COVID-19
“Segunda vaga” vs. “não há descontrolo”. Peritos sem
explicação para o que se passa na região de Lisboa
Especialistas rejeitam que o aumento dos testes explique
por si só o aumento de casos registados. App está pronta.
Sofia Rodrigues,
Marta Moitinho Oliveira e Liliana Borges 24 de Junho de 2020, 20:06
A reunião desta
manhã entre o Presidente da República, primeiro-ministro e dirigentes políticos
com especialistas resultou numa divergência de pontos de vista sobre a situação
na Grande Lisboa, com interpretações diferentes do que foi dito pelos técnicos.
A região pode estar a viver a segunda vaga de covid-19, houve quem admitisse,
mas também faltam explicações para esta evolução na região. Marcelo Rebelo de
Sousa garantiu, no entanto, que não há “descontrolo” da pandemia.
A incidência de
casos de infecção em quatro concelhos de Lisboa e Vale do Tejo - Sintra,
Amadora, Odivelas e Loures - pode representar o início de uma segunda vaga de
covid-19 na região. A tese foi dada pelo epidemiologista Baltazar Nunes, do
Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, quando respondia ao presidente da
Assembleia da República, Ferro Rodrigues, que questionou os especialistas sobre
uma eventual segunda vaga no país.
Pandemia de
covid-19 “está a crescer a um ritmo alarmante”, diz director-geral da OMS“O
epidemiologista acha que estamos perante uma segunda vaga”, contou um
participante no encontro, acrescentando, porém, que uma segunda onda terá uma
“dimensão inferior” à primeira. Em termos técnicos, quando há uma subida de
casos, um “plateau” (um planalto) e uma nova subida já se está na segunda vaga,
o que corresponde ao retrato da região da Grande Lisboa, terá defendido o
especialista.
Tanto as
declarações que foram feitas à saída da reunião como as que foram ouvidas nos
relatos feitos ao PÚBLICO é visível que os técnicos de saúde não arriscaram
explicações definitivas para o que se passa na região de Lisboa. “O caso da
construção civil é um dos melhores para mostrar a ausência de explicações. Este
sector nunca esteve confinado. E, portanto, não se percebe por que motivo a
contaminação aparece agora. Por que sucede agora e não antes? Além disso, há
construção civil na região de Lisboa mas também no Norte e no Algarve e não há
explicação para o facto de acontecerem surtos de infecção em Lisboa e não nas
outras regiões”, observa um dos presentes na reunião.
Esta ausência de
explicações preocupa este participante que considera estas reuniões cada vez
menos úteis para o decisor político. “Isto deixa um político às escuras, já que
tem de decidir sem suporte técnico”, afirma, acrescentando que nesta reunião os
epidemiologistas estiveram duas horas a fazer apresentações sem falar sobre o tema
que estava a cabeça de todos: o que está a acontecer na região de Lisboa e
porquê. O tema só surgiu na fase de perguntas e respostas.
Nesta região de
Lisboa há 53 surtos identificados (dos 65 em todo o país), mas há entre 15% a
20% dos casos que não têm as cadeias de transmissão identificadas. Esta
situação motiva preocupação aos técnicos, que temem a propagação a outras zonas
do país.
Relativamente aos
testes de despistagem, os especialistas afastaram a ideia – defendida pelo
primeiro-ministro - de que o seu aumento seja o responsável exclusivo pelo
registo de um número de casos mais elevado na Grande Lisboa, tendo referido que
é preciso olhar também para o número de hospitalizações e de internamentos em
cuidados intensivos.
As dúvidas sobre
o que está a acontecer na região foram assumidas pelo próprio Presidente da
República, no final da reunião. “Depois de ter tido uma subida inicial, Lisboa
não teve a descida do Norte e do Centro. Porquê a subida? É porque há dados
novos ou conhecimento novo de dados antigos?”, questionou, remetendo respostas
para os resultados dos inquéritos epidemiológicos que estão a ser feitos no
terreno.
