quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O admirável talento de semear caos



COMENTÁRIO
O admirável talento de semear caos

Depois de Trump ter proclamado o fim do Estado Islâmico, os Estados Unidos deixam de precisar dos curdos sírios, que foram a força determinante na derrota da organização terrorista, o que lhes custou 10 mil mortos. Podem os aliados confiar na América?

JORGE ALMEIDA FERNANDES
10 de Outubro de 2019, 6:00

O exército turco começou ontem a bombardear objectivos das forças curdas sírias, como preparação para uma ofensiva terrestre. É o efeito de uma declaração do Presidente Donald Trump, no passado domingo, quando anunciou a retirada das últimas tropas americanas na Síria. Fê-lo por pressão do Presidente turco, Tayyip Erdogan. Foi objectivamente uma luz verde para a ofensiva militar.

À medida que se aproximam as eleições de 2020, Trump manifesta um ilimitado talento para produzir caos. Ao abandonar os aliados curdos, põe em causa a credibilidade dos Estados Unidos. Não é apenas uma questão moral. Será a América uma potência fiável? Por outro lado, ameaça reabrir a infindável guerra síria e precipitar novas tragédias.

A Rússia e o Irão têm tudo a ganhar com a iniciativa de Trump, apostando em ocupar o vazio criado na Síria. E, por outras razões, também Pequim, que observará as reacções dos aliados asiáticos dos EUA. Será que a América acabará também por os abandonar?

Sair da Síria era uma velha intenção de Trump. Uma primeira decisão, em Dezembro de 2018, levou à demissão do secretário da Defesa, general James Mattis, que denunciou na carta de despedida a indecência do Presidente no tratamento dos aliados. Segundo o general, a permanência das últimas forças americanas na Síria era económica e de baixo risco, e tinha dois objectivos importantes. Primeiro, prevenir uma ressurgência do Estado Islâmico (EI). Segundo, evitar uma ofensiva militar da Turquia contra os curdos que resultaria na reabertura da guerra síria.

Erdogan terá interpretado bem os desejos de Trump e soube contornar os diplomatas e generais americanos muito hostis à ideia. Na segunda-feira, o Pentágono advertiu os militares turcos de que a declaração do Presidente não significava uma luz verde para um ataque na Síria, com “consequências desestabilizadoras.” Mas o ataque já começou.

Juntando-se aos democratas, importantes figuras republicanas criticaram Trump. O senador republicano Lindsay Graham, influente apoiante do Presidente, disse duas coisas. “Abandonar os curdos é uma mancha na honra da América. (…) É uma grande vitória para o Irão, para Assad e para o Estado Islâmico.” Acrescentou: “A maior mentira desta Administração é a de que o EI terá sido vencido.”

Trump fez uma rectificação. Disse que a retirada não seria total. Os soldados americanos que permanecerem não tomarão partido. Assistirão. Por outro lado, justificou-se: “É tempo de sair destas guerras ridículas e sem fim, sendo muitas delas tribais.” É uma promessa eleitoral.

Depois de Trump ter proclamado o fim do Estado Islâmico, os Estados Unidos deixam de precisar dos curdos sírios, que foram a força determinante na derrota da organização terrorista, o que lhes custou 10 mil mortos. Podem os aliados confiar na América?

O plano turco
Erdogan, depois de ter acolhido dois ou três milhões de refugiados sírios, e de ter feito a exibição da solidariedade sunita, quer agora ver-se livre deles. Para isso, projecta criar uma “zona tampão” na Síria, para onde serão enviados. Aparentemente, a ofensiva militar destina-se a isso. Mas o objectivo é outro: isolar os curdos sírios. É um cálculo potencialmente explosivo.

“O plano [de Erdogan] é enviar milhões de árabes sírios refugiados para as áreas de maioria curda dentro da Síria”, escreve o turco Gunul Tol, director do centro de estudos turcos no Middle East Institute. Não é por acaso. “Do ponto de vista de Erdogan, mudar a composição étnica da região contribuiria para enfraquecer os curdos.” É o convite a uma nova guerra, agora com dimensão étnica – curdos contra árabes.

Observa ainda: “Este plano é uma boa nova para os adversários dos EUA na Síria – a Rússia, o Irão e o regime de Assad – que acreditam que resistirão, ao mesmo tempo que a invasão turca levará à completa retirada americana. Para, no fim, recapturarem a área e expulsarem os turcos.”

O analista americano Steve A. Cook, do Council on Foreign Relations, tem uma opinião análoga: “A guerra civil síria está a entrar numa nova fase. “A curto prazo, as forças curdas não poderão resistir à superioridade militar turca. Mas podem lançar-se numa “guerra assimétrica” e devolver os golpes aos turcos.

A invasão tem ainda um efeito perverso. Os curdos sírios têm cerca de dez mil prisioneiros do EI. Que lhes acontecerá? “O EI foi derrotado mas poderá estar perante uma oportunidade para reemergir como grande ameaça”, conclui Cook.

Só boas notícias.

tp.ocilbup@sednanrefaj

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