CRÓNICA
Chick Corea, quando o génio exige um lado fútil
Entre o apogeu da arte e do piano de Chick Corea e a
banalidade da sua entrega a ritmos comerciais há um muro aparentemente
inseparável e incompreensível.
Manuel Carvalho
11 de Fevereiro
de 2021, 23:16
https://www.publico.pt/2021/02/11/culturaipsilon/cronica/chick-corea-genio-exige-lado-futil-1950372
Há músicos tão
geniais e que nos marcam tanto ao longo de tanto tempo que chegam a tornar-nos
condescendentes com as suas desinspirações. Não se trata de entrar na velha e
pífia discussão sobre uma suposta cedência de Miles Davis ao “star system” do
rock na viragem dos anos 60. Ou no desdém de Wynton Marsalis pelo seu irmão
Brandford no momento em que este se juntou a Sting para provar, em Bring on The
Night, o balanço que a tropa do jazz pode dar ao rock. No caso de Chick Corea é
pior. Entre o apogeu da sua arte e do seu piano e a banalidade da sua entrega a
ritmos comerciais há um muro aparentemente inseparável e incompreensível. Mesmo
na sua banda seminal do princípio dos anos 70, os Return to Forever, nada liga
a inspiração e o brilho do álbum homónimo e a piroseira de Romantic Warrior.
Mas, então,
porque que é que o anúncio da morte de Chick Corea é assim tão tristemente
dramático? Como podemos condescender com um pianista capaz de ceder na
exigência, ou da arte, para se expor às facilidades do comércio, ou da moda?
Podemos porque Chick Corea foi sempre um iconoclasta. Um latino num mundo de
negros inspirados por instrumentos europeus. Um músico que sempre balanceou
entre a seriedade e o risível na música. Entre pautas de compositores clássicos
e lendas populares de gnomos ou histórias futuristas de viajantes galácticos.
Entre Now He Sings, Now He Sobs (1968), que ajudou a moldar a fisionomia do
trio piano/bateria/contrabaixo, e o passo seguinte nas bandas de Miles Davis,
que introduzem a electricidade no jazz e afirmam a fusion (ou o jazz-rock), a
evolução poderia parecer paradoxal. Os anos seguintes mostraram que se tratava
de coerência.
Dos Return to
Forever aos Circle, passando pelos surpreendentes discos assinados em nome
próprio entre 1976 e 1978, tivemos momentos de excelência da composição e de
arranjo, a mestria nas improvisações no piano a solo ou essa estranha paixão
pela música de Espanha que celebra no ora magnífico, ora boçal My Spanish
Heart. Ouvimos também duetos extraordinários com Herbie Hancock (An Evening
with Chick Corea and Herbie Hancock, 1980) ou com o vibrafonista Gary Burton
num extraordinário concerto em Zurique (1980). A cada passo, e ao longo da
carreira, Chick Corea regressaria ao piano do jazz clássico – Trilogy, de 2018,
com Christian McBride e Brian Blade é um disco enorme. Mas a exemplo do mestre
Miles não resistiu aos apelos da música de dança, aos ritmos estridentes do
sintetizador, às modas que os devotos da sua obra clássica (ou até da sua fusão
dos anos 70) têm dificuldade em entender.
Chick Corea, que
morreu esta terça-feira aos 79 anos, é um músico que marca. Foi, juntamente com
Frank Zappa, o maior culpado pela transição do rock para o jazz no final da
minha adolescência. Vi-o uma mão cheia de vezes ao vivo, entre a emoção e a
irritação desiludida. Regressei com frequência às suas grandes obras.
Entrevistei-o para o PÚBLICO num hotel no Porto aí por volta de 1994 para o
ouvir dizer que só se queria divertir.
Talvez esteja aí
o segredo do seu génio. Talvez o jazz luminoso e límpido que ajudou a moldar
não dispensasse esse gene descontraído, italiano, dado à futilidade.

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