De qualquer
forma, Marcelo Rebelo de Sousa tentou contrariar a ideia de que a situação na
Grande Lisboa esteja “descontrolada”, que tinha sido assumida de manhã, na Rádio
Renascença, pelo director de infecciologia do Hospital Curry Cabral, Fernando
Maltez. A mesma ideia de que não há descontrolo foi sublinhada pelo
secretário-geral do PS José Luís Carneiro.
Já à direita, a
leitura dos dados apresentados foi noutro sentido. No final da reunião, o
vice-presidente da bancada do PSD Ricardo Baptista Leite preferiu vincar que se
tinha falado de “segunda onda na Grande Lisboa”, tal como o líder do CDS,
Francisco Rodrigues dos Santos. Tanto André Ventura, do Chega, como Carla Castro,
da Iniciativa Liberal, assumiram terem ficado com dúvidas sobre as causas da
situação em Lisboa. Carla Castro considerou mesmo que a reunião foi
“frustrante”. O Presidente da República e outros representantes políticos -
como a deputada Mariana Silva, do PEV - recusaram a ideia de que se possa
responsabilizar apenas os jovens pela subida do número de casos na Grande
Lisboa.
Outra informação
avançada na reunião é que a aplicação móvel de rastreamento da covid-19, que
está a ser desenvolvida pelo Instituto de Engenharia de Sistemas e
Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC), aguardando apenas o parecer da
Comissão Nacional de Protecção de Dados, que deve ser conhecido antes do final
do mês. Mas o responsável pelo projecto chamou a atenção para a necessidade de
salvaguardar a capacidade técnica da aplicação para responder a uma eventual
procura massiva, já que na Alemanha uma aplicação idêntica foi descarregada por
oito milhões de pessoas no primeiro dia e entrou em colapso.
A questão do Rt –
que é o índice de transmissão do vírus – também gerou algum debate na reunião.
É que a Grande Lisboa tem um Rt de 1,08, ligeiramente mais baixo do que noutras
regiões do país, mas isso não significa que a situação esteja melhor nesta
região. Conforme os técnicos explicaram, quanto mais casos forem registados,
mais difícil se torna o Rt subir.
Na região Norte,
o aumento dos novos casos tem vindo a reduzir-se, rondando uma média de 50
casos diários. Ainda assim, o Rt está nos 1,13, mais alto do que na região de
Lisboa e Vale do Tejo. Mas aqui a explicação reside num surto de casos num lar
de Cinfães, que fez disparar a taxa de contágio no Norte. Já a região Centro
tem uma média de 20 novos casos por dia e um Rt fixo nos 1,08.
Vista à lupa, a
região de Lisboa e Vale do Tejo registou, entre 11 a 15 de Junho, um R mais
elevado em Sintra, com 0,977. Segue-se Odivelas (0,946), Lisboa (0,928),
Amadora (0,845) e Loures (0,834).
Apesar do aumento
do número de casos registados ser atribuído ao aumento da capacidade de
testagem, esta não é a única razão atrás do crescimento, reiteram os
especialistas. De 30 de Maio a 11 de Junho, foram realizados aproximadamente 14
mil testes na região de Lisboa e Vale do Tejo. Destes, aproximadamente 5% deram
positivo, o que se traduz, em termos globais, em cerca de 1,1 milhão de testes
realizados desde o início da pandemia e em 70 mil casos positivos.
Quanto à taxa de
ocupação dos cuidados de saúde, há casos pontuais de serviços assoberbados,
como é o caso do hospital Doutor Fernando Fonseca (antigo Amadora-Sintra), mas
na restante região a taxa de ocupação de internamentos com covid-19 continua
baixa. “Em Lisboa central está com 25% nos cuidados intensivos e no hospital de
Setúbal houve um ou dois casos de internamento nos últimos dias”, conta fonte
partidária.
