sábado, 27 de junho de 2020

Corrupção e democracia / A corrupção e os 26 mil milhões da UE



 IMAGENS DE OVOODOCORVO



 IMAGENS DE OVOODOCORVO


OPINIÃO
Corrupção e democracia

Em ditadura ou em democracia, com economia de mercado ou sob dirigismo estatal, os procedimentos informais, a meio caminho entre o nepotismo e a corrupção, sempre informaram a sociedade e a política portuguesas.

ANTÓNIO BARRETO
28 de Junho de 2020, 7:21

Notícias recentes, quase em sequência, marcaram a retoma gradual de actividade na área da Justiça. Depois de uma espécie de hibernação misteriosa, os processos relativos ao BES, a Sócrates, à EDP, às Parcerias Público Privadas e a outros temas delicados deram sinais de vida. Ainda nos encontramos em fase de intensidade processual, de recursos, de diligências de recusa e de manobras de diversão, mas houve movimento, o que de imediato se saúda.

Directa ou indirectamente, estão em causa aspectos essenciais da vida portuguesa: a corrupção, o nepotismo, o tráfico de influências e o favoritismo. São problemas fáceis de avaliar: todos são contra. Quando aprofundamos um pouco, damo-nos conta de que quase todos são contra os pecados dos outros! Os dos próprios, simplesmente, não são pecados. A corrupção do adversário é péssima, a do aliado tem explicação. O nepotismo dos rivais é condenável, o dos amigos tem justificação. O tráfico de influências dos concorrentes é detestável, o dos correligionários é confiança política.

O pior de tudo é a banalização da corrupção. A normalidade do nepotismo. A democratização do tráfico de influências. Por outras palavras, o que se faz não é corrupção, não é nepotismo, nem é tráfico de influências. Terá outros nomes: eficácia, confiança política, prontidão, proximidade, justa recompensa e até direito legítimo. Mas, muitas vezes, não são. Trata-se de eufemismos destinados a encobrir realidades bem mais sórdidas.

Ora, é esta normalidade que está na origem e na perenidade da corrupção habitual e da justiça impotente. É, por exemplo, uma tradição consolidada: o uso do poder político para fazer e desfazer empresas ou fortunas, obter concessões e autorizações, proporcionar empréstimos e alimentar grupos económicos!

A democracia encontrou uma fórmula consagrada, “é o poder político que manda no poder económico”. “O primado do poder político” faz com que se admita um poder político discricionário relativamente ao poder económico. Ou ao poder social ou cultural, se é que tais entidades existem. O “primado do poder político” poderia entender-se como o “primado do soberano”, ou da decisão do povo, mas não como o primado funcionários, deputados ou membros do Governo. Na verdade, o primado do soberano não é a mesma coisa do que o primado do burocrata executivo.

Em ditadura ou em democracia, com economia de mercado ou sob dirigismo estatal, os procedimentos informais, a meio caminho entre o nepotismo e a corrupção, sempre informaram a sociedade e a política portuguesas. Nunca ou raramente a justiça foi intolerante, quase sempre a religião foi condescendente e jamais a política condenou tais comportamentos. As famílias e as profissões também não. Os adversários deste sistema, que os há, são tantas vezes impotentes! E os progressos, por vezes reais, tão lentos!

Absolutistas e liberais; monárquicos e republicanos; católicos e maçónicos; democratas e socialistas; fascistas e comunistas; todos aceitaram regras ocultas de base. Primeira: é o poder político que define, alimenta e protege o poder económico. Segunda: o trânsito entre o poder político e o poder económico é fácil. Terceira: um partido político vencedor de eleições tem o direito de recorrer à “confiança política”, a fim de proceder a nomeações, conceder autorizações e tomar iniciativas de investimentos. Quarta: os processos de corrupção e nepotismo têm desculpa, se for para o “bem comum”, como sejam a criação de emprego, a promoção de minorias e a protecção do sistema político.

O poder político tem usado todos os dispositivos imagináveis: roubo, esbulho, expropriação sem indemnização ou com esta calculada pelas autoridades… Alvarás, autorizações, licenças para criação de empresa, ocupação de posição no mercado, protecção da concorrência, “condicionamento” industrial, financiamentos bonificados e fixação de margens: todos estes mecanismos elaborados para conter o mercado, regular a concorrência, evitar as falências ou os desastres económicos, tiveram como resultado favorecer grupos do poder económico e interesses de titulares de poder político. O “cambão” empresarial e a “confiança política” são as duas grandes chagas da sociedade, da economia e da política.

