judeu sefardita – descendente de
deportados espanhóis e portugueses – tem direito a receber a cidadania de
Portugal”, garante. “Não importa onde nasceu, se um dos seus antepassados era
descendente de espanhóis, deve verificar a sua elegibilidade.”
Sediado em
Telavive, a Portugalis Group apresenta-se como “a maior e mais profissional
empresa de Israel na área da cidadania portuguesa”. A sociedade, gerida pelo
empresário Shay Cohen, realça que as condições estabelecidas pelo Governo
português “são relativamente simples”, não se exigindo uma comprovação de
competências no idioma ou um período de residência no país. “Com Portugal, o
processo de emissão do passaporte português é muito simples”, garantem
Ainda em Israel,
o advogado e notário León Amiras, acérrimo defensor da legislação portuguesa
para a naturalização de descendentes de sefarditas, com vários artigos
publicados na comunicação social, nomeadamente em Portugal, publicita também os
seus serviços: “Obtenha o seu passaporte português com o Dr. León Amiras.” No
topo da lista de vantagens estão a isenção de vistos para os EUA e Austrália. A
possibilidade de residência em Portugal e em outros países da União Europeia, a
aquisição de imóveis, a abertura de negócios, mas também a possibilidade de
realização de “estudos subsidiados nas principais instituições académicas”
nacionais são outros benefícios.
Apesar de
especificar que a lei se aplica principalmente a descendentes de sefarditas
provenientes das comunidades judaicas de “Marrocos, Argélia, Grécia, Turquia,
Síria, Egipto, Líbia, países da ex-Jugoslávia, Iraque, Líbano, Holanda, etc.”,
Amiras alerta para a existência de “uma longa lista de sobrenomes típicos de
judeus e descendentes dos que foram expulsos de Espanha e Portugal”, que estão
espalhados por todo o mundo, recomendando que os potenciais candidatos não
iniciem o processo “de forma independente”: “O nosso escritório tem uma
sucursal em Portugal, que representa os nossos clientes junto das autoridades
de forma a avançar com o processo de obtenção de um passaporte.”
Nascido na
Argentina, León Amiras emigrou para Israel ainda jovem, tornando-se num
advogado influente, ocupando a presidência interina do Comité do Distrito de
Jerusalém da Ordem dos Advogados. Lidera ainda a Organização Latino-Americana,
Espanha, Portugal em Israel, sendo assessor jurídico da Comunidade Israelita do
Porto (CIP), que certifica os descendentes de judeus sefarditas candidatos à
nacionalidade portuguesa. Foi precisamente esta entidade que certificou o
próprio jurista, permitindo-lhe obter a cidadania portuguesa.
Práticas
mercantilistas
Numa carta
enviada ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e ao
bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, a 22 de Junho de 2020,
a que o PÚBLICO teve acesso, Amiras chegou mesmo a insurgir-se contra a
deputada Constança Urbano de Sousa, ex-vice-presidente da bancada do PS na
Assembleia da República, por ter usado o seu nome como um mau exemplo de
promoção da nacionalidade portuguesa.
Desde que foi
publicada a lei que devolveu o direito de nacionalidade aos judeus sefarditas
de origem portuguesa, opus-me a que empresas privadas publicassem anúncios que
denegrissem o bom nome de Portugal.
León Amiras
“Desde que foi
publicada a lei que devolveu o direito de nacionalidade aos judeus sefarditas
de origem portuguesa, opus-me a que empresas privadas publicassem anúncios que
denegrissem o bom nome de Portugal”, escreveu na altura, garantindo ter sido
contratado pela comunidade judaica em Portugal “para tentar travar a
publicidade nociva praticada por operadores menos responsáveis”.
A carta foi
escrita na sequência da proposta da vice-presidente da bancada socialista para
alterar a lei que permitia a naturalização aos descendentes de judeus
sefarditas, “através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade
sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objectivos comprovados
de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência
directa ou colateral”. Temendo a massificação dos pedidos de naturalização,
Constança Urbano de Sousa defendeu a necessidade de clarificar o conceito da
“ligação a Portugal”, procurando incluir a obrigatoriedade da residência em
território nacional por um período de dois anos aos potenciais candidatos.
“O facto de Portugal estar integrado na União Europeia dá
à nacionalidade portuguesa uma dimensão adicional inerente à cidadania
europeia, permitindo a livre circulação e direito de residência em qualquer
Estado membro e a isenção de vistos para entrar em cerca de 185 países do
mundo. E esta é uma vantagem inegável de quem tem um passaporte português, mas
da qual também decorrem obrigações adicionais perante estes nossos parceiros”,
defendeu a deputada, num artigo de opinião publicado no jornal PÚBLICO, em Maio
de 2020.