Os especialistas
olharam também para o comportamento da população e não registaram diferenças
entre Lisboa e Vale do Tejo e o resto do país. Apesar de existirem mais pessoas
a sair de casa todos os dias, houve também um aumento da consciência de risco,
especialmente em Lisboa e Vale do Tejo. A excepção vai para os mais jovens, que
têm menos percepção do risco.
Naquela que foi a
10.º reunião entre especialistas de saúde e representantes do Parlamento,
Governo e Presidência as críticas repetem-se quanto à escassez de respostas e a
ausência de uma caracterização socioeconómica dos casos, que ajude a avaliar a
eficácia das estratégias escolhidas. “É preciso perceber se os casos registados
se devem a ajuntamentos ou ao uso de transportes públicos, por exemplo. Se não,
não adianta fechar cafés e lojas, se o problema for a sobrelotação de
transportes e falta de condições no trabalho”, disse ao PÚBLICO uma fonte
presente na reunião.
REPORTAGEM
Quando à pobreza se junta o medo: “Eu vou fugir daqui”
A pandemia só veio agravar uma situação que já era
delicada na Musgueira, na Ameixoeira e nas Galinheiras, bairros da única
freguesia de Lisboa que continua em situação de calamidade.
João Pedro Pincha
(Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia) 23 de Junho de 2020, 22:26
Já ninguém chama
Musgueira à Musgueira, só Alta de Lisboa. Os moradores mais antigos, que
declaram “vou a Lisboa” quando querem dizer que passam para lá do Campo Grande,
usam e repetem o nome para fazer desaparecer o estigma, para vincar que aquele
bocado ainda é cidade capital do país. Talvez eles próprios não acreditem muito
nisso – e a lembrança chega de forma estranha, quando a freguesia a que
pertencem, Santa Clara, é a única de Lisboa a manter-se em calamidade por causa
da pandemia.
Numa rua do bairro,
que fica praticamente encostado à zona norte do aeroporto, a irmã Ana Maria
Gomes abre caminho por entre pequenos grupos de pessoas e montes de lixo no
passeio para chegar à ludoteca que aqui gere a Congregação do Bom Pastor. Em
tempos normais a sala estaria cheia de miúdos saídos da escola ali mesmo em
frente, a Pintor Almada Negreiros, mas as cadeiras estão arredadas a um canto e
as mesas enchem-se de sacos de pão. “Semanalmente chegam-nos aqui pão, bolos e
alguns frescos”, explica a freira.
A realidade
obrigou-as a mudar o objectivo do espaço. Muito antes da pandemia, as irmãs
responderam ao apelo da Refood mais próxima para ajudarem a distribuir comida
no bairro e já tinham uma lista considerável de pessoas apoiadas. A covid-19
veio aumentá-la. “Não andamos longe das 80 famílias”, diz Ana Maria Gomes,
revelando que da última entrega só lhe sobraram alguns pães antigos, porque os
frescos foram todos.
Não lhe causa
estranheza que Santa Clara seja uma das 19 freguesias que o Governo decidiu
manter a situação de calamidade na Área Metropolitana de Lisboa. “As pessoas
têm casas pequenas, acabam por vir para a rua e ficam com os vizinhos a fazer
sala. As famílias já estiveram mais atentas às medidas de distância, mas
cansam-se. Agora já se vêem festas de aniversário e ajuntamentos nos cafés.
Têm-se descuidado mais”, comenta.
Na continuação da
rua encontra-se um quarteirão isolado, sem saída, o chamado PER 10, construído,
como todos os do Programa Especial de Realojamento, para dar casa a pessoas que
viviam em barracas. “Eu vou fugir daqui, vou para casa de uma tia”, afirma Ana
Botelho. “Aqui havia uma pessoa infectada no sábado e agora já são quatro”,
descreve. Na rua que contorna o bairro há grupos à conversa e famílias que
jantam aproveitando o sol do fim da tarde. “Eu só saio de casa mesmo em estado
de necessidade, mas as pessoas continuam a fazer vida normal. Toda a gente se
conhece, toda a gente se cruza. Tenho um filho e tenho medo, porque esta zona
está a ficar mesmo perigosa para apanhar o vírus”, diz a moradora.
