quarta-feira, 24 de junho de 2020

“Segunda vaga” vs. “não há descontrolo”. Peritos sem explicação para o que se passa na região de Lisboa / Quando à pobreza se junta o medo: “Eu vou fugir daqui”



COVID-19
“Segunda vaga” vs. “não há descontrolo”. Peritos sem explicação para o que se passa na região de Lisboa

Especialistas rejeitam que o aumento dos testes explique por si só o aumento de casos registados. App está pronta.

Sofia Rodrigues, Marta Moitinho Oliveira e Liliana Borges 24 de Junho de 2020, 20:06

A reunião desta manhã entre o Presidente da República, primeiro-ministro e dirigentes políticos com especialistas resultou numa divergência de pontos de vista sobre a situação na Grande Lisboa, com interpretações diferentes do que foi dito pelos técnicos. A região pode estar a viver a segunda vaga de covid-19, houve quem admitisse, mas também faltam explicações para esta evolução na região. Marcelo Rebelo de Sousa garantiu, no entanto, que não há “descontrolo” da pandemia.

A incidência de casos de infecção em quatro concelhos de Lisboa e Vale do Tejo - Sintra, Amadora, Odivelas e Loures - pode representar o início de uma segunda vaga de covid-19 na região. A tese foi dada pelo epidemiologista Baltazar Nunes, do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, quando respondia ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, que questionou os especialistas sobre uma eventual segunda vaga no país.

Pandemia de covid-19 “está a crescer a um ritmo alarmante”, diz director-geral da OMS“O epidemiologista acha que estamos perante uma segunda vaga”, contou um participante no encontro, acrescentando, porém, que uma segunda onda terá uma “dimensão inferior” à primeira. Em termos técnicos, quando há uma subida de casos, um “plateau” (um planalto) e uma nova subida já se está na segunda vaga, o que corresponde ao retrato da região da Grande Lisboa, terá defendido o especialista.


Tanto as declarações que foram feitas à saída da reunião como as que foram ouvidas nos relatos feitos ao PÚBLICO é visível que os técnicos de saúde não arriscaram explicações definitivas para o que se passa na região de Lisboa. “O caso da construção civil é um dos melhores para mostrar a ausência de explicações. Este sector nunca esteve confinado. E, portanto, não se percebe por que motivo a contaminação aparece agora. Por que sucede agora e não antes? Além disso, há construção civil na região de Lisboa mas também no Norte e no Algarve e não há explicação para o facto de acontecerem surtos de infecção em Lisboa e não nas outras regiões”, observa um dos presentes na reunião.

Esta ausência de explicações preocupa este participante que considera estas reuniões cada vez menos úteis para o decisor político. “Isto deixa um político às escuras, já que tem de decidir sem suporte técnico”, afirma, acrescentando que nesta reunião os epidemiologistas estiveram duas horas a fazer apresentações sem falar sobre o tema que estava a cabeça de todos: o que está a acontecer na região de Lisboa e porquê. O tema só surgiu na fase de perguntas e respostas.

Nesta região de Lisboa há 53 surtos identificados (dos 65 em todo o país), mas há entre 15% a 20% dos casos que não têm as cadeias de transmissão identificadas. Esta situação motiva preocupação aos técnicos, que temem a propagação a outras zonas do país.

Relativamente aos testes de despistagem, os especialistas afastaram a ideia – defendida pelo primeiro-ministro - de que o seu aumento seja o responsável exclusivo pelo registo de um número de casos mais elevado na Grande Lisboa, tendo referido que é preciso olhar também para o número de hospitalizações e de internamentos em cuidados intensivos.

As dúvidas sobre o que está a acontecer na região foram assumidas pelo próprio Presidente da República, no final da reunião. “Depois de ter tido uma subida inicial, Lisboa não teve a descida do Norte e do Centro. Porquê a subida? É porque há dados novos ou conhecimento novo de dados antigos?”, questionou, remetendo respostas para os resultados dos inquéritos epidemiológicos que estão a ser feitos no terreno.

De qualquer forma, Marcelo Rebelo de Sousa tentou contrariar a ideia de que a situação na Grande Lisboa esteja “descontrolada”, que tinha sido assumida de manhã, na Rádio Renascença, pelo director de infecciologia do Hospital Curry Cabral, Fernando Maltez. A mesma ideia de que não há descontrolo foi sublinhada pelo secretário-geral do PS José Luís Carneiro.

Já à direita, a leitura dos dados apresentados foi noutro sentido. No final da reunião, o vice-presidente da bancada do PSD Ricardo Baptista Leite preferiu vincar que se tinha falado de “segunda onda na Grande Lisboa”, tal como o líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos. Tanto André Ventura, do Chega, como Carla Castro, da Iniciativa Liberal, assumiram terem ficado com dúvidas sobre as causas da situação em Lisboa. Carla Castro considerou mesmo que a reunião foi “frustrante”. O Presidente da República e outros representantes políticos - como a deputada Mariana Silva, do PEV - recusaram a ideia de que se possa responsabilizar apenas os jovens pela subida do número de casos na Grande Lisboa.

