OPINIÃO
Onde é que precisamos de liberais e não os temos
Falta muito a gente da liberdade, sem aspas, que reaja a
todo o caminho que se está a fazer debaixo dos nossos pés. E uma das razões por
que isso acontece é por medo.
José Pacheco
Pereira
8 de Maio de
2021, 0:15
https://www.publico.pt/2021/05/08/opiniao/noticia/onde-precisamos-liberais-nao-1961656
O país está a
ficar cheio de “liberais”, do “liberalismo” da moda. A palavra “liberdade” está
a ser capturada pela direita mais radical. Confortável nas sondagens, a
esquerda do PS, como o centro do PSD, perde todos os dias o debate ideológico.
O BE está demasiado mole e autocentrado e o PCP preso num gueto verbal, ambos
consideravelmente ineficazes face à crescente agressividade da direita. O único
partido com dinamismo político e eleitoral é o Chega. O centro, centro-esquerda
e centro-direita está errático e pouco afirmativo. As asneiras acumulam-se em
todas as áreas que são de não direita. Em modo tribal, a agressividade dá
frutos. A seu tempo, o conforto nas sondagens diminuirá. Aproximam-se tempos de
mudança e o número de cegos que não querem ver é cada vez maior.
Falta muito a
gente da liberdade, sem aspas, que reaja a todo o caminho que se está a fazer
debaixo dos nossos pés. Faltam liberais sem aspas à esquerda e à direita,
capazes de serem firmes em defesa da liberdade, muito duros na sua firmeza, mas
moderados na acção. E uma das razões por que isso acontece é por medo. Ninguém
quer ser alvo da avalanche de insultos, dos processos de intenção, das ameaças
que hoje pululam nas redes sociais e nas caixas de comentários. Não sabem onde
está tudo isto? Eu digo-lhes onde está.
A fronda
populista varre a prudência de pensar duas vezes e, pouco a pouco, a
fragilidade crescente dos partidos políticos fá-los soçobrar aos princípios
para responder à avalanche populista. O efeito mais pernicioso de casos como o
de Sócrates-Ivo Rosa é criar, em nome da luta contra a corrupção, uma deriva
autoritária e liberticida. A Justiça é numa sociedade democrática um pilar do
Estado, é um dos poderes fundamentais na sua autonomia e independência, como o
poder legislativo e executivo. A doutrina da separação dos poderes não retira o
exercício dos diferentes poderes do âmbito do Estado, nem impede por si só a
sua perversão e contaminação – ou seja, a dependência do poder político é uma
possibilidade e um risco, mesmo sem se mudarem normas e procedimentos. E tudo
aquilo que permitimos agora na convicção de que não haverá abusos pode amanhã
ser usado de forma abusiva e persecutória.
Dou muitas vezes
como exemplo a intromissão na liberdade individual por meios informáticos,
feita em nome da eficácia, que nos parece inocente agora, mas cria todos os
instrumento para poder ser usada contra as liberdades. Digo muitas vezes que
uma nova PIDE que acedesse às bases de dados das Finanças, aos pagamentos do
Multibanco, aos trajectos da Via Verde, aos metadados dos telemóveis podia
saber tudo sobre qualquer cidadão. Se uma autoridade legítima o precisa de
fazer para perseguir uma actividade criminosa, e se o fizer sob controlo judicial,
muito bem. Tudo o resto, muito mal.
Não estou a falar
de abstracções. Já houve jornais que pagavam informação a pessoas do fisco com
acesso aos dados para fazerem “investigações”. Já houve magistrados que foram
para além da lei para fazerem “pesca de arrasto” para encontrarem culpados,
mesmo que não houvesse qualquer indício de actividade criminosa. Há legislação
que implica a violação do segredo profissional dos advogados face aos seus
clientes com considerável indiferença destes. O fisco viola a privacidade dos
cidadãos obrigando as facturas a terem não apenas o montante da transacção, mas
discriminação, por exemplo, dos títulos dos livros que se compra numa livraria.
Há tentativas de “acrescentar”, sempre em nome da eficácia, dados suplementares
ao cartão de cidadão. A aplicação Stay Away Covid apoiada pelo Governo
implicava a violação de dados pessoais e não é líquido que os novos
“passaportes” com dados sanitários também não o façam.
Eu, que me dou bem com o honroso nome de liberal, na
tradição de Garrett e de Herculano, ou da minha terra, o Porto, não estou
disposto a dar ao Estado o direito de me obrigar a provar a minha inocência
A inversão do
ónus da prova, para que agora há um clamor populista, a que quem de direito
responde tibiamente, é um instrumento persecutório e de abuso nas mãos do
Estado. O enriquecimento “ilícito”, se o é, deve ser provado pela Justiça, pelo
Estado. Dê-se aos magistrados e às polícias todos os instrumentos necessários
para essa prova, mas não se crie uma situação em que seja o próprio a ter de
provar a sua inocência. O furor legítimo contra a corrupção não deve dar às
mãos do Estado instrumentos potenciais para todos os abusos. Hoje parece que
será contra o “ilícito” do enriquecimento, mas amanhã pode ser para qualquer um,
para vinganças políticas, para abater adversários. Dado o instrumento,
destruído o princípio, o abuso é só uma questão de tempo.
Aqui é que
precisamos de liberais e eles nos faltam. Muitos, aliás, dos “liberais” dos
dias de hoje são indiferentes a estas liberdades e, para atacarem aquilo a que
chamam a “corrupção do socialismo”, estão dispostos a dar ao Estado enormes
poderes. Eu, que me dou bem com o honroso nome de liberal, na tradição de
Garrett e de Herculano, ou da minha terra, o Porto, não estou disposto a dar ao
Estado o direito de me obrigar a provar a minha inocência. É, se quiserem, uma
posição humanista sobre a natureza humana, deixando o pecado original para os
crentes, mas não para a democracia.
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