Duras críticas
O PS acabaria por
deixar cair a proposta, após as duras críticas das comunidades judaicas do
Porto e de Lisboa e até de alguns “históricos” socialistas, como Maria de Belém
Roseira, Vera Jardim, Manuel Alegre e Alberto Martins. Maria de Belém Roseira
tinha sido precisamente a promotora da lei, em Março de 2013, a que se associou
o antigo deputado e ex-líder do CDS José Ribeiro e Castro.
“A proposta da
deputada Constança Urbano de Sousa e doutros é absurda”, acusou o advogado, que
é sócio na sociedade de advogados PMCM, onde tem como áreas de prática o
Direito Público e o Direito da Nacionalidade, Imigração e Residência. É
sublinhado na sua apresentação na página da empresa na internet que foi um dos
co-autores da lei que atribuiu a nacionalidade portuguesa aos sefarditas.
A ex-deputada do PS Constança Urbano de Sousa tentou
fazer alterações para tornar a lei portuguesa parecida com a espanhola mas
recuou
“Não faz sentido
eliminar o requisito da residência, para o repor logo a seguir no mesmo
preceito, embora com prazo mais curto. Isto é que integra o anti-semitismo
objectivo da proposta: de todas as comunidades com ancestralidade portuguesa
existentes no mundo, esta é condição anteposta unicamente aos judeus”,
prosseguiu o jurista, num artigo escrito para o PÚBLICO a 17 de Maio de 2020.
“É a tentativa de uma lei com medo dos judeus de ascendência portuguesa e para
sua discriminação e rejeição. Seria uma lei má, inaceitável”, defendeu.
Ribeiro e Castro
apresenta algumas soluções para impedir o “mercantilismo” com a nacionalidade
portuguesa: “As nossas comunidades judaicas podem colaborar na definição de
termos mais exigentes, garantindo a genuinidade dos pedidos e impedindo o
comércio da nacionalidade”, sugeriu, propondo também que seja apurado “o filtro
na instrução dos processos”, em que já participam as comunidades judaicas, “as
maiores interessadas em não assistir à desprestigiante decadência processual”.
Ribeiro e Castro
tem mantido boas relações com a CIP e com a Comunidade Israelita de Lisboa
(CIL), através da Sociedade Histórica da Independência de Portugal (SHIP), a
que preside, e que assinou com a entidade portuense um “protocolo de parceria,
amizade e cooperação” a 30 de Março de 2021. No mesmo, as duas instituições
“comprometem-se a manter relações de cooperação associativa e cultural
recíproca” e a realizar um “Encontro anual” para “examinar o estado da cooperação
bilateral”.
Em declarações ao
PÚBLICO, Ribeiro e Castro admitiu relacionar-se com “os responsáveis” da CIP,
mas disse desconhecer quem é Francisco de Almeida Garrett e as suas funções na
CIP. “Não estou a ver quem seja. Não sabia que era sobrinho de Maria de Belém
Roseira.”
De resto, o
advogado acredita na seriedade das entidades intervenientes na fiscalização dos
processos de naturalização. “Não tenho nenhuma razão para pôr em dúvida a
seriedade da CIP, que faz um excelente trabalho na dinamização da comunidade, e
muito menos da Conservatória dos Registos Centrais, que está guarnecida de
profissionais altamente competentes e dedicados.”
O jurista admitiu
que não anteciparia que a lei se tornasse “um sucesso tão grande e com tanta
procura”, admitindo que não existiu nenhum estudo prévio para antecipar os
potenciais pedidos de nacionalidade ao abrigo desta lei. Já à comercialização
da nacionalidade portuguesa em países estrangeiros, Ribeiro e Castro defende a
sua proibição, por a considerar uma “indecência”.
Uma opinião
partilhada por Maria de Belém. “Nunca percebi porque é que o Governo não agiu
contra esse tipo de mercantilização da nacionalidade portuguesa que algumas
empresas praticam”, referiu ao PÚBLICO.
Em relação à sua
actividade profissional como advogado especialista em Direito da Nacionalidade,
Ribeiro e Castro garante que não tratou de nenhum processo relacionado com a
nacionalidade de descendentes de sefarditas. “Porque acho que não devo tratar.”
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