Os últimos anos, talvez duas ou três décadas, têm assistido a algumas iniciativas (leis, instituições, regras europeias…) no sentido de “moralizar” os ímpetos, mas nunca erradicaram as tradições que criaram o Estado fazedor de poder económico, nem o poder político de “confiança”. A categoria espanhola dita dos “amigos políticos” é exactamente isso, a “confiança política”. Só que em Portugal a “confiança política” figura explicitamente nas regras e na tradição.

Mais do que o interesse imediato ou a ambição, mais do que o bairrismo dos vizinhos ou a parceria dos cúmplices, há um espírito e um clima que inspiram comportamentos perante os quais soçobra a lei. Os ricos pensam que tudo lhes é permitido, por serem ricos. As “pessoas bem” acham que devem ter o que querem, porque é assim. Os militantes dos partidos, sobretudo os que ganham eleições, entendem que a democracia é isso mesmo, uma distribuição de despojos. Os sindicalistas crêem que a democracia foi feita para os trabalhadores, o que se deve traduzir em vantagens. Os católicos aceitam que o povo de Deus deve receber os devidos benefícios, porque é natural que assim seja. Os maçons não têm Deus nem Mestre, mas devem ter privilégios, porque deles é a virtude cívica. A esquerda entende que a política deve comandar a economia. A direita não acha errado que a política se possa submeter à economia.

É este espírito que faz com que seja natural que os seus ajudem os seus. Que as tribos e as comunidades tenham a sua força. Jovens, mulheres, negros, velhos, doentes, trabalhadores, minorias e cultos acreditam piamente que todas as medidas e todos os gestos que desfaçam desigualdades e que promovam antigos oprimidos e explorados têm absoluto fundamento.

O problema é ter a certeza de que, quando não houver tribos nem comunidades, quando não houver pessoas do mesmo grupo ou com a mesma crença, quando só houver gente da mesma condição, quando tivermos a igualdade total, nessa altura, estaremos a viver em plena ditadura totalitária. E teremos uma sociedade sem corrupção. E sem liberdade.


IMAGENS DE OVOODOCORVO

OPINIÃO
A corrupção e os 26 mil milhões da UE 

Para o dinheiro ser bem gasto, é preciso melhorar a transparência e o escrutínio. Senão, mais milhão, menos milhão, o dinheiro da UE não nos vai servir de nada.

SUSANA PERALTA
5 de Junho de 2020, 0:00

Quando, em setembro de 2019, se soube que Elisa Ferreira iria ter a pasta da Coesão e Reformas da Comissão Europeia, o país político extasiou-se com a possibilidade de Portugal beneficiar de mais fundos. Na altura, escrevi nas páginas do PÚBLICO que estávamos “a discutir a UE na perspetiva do adolescente à espera da semanada”. A discussão recente em torno dos 26 mil milhões da Comissão Europeia não foi além disso. Desanimador.

Recordemos que um orçamento tem dois lados: a despesa e a receita. Na despesa, a proposta “Next Generation EU” da Comissão Europeia (CE) prevê 750 mil milhões de euros para relançar a economia até 2024, dos quais 500 mil milhões seriam transferidos para os países a fundo perdido. Juntam-se 540 já aprovados para combater a crise no imediato e reforços pontuais do quadro financeiro plurianual entre 2021 e 2027, que a CE espera atinjam 1,1 biliões. E a receita? A CE quer emitir 750 mil milhões de dívida, a ser paga em prazos variáveis entre 2027 e 2058. Para convencer os investidores de que é boa ideia emprestar dinheiro, os países terão de comprometer-se a aumentar a sua contribuição futura para o orçamento europeu, até 2% do seu rendimento nacional bruto. Além disso, a CE espera obter receita através de novos impostos europeus.

Porque é que não percebo o entusiasmo pueril com os 26 mil milhões? Por três razões. Em primeiro lugar, nada nos garante que eles cheguem. Em segundo lugar, não são a parte mais interessante nem a mais progressista do pacote da CE. Em terceiro lugar, mesmo que cheguem, há o risco real de serem mal gastos.

O “Next Generation EU” tem muito peso político, por se inspirar na posição conjunta de Merkel e Macron, mas por enquanto é uma proposta. O calendário não deixa dúvidas: até julho, Conselho Europeu; até ao final do verão, consulta ao Parlamento Europeu; regresso ao Conselho Europeu em outubro. Ora: no Conselho Europeu as decisões são tomadas por unanimidade e há muita coisa no pacote (dívida comum, transferências a fundo perdido, impostos europeus, aumento das contribuições nacionais para orçamentos futuros) que não agrada a todos os países.