Pobreza e
abandono
O Eixo Norte-Sul
divide Santa Clara ao meio e funciona como barreira entre duas faces da mesma
freguesia. Na Ameixoeira já não se encontra lixo espalhado pelo chão e as ruas
estão cuidadas. Na junta de freguesia não se encontra nenhum membro do
executivo, informa uma funcionária.
Já quase a chegar
à freguesia de Camarate, no concelho de Loures, que também é uma das 19 sob
vigilância especial, dá-se com as Galinheiras. No largo central descansam os
motoristas da Carris e pequenos grupos convivem à sombra. José Alcindo Armas,
pároco da Charneca, descarrega pêssegos e ananases de uma carrinha. “Aqui a
realidade é pobreza a todos os níveis: material, de educação e de consciência”,
resume.
O núcleo antigo
das Galinheiras é composto por vilas de uma só rua e casinhas baixas. Maria da
Ascensão Vieira, que explora um café, lamenta a má sorte do bairro. “Até a
Musgueira mudou de nome, só aqui às Galinheiras é que ninguém vem pôr um nome
pomposo”, diz, apontando para um caixote de lixo a abarrotar, que indica como
sinal de como a junta e a câmara olham pouco para esta zona.
“Galinheiras
funciona como um bairro dormitório de Lisboa, mas está a 10 minutos do Campo
Grande e a 20 do centro”, lembra o padre Alcindo. Grande parte da população que
aqui reside, sobretudo de origem africana e cigana, “trabalha na restauração e
nas limpezas” e habita “casas com poucas condições pelas quais pagam rendas
altíssimas”, descreve. O pároco conta a história de um homem que “apanhou o
vírus a trabalhar e transmitiu-o a toda a família, mas não por querer. Foi
porque não tinha outra solução. Ou ia viver para a rua ou contaminava a
família. É muito difícil fazer isolamento aqui.”
Também presidente
do centro social e paroquial, José Alcindo diz ter avisado os trabalhadores de
que a pandemia chegaria ali em força em Abril. E chegou, com muitas pessoas
infectadas e com muitas mais a pedir ajuda. Nas Galinheiras o número de
famílias a receber apoio alimentar passou de 41 para 51 em poucas semanas e na
Charneca disparou de 76 para 101. Há ainda mais 26 famílias que recebem um
apoio mensal e 50 pessoas que, na semana passada, passaram a usufruir de uma
refeição diária.
“Aqui há pobreza
e abandono. Não estamos a falar de um tipo de pobreza que a pandemia trouxe,
ela já existia antes”, diz o pároco. “Recebemos ontem um mail da Cáritas a
perguntar se podíamos ajudar mais famílias, mas não podemos mais, atingimos o
nosso limite.”
Na Ameixoeira
notou-se igualmente um aumento significativo dos pedidos de ajuda alimentar,
que continuam a chegar. “De duas em duas semanas recebemos uma nova listagem
com seis, oito, 15 nomes”, afirma Sandra Fonte Santa, directora técnica do
centro social, adiantando que estão a receber alimentos 126 pessoas, das quais
29 são crianças. “Muitas pessoas deixaram de fazer limpezas e ficaram sem
trabalho. O desemprego deve ter disparado”, arrisca a responsável. “As
condições más já lá estavam, o cenário não mudou, quanto muito agravou-se.”
Tal como na
ludoteca da Musgueira, as principais valências do centro ficaram adiadas pela
emergência do combate à pandemia, mas agora começam a surgir outros problemas.
“Os nossos utentes do centro de dia estão em casa, muito deprimidos e com
dificuldades de locomoção”, diz Sandra. “Vamos ficar sem três porque não
aguentam estar em casa e decidiram ir para lares.”
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