OPINIÃO
A estátua de Vieira e o racismo português
Desde que Marcelo se esqueceu de fazer o seu acto de
contrição que a questão do esclavagismo e do racismo português tem vindo a
subir de tom entre as elites culturais.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
10 de Outubro de
2017, 6:10
https://www.publico.pt/2017/10/10/politica/opiniao/a-estatua-de-vieira-e-o-racismo-portugues-1788179
A conversa em
torno da escravatura e do racismo português começou a subir de tom em Abril
deste ano, quando Marcelo Rebelo de Sousa, numa vista à ilha de Gorée, no
Senegal (um antigo entreposto de escravos), resolveu declarar que Portugal
tinha reconhecido a injustiça da escravatura ao aboli-la em parte do seu
território ainda no tempo do Marquês de Pombal. Dias depois, numa carta aberta,
numerosos intelectuais repudiaram as declarações do Presidente da República,
essencialmente por duas razões: 1) por não ter havido um pedido de desculpas
oficial pela prática do esclavagismo; 2) por tais palavras “reavivaram o
branqueamento da opressão colonial implícito na visão do projeto colonial
português”.
Como cada vez
mais acontece nestes temas, os factos históricos são triturados na Bimby da
indignação, resultando daí uma mistela impossível de digerir por quem aprecie
discussões contextualizadas. Facto histórico: é absolutamente verdade que uma
triste memória herdada do Estado Novo ainda insiste em considerar o
colonialismo português como excepcional em matéria de integração e “humanidade”
– uma tese ridícula que deve ser combatida com todas as forças, até porque
estamos a falar de acontecimentos que têm cinco ou seis décadas e de muita
gente que ainda está viva. Mistela incomestível saída da Bimby da indignação:
quando se começa a exigir em 2017 declarações de perdão a um Presidente da
República a propósito de tráfico negreiro terminado há 200 anos, aquilo que
estamos a fazer não é a repor a memória histórica mas a cair na enésima
variação da culpa do homem branco, uma tendência crescente que deve ser
combatida com a mesma força que as suavizações do colonialismo português.
O historiador
João Pedro Marques tem-se fartado de publicar artigos avisados sobre este tema,
cuja leitura aconselho (por exemplo: “Pedir perdão pela escravatura? Três
razões para não ir por aí”), mas desde que Marcelo se esqueceu de fazer o seu
acto de contrição que a questão do esclavagismo e do racismo português tem
vindo a subir de tom entre as elites culturais. Joana Gorjão Henriques, uma das
subscritoras da carta aberta (e autora do livro Racismo em Português), assinou
uma longa série de artigos no PÚBLICO significativamente intitulados “racismo à
portuguesa”. E Mamadou Ba, outro dos subscritores, foi agora o promotor da
patética manifestação contra a estátua do padre António Vieira, alvo de uma
contra-manifestação de extrema-direita em defesa de uma obra com três índios
tupi.
Infelizmente, e
como é cada vez mais habitual, as reivindicações justas misturam-se com
exigências absurdas, isolando defensores de boas causas na bolha cada vez mais
delirante das políticas de identidade. É fácil perceber porquê: se qualquer
pessoa com olhos na cara reconhece a existência de um problema de ascensão
social entre os portugueses de origem africana; qualquer pessoa com os miolos
no sítio e duas leituras do padre António Vieira reconhece, com a mesma
facilidade, que Vieira é o pior português do século XVII para escolher como
exemplo de racista e “esclavagista selectivo”. Os processos históricos deviam
ter uma regra semelhante à lei dos direitos de autor: passados 70 anos sobre
determinado acontecimento, ninguém tem mais direito a reivindicar o pagamento
do que quer que seja. Nem assunções de culpa. Nem pedidos de perdão. Nem
exigências de indemnização. Nada. É pura e simplesmente ridículo andar a pedir
desculpa pelos actos do tetravô.

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