Mesmo que seja aprovado, não sabemos quanto nos chegará. Os 26 mil milhões que tanta tinta gastaram são uma estimativa de um documento a que as agências noticiosas tiveram acesso. Não existem nos documentos públicos de apresentação do plano; nem podiam, porque o “Next Generation EU" é um conjunto de vários instrumentos e cada um deles vai ter diferentes condições de acesso: Mecanismo de Recuperação e Resiliência, Assistência à Recuperação para a Coesão e os Territórios da Europa, reforços dos Programas de Desenvolvimento Rural e Mecanismo para uma Transição Justa, Instrumento de Apoio à Solvabilidade, Mecanismo de Investimento Estratégico, Programa InvestEU, novo programa de saúde, RescEU, programas de investigação, inovação e ação externa. Só transcrevi aqui a longa lista de instrumentos para imaginarmos como será a ainda mais longa lista de condições. Não, não nos vai cair um cheque na conta de um dia para o outro.

Depois, está a fatura, que também não conhecemos. A Bloomberg e o think tank alemão ZEW fizeram estimativas com base na proposta de Merkel e Macron (que era de 500 mil milhões a fundo perdido), usando as regras de contribuição existentes e distribuindo as ajudas em função do decréscimo do PIB e do aumento do desemprego. Ambas concluem que Portugal será um contribuinte líquido (entre 0 e 0,4% do PIB para a Bloomberg, entre 0,04 e 0,9% do PIB para a ZEW). Não sabemos como vai ser com o “Next Generation EU", mas o que é certo é que não seremos grandes beneficiários líquidos.

Isto não quer dizer que o plano seja mau para Portugal. A dívida comum permite fazer um esforço de investimento nos próximos anos que dificilmente faríamos de outra forma. Se beneficiarmos de parte do montante a fundo perdido, a dívida portuguesa não sobe. E há mais: o “Next Generation EU” abre a porta a reformas que seriam inimagináveis no mundo pré-covid. Os impostos europeus sobre as grandes empresas, as plataformas digitais e emissões de carbono aumentam a disponibilidade de fundos no conjunto dos países. São bases fiscais que uma pequena economia como a portuguesa não consegue tributar sem coordenação europeia. Mais do que dividir recursos, é aumentando os recursos públicos disponíveis que se faz a diferença. A transição energética e digital, que já estava na agenda antes da pandemia, ganhou um orçamento reforçado. A principal barreira à transição energética é que cada empresa individualmente tem mais a perder do que a ganhar se se tornar mais verde. Em casos destes, com perdas individuais e ganhos coletivos, é fundamental uma gestão coordenada à escala europeia que permita que os muitos que ganham compensem quem perde.

Finalmente, o mais crítico: para o dinheiro ser bem gasto, é preciso melhorar a transparência e o escrutínio. Senão, mais milhão, menos milhão, o dinheiro da UE não nos vai servir de nada.

O novo paraministro, António Costa Silva, afirmou que Portugal tem instituições de qualidade. Nem por isso. De resto, a informalidade de termos um paraministro a pensar no plano para gastar os putativos 26 mil milhões é, por si só, um péssimo sinal
Saiu esta semana o relatório anual do GRECO (Group of States Against Corruption), uma iniciativa do Conselho da Europa que desde 1999 faz recomendações aos países para combater a corrupção. Em Portugal, falta implementar 40% das medidas recomendadas na quarta ronda, há já seis anos. Um estudo do Parlamento Europeu de 2016 colocou Portugal no segundo grupo de países mais corruptos da UE. O mesmo Parlamento Europeu e a CE denunciaram várias vezes o esquema de “vistos gold" como uma porta aberta à lavagem de dinheiro. O Índice de Transparência Orçamental – uma iniciativa da International Budget Partnership que tem como parceiro português o Instituto de Políticas Públicas – tem assinalado áreas de opacidade preocupantes no Orçamento do Estado, onde sobressaem compromissos plurianuais como as PPP ou as transferências para o sector financeiro. Ainda há pouco tempo ficámos a saber que o contrato de venda do Novo Banco à Lone Star não é público e não passou pelo escrutínio do Parlamento. Agora, o Governo está a preparar-se para gastar mais de mil milhões na TAP sem nos ter mostrado planos de viabilidade da empresa, quanto espera gastar nos próximos anos e em que cenários.

Com tantas instituições internacionais a dizer o contrário, o novo paraministro, António Costa Silva, afirmou num webinar da Ordem dos Engenheiros a 18 de maio que Portugal tem instituições de qualidade. Nem por isso. De resto, a informalidade de termos um paraministro a pensar no plano para gastar os putativos 26 mil milhões é, por si só, um péssimo sinal.

Sem comentários: