OPINIÃO
A saudação fascista de André Ventura
Há uma frase famosa da jornalista Salena Zito que se
impôs como o resumo perfeito das eleições americanas de 2016: a imprensa levou
Trump “literally, but not seriously”, enquanto os seus apoiantes o levaram
“seriously, but not literally”. Ventura está à procura do mesmo.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
30 de Junho de
2020, 0:20
O grande tema das
redes sociais deste fim-de-semana consistiu em saber se o braço levantado, com
a mão esticada, de André Ventura na manifestação do Chega correspondeu, ou não,
a um gesto intencional. Uns garantiam que sim, que aquilo era definitivamente a
saudação fascista. Outros afirmavam que não, e até tinham para troca outras
fotos em que Ventura aparecia de punho fechado, como um bom camarada.
A minha tese é
magnânima: ambos têm razão. Por um lado, parece-me evidente que o gesto foi
propositado. Não há braços levantados assim, por distracção, em manifestações
de direita radical. Aquilo foi feito para ser fotografado e para ser falado – e
conseguiu os seus objectivos. Mas, por outro lado, é também evidente que se
perguntarem a André Ventura se ele fez a saudação fascista, a resposta será
“não”, que é um equívoco mal-intencionado, que só estava a acenar às pessoas e
que os fascistas não têm lugar no Chega.
Contradição? Sim,
mas propositada e bem planeada. Porque é neste território ambíguo que Ventura
vem fazendo carreira. Vale a pena perder algum tempo a desmontar o mecanismo,
para que no futuro ninguém possa dizer que foi ao engano.
André Ventura tem
acumulado declarações absolutamente escabrosas nos últimos tempos, e isso é uma
estratégia retirada da mais elementar cartilha trumpista. Há uma frase famosa
da jornalista Salena Zito que se impôs como o resumo perfeito das eleições
americanas de 2016: a imprensa levou Trump “literally, but not seriously”,
enquanto os seus apoiantes o levaram “seriously, but not literally”. Ventura
está à procura do mesmo – atrai os holofotes para cima de si com palavras ou
gestos tão chocantes que captam a atenção dos media e das redes, para logo de
seguida desvalorizar o seu conteúdo como mero sarcasmo, tiradas provocantes
para épater les bourgeois (de esquerda, claro) ou interpretações “desajustadas”
das suas reais intenções.
Só nos últimos
dias, Ventura escreveu no Twitter coisas como: “Joana Amaral Dias gostava de
ter um tête-à-tête comigo no Parlamento. Para isso tinha de pintar menos os
lábios e ter mais do que 0,3% nas eleições em Lisboa.” Ou: “Quando encontrar no
Parlamento a deputada e ex-ministra Ana Paula Vitorino vou dizer-lhe que tem de
ter mais atenção a passar a ferro as roupas do marido.” Já para não falar nos
comentários australopitecos sobre Filomena Cautela e Mariana Mortágua. Tudo
aquilo é tão ostensivamente escabroso que se torna impossível esconder o fato
de palhaço.
É muito pouco
provável que André Ventura, o homem que tem um coelhinho de estimação – o
Hitlerilas, como lhe chamou Ricardo Araújo Pereira –, seja uma besta machista.
Não porque não existam ainda bestas machistas, mas porque mesmo as que existem
já não são assim tão ostensivas. Se perguntarem a Ventura se o papel das
mulheres é passar a roupa aos maridos, ele dirá: “Claro que não.” E, desta
forma, os machistas podem votar nele, porque ele disse aquilo; e os
não-machistas também podem, porque ele disse que não queria dizer aquilo.
Em tempos de
vigilância redobrada da linguagem, os Trumps e Venturas deste mundo descobriram
que a grunhice não-literal rende triplamente. Quem odeia sobrevaloriza; quem
gosta desvaloriza; e quem desconfia gasta textos como este, a explicar a
estratégia. Ventura ganha sempre. Qual é a solução para sair disto?
Provavelmente o cansaço. A artimanha é de tal forma primária que talvez um dia
– haja esperança – o truque do palhaço já não consiga enganar ninguém.
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