Outra informação avançada na reunião é que a aplicação móvel de rastreamento da covid-19, que está a ser desenvolvida pelo Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC), aguardando apenas o parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados, que deve ser conhecido antes do final do mês. Mas o responsável pelo projecto chamou a atenção para a necessidade de salvaguardar a capacidade técnica da aplicação para responder a uma eventual procura massiva, já que na Alemanha uma aplicação idêntica foi descarregada por oito milhões de pessoas no primeiro dia e entrou em colapso.

A questão do Rt – que é o índice de transmissão do vírus – também gerou algum debate na reunião. É que a Grande Lisboa tem um Rt de 1,08, ligeiramente mais baixo do que noutras regiões do país, mas isso não significa que a situação esteja melhor nesta região. Conforme os técnicos explicaram, quanto mais casos forem registados, mais difícil se torna o Rt subir.

Na região Norte, o aumento dos novos casos tem vindo a reduzir-se, rondando uma média de 50 casos diários. Ainda assim, o Rt está nos 1,13, mais alto do que na região de Lisboa e Vale do Tejo. Mas aqui a explicação reside num surto de casos num lar de Cinfães, que fez disparar a taxa de contágio no Norte. Já a região Centro tem uma média de 20 novos casos por dia e um Rt fixo nos 1,08.

Vista à lupa, a região de Lisboa e Vale do Tejo registou, entre 11 a 15 de Junho, um R mais elevado em Sintra, com 0,977. Segue-se Odivelas (0,946), Lisboa (0,928), Amadora (0,845) e Loures (0,834).

Apesar do aumento do número de casos registados ser atribuído ao aumento da capacidade de testagem, esta não é a única razão atrás do crescimento, reiteram os especialistas. De 30 de Maio a 11 de Junho, foram realizados aproximadamente 14 mil testes na região de Lisboa e Vale do Tejo. Destes, aproximadamente 5% deram positivo, o que se traduz, em termos globais, em cerca de 1,1 milhão de testes realizados desde o início da pandemia e em 70 mil casos positivos.

Quanto à taxa de ocupação dos cuidados de saúde, há casos pontuais de serviços assoberbados, como é o caso do hospital Doutor Fernando Fonseca (antigo Amadora-Sintra), mas na restante região a taxa de ocupação de internamentos com covid-19 continua baixa. “Em Lisboa central está com 25% nos cuidados intensivos e no hospital de Setúbal houve um ou dois casos de internamento nos últimos dias”, conta fonte partidária.

Os especialistas olharam também para o comportamento da população e não registaram diferenças entre Lisboa e Vale do Tejo e o resto do país. Apesar de existirem mais pessoas a sair de casa todos os dias, houve também um aumento da consciência de risco, especialmente em Lisboa e Vale do Tejo. A excepção vai para os mais jovens, que têm menos percepção do risco.

Naquela que foi a 10.º reunião entre especialistas de saúde e representantes do Parlamento, Governo e Presidência as críticas repetem-se quanto à escassez de respostas e a ausência de uma caracterização socioeconómica dos casos, que ajude a avaliar a eficácia das estratégias escolhidas. “É preciso perceber se os casos registados se devem a ajuntamentos ou ao uso de transportes públicos, por exemplo. Se não, não adianta fechar cafés e lojas, se o problema for a sobrelotação de transportes e falta de condições no trabalho”, disse ao PÚBLICO uma fonte presente na reunião.





REPORTAGEM
Quando à pobreza se junta o medo: “Eu vou fugir daqui”

A pandemia só veio agravar uma situação que já era delicada na Musgueira, na Ameixoeira e nas Galinheiras, bairros da única freguesia de Lisboa que continua em situação de calamidade.

João Pedro Pincha (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia) 23 de Junho de 2020, 22:26

Já ninguém chama Musgueira à Musgueira, só Alta de Lisboa. Os moradores mais antigos, que declaram “vou a Lisboa” quando querem dizer que passam para lá do Campo Grande, usam e repetem o nome para fazer desaparecer o estigma, para vincar que aquele bocado ainda é cidade capital do país. Talvez eles próprios não acreditem muito nisso – e a lembrança chega de forma estranha, quando a freguesia a que pertencem, Santa Clara, é a única de Lisboa a manter-se em calamidade por causa da pandemia.

Numa rua do bairro, que fica praticamente encostado à zona norte do aeroporto, a irmã Ana Maria Gomes abre caminho por entre pequenos grupos de pessoas e montes de lixo no passeio para chegar à ludoteca que aqui gere a Congregação do Bom Pastor. Em tempos normais a sala estaria cheia de miúdos saídos da escola ali mesmo em frente, a Pintor Almada Negreiros, mas as cadeiras estão arredadas a um canto e as mesas enchem-se de sacos de pão. “Semanalmente chegam-nos aqui pão, bolos e alguns frescos”, explica a freira.

A realidade obrigou-as a mudar o objectivo do espaço. Muito antes da pandemia, as irmãs responderam ao apelo da Refood mais próxima para ajudarem a distribuir comida no bairro e já tinham uma lista considerável de pessoas apoiadas. A covid-19 veio aumentá-la. “Não andamos longe das 80 famílias”, diz Ana Maria Gomes, revelando que da última entrega só lhe sobraram alguns pães antigos, porque os frescos foram todos.

Não lhe causa estranheza que Santa Clara seja uma das 19 freguesias que o Governo decidiu manter a situação de calamidade na Área Metropolitana de Lisboa. “As pessoas têm casas pequenas, acabam por vir para a rua e ficam com os vizinhos a fazer sala. As famílias já estiveram mais atentas às medidas de distância, mas cansam-se. Agora já se vêem festas de aniversário e ajuntamentos nos cafés. Têm-se descuidado mais”, comenta.

Na continuação da rua encontra-se um quarteirão isolado, sem saída, o chamado PER 10, construído, como todos os do Programa Especial de Realojamento, para dar casa a pessoas que viviam em barracas. “Eu vou fugir daqui, vou para casa de uma tia”, afirma Ana Botelho. “Aqui havia uma pessoa infectada no sábado e agora já são quatro”, descreve. Na rua que contorna o bairro há grupos à conversa e famílias que jantam aproveitando o sol do fim da tarde. “Eu só saio de casa mesmo em estado de necessidade, mas as pessoas continuam a fazer vida normal. Toda a gente se conhece, toda a gente se cruza. Tenho um filho e tenho medo, porque esta zona está a ficar mesmo perigosa para apanhar o vírus”, diz a moradora.

Pobreza e abandono
O Eixo Norte-Sul divide Santa Clara ao meio e funciona como barreira entre duas faces da mesma freguesia. Na Ameixoeira já não se encontra lixo espalhado pelo chão e as ruas estão cuidadas. Na junta de freguesia não se encontra nenhum membro do executivo, informa uma funcionária.

Já quase a chegar à freguesia de Camarate, no concelho de Loures, que também é uma das 19 sob vigilância especial, dá-se com as Galinheiras. No largo central descansam os motoristas da Carris e pequenos grupos convivem à sombra. José Alcindo Armas, pároco da Charneca, descarrega pêssegos e ananases de uma carrinha. “Aqui a realidade é pobreza a todos os níveis: material, de educação e de consciência”, resume.

O núcleo antigo das Galinheiras é composto por vilas de uma só rua e casinhas baixas. Maria da Ascensão Vieira, que explora um café, lamenta a má sorte do bairro. “Até a Musgueira mudou de nome, só aqui às Galinheiras é que ninguém vem pôr um nome pomposo”, diz, apontando para um caixote de lixo a abarrotar, que indica como sinal de como a junta e a câmara olham pouco para esta zona.

“Galinheiras funciona como um bairro dormitório de Lisboa, mas está a 10 minutos do Campo Grande e a 20 do centro”, lembra o padre Alcindo. Grande parte da população que aqui reside, sobretudo de origem africana e cigana, “trabalha na restauração e nas limpezas” e habita “casas com poucas condições pelas quais pagam rendas altíssimas”, descreve. O pároco conta a história de um homem que “apanhou o vírus a trabalhar e transmitiu-o a toda a família, mas não por querer. Foi porque não tinha outra solução. Ou ia viver para a rua ou contaminava a família. É muito difícil fazer isolamento aqui.”

Também presidente do centro social e paroquial, José Alcindo diz ter avisado os trabalhadores de que a pandemia chegaria ali em força em Abril. E chegou, com muitas pessoas infectadas e com muitas mais a pedir ajuda. Nas Galinheiras o número de famílias a receber apoio alimentar passou de 41 para 51 em poucas semanas e na Charneca disparou de 76 para 101. Há ainda mais 26 famílias que recebem um apoio mensal e 50 pessoas que, na semana passada, passaram a usufruir de uma refeição diária.

“Aqui há pobreza e abandono. Não estamos a falar de um tipo de pobreza que a pandemia trouxe, ela já existia antes”, diz o pároco. “Recebemos ontem um mail da Cáritas a perguntar se podíamos ajudar mais famílias, mas não podemos mais, atingimos o nosso limite.”

Na Ameixoeira notou-se igualmente um aumento significativo dos pedidos de ajuda alimentar, que continuam a chegar. “De duas em duas semanas recebemos uma nova listagem com seis, oito, 15 nomes”, afirma Sandra Fonte Santa, directora técnica do centro social, adiantando que estão a receber alimentos 126 pessoas, das quais 29 são crianças. “Muitas pessoas deixaram de fazer limpezas e ficaram sem trabalho. O desemprego deve ter disparado”, arrisca a responsável. “As condições más já lá estavam, o cenário não mudou, quanto muito agravou-se.”

Tal como na ludoteca da Musgueira, as principais valências do centro ficaram adiadas pela emergência do combate à pandemia, mas agora começam a surgir outros problemas. “Os nossos utentes do centro de dia estão em casa, muito deprimidos e com dificuldades de locomoção”, diz Sandra. “Vamos ficar sem três porque não aguentam estar em casa e decidiram ir para lares.”

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