IMAGENS DE OVOODOCORVO
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OPINIÃO
Corrupção e democracia
Em ditadura ou em democracia, com economia de mercado ou
sob dirigismo estatal, os procedimentos informais, a meio caminho entre o
nepotismo e a corrupção, sempre informaram a sociedade e a política
portuguesas.
ANTÓNIO BARRETO
28 de Junho de
2020, 7:21
Notícias
recentes, quase em sequência, marcaram a retoma gradual de actividade na área
da Justiça. Depois de uma espécie de hibernação misteriosa, os processos
relativos ao BES, a Sócrates, à EDP, às Parcerias Público Privadas e a outros
temas delicados deram sinais de vida. Ainda nos encontramos em fase de
intensidade processual, de recursos, de diligências de recusa e de manobras de
diversão, mas houve movimento, o que de imediato se saúda.
Directa ou
indirectamente, estão em causa aspectos essenciais da vida portuguesa: a
corrupção, o nepotismo, o tráfico de influências e o favoritismo. São problemas
fáceis de avaliar: todos são contra. Quando aprofundamos um pouco, damo-nos
conta de que quase todos são contra os pecados dos outros! Os dos próprios,
simplesmente, não são pecados. A corrupção do adversário é péssima, a do aliado
tem explicação. O nepotismo dos rivais é condenável, o dos amigos tem
justificação. O tráfico de influências dos concorrentes é detestável, o dos
correligionários é confiança política.
O pior de tudo é
a banalização da corrupção. A normalidade do nepotismo. A democratização do
tráfico de influências. Por outras palavras, o que se faz não é corrupção, não
é nepotismo, nem é tráfico de influências. Terá outros nomes: eficácia,
confiança política, prontidão, proximidade, justa recompensa e até direito
legítimo. Mas, muitas vezes, não são. Trata-se de eufemismos destinados a
encobrir realidades bem mais sórdidas.
Ora, é esta
normalidade que está na origem e na perenidade da corrupção habitual e da justiça
impotente. É, por exemplo, uma tradição consolidada: o uso do poder político
para fazer e desfazer empresas ou fortunas, obter concessões e autorizações,
proporcionar empréstimos e alimentar grupos económicos!
A democracia
encontrou uma fórmula consagrada, “é o poder político que manda no poder
económico”. “O primado do poder político” faz com que se admita um poder
político discricionário relativamente ao poder económico. Ou ao poder social ou
cultural, se é que tais entidades existem. O “primado do poder político”
poderia entender-se como o “primado do soberano”, ou da decisão do povo, mas
não como o primado funcionários, deputados ou membros do Governo. Na verdade, o
primado do soberano não é a mesma coisa do que o primado do burocrata executivo.
Em ditadura ou em
democracia, com economia de mercado ou sob dirigismo estatal, os procedimentos
informais, a meio caminho entre o nepotismo e a corrupção, sempre informaram a
sociedade e a política portuguesas. Nunca ou raramente a justiça foi intolerante,
quase sempre a religião foi condescendente e jamais a política condenou tais
comportamentos. As famílias e as profissões também não. Os adversários deste
sistema, que os há, são tantas vezes impotentes! E os progressos, por vezes
reais, tão lentos!
Absolutistas e
liberais; monárquicos e republicanos; católicos e maçónicos; democratas e
socialistas; fascistas e comunistas; todos aceitaram regras ocultas de base.
Primeira: é o poder político que define, alimenta e protege o poder económico.
Segunda: o trânsito entre o poder político e o poder económico é fácil.
Terceira: um partido político vencedor de eleições tem o direito de recorrer à
“confiança política”, a fim de proceder a nomeações, conceder autorizações e
tomar iniciativas de investimentos. Quarta: os processos de corrupção e
nepotismo têm desculpa, se for para o “bem comum”, como sejam a criação de
emprego, a promoção de minorias e a protecção do sistema político.
O poder político
tem usado todos os dispositivos imagináveis: roubo, esbulho, expropriação sem
indemnização ou com esta calculada pelas autoridades… Alvarás, autorizações,
licenças para criação de empresa, ocupação de posição no mercado, protecção da
concorrência, “condicionamento” industrial, financiamentos bonificados e
fixação de margens: todos estes mecanismos elaborados para conter o mercado,
regular a concorrência, evitar as falências ou os desastres económicos, tiveram
como resultado favorecer grupos do poder económico e interesses de titulares de
poder político. O “cambão” empresarial e a “confiança política” são as duas
grandes chagas da sociedade, da economia e da política.
Os últimos anos,
talvez duas ou três décadas, têm assistido a algumas iniciativas (leis,
instituições, regras europeias…) no sentido de “moralizar” os ímpetos, mas
nunca erradicaram as tradições que criaram o Estado fazedor de poder económico,
nem o poder político de “confiança”. A categoria espanhola dita dos “amigos
políticos” é exactamente isso, a “confiança política”. Só que em Portugal a
“confiança política” figura explicitamente nas regras e na tradição.
Mais do que o
interesse imediato ou a ambição, mais do que o bairrismo dos vizinhos ou a
parceria dos cúmplices, há um espírito e um clima que inspiram comportamentos
perante os quais soçobra a lei. Os ricos pensam que tudo lhes é permitido, por
serem ricos. As “pessoas bem” acham que devem ter o que querem, porque é assim.
Os militantes dos partidos, sobretudo os que ganham eleições, entendem que a
democracia é isso mesmo, uma distribuição de despojos. Os sindicalistas crêem
que a democracia foi feita para os trabalhadores, o que se deve traduzir em
vantagens. Os católicos aceitam que o povo de Deus deve receber os devidos
benefícios, porque é natural que assim seja. Os maçons não têm Deus nem Mestre,
mas devem ter privilégios, porque deles é a virtude cívica. A esquerda entende
que a política deve comandar a economia. A direita não acha errado que a
política se possa submeter à economia.
É este espírito
que faz com que seja natural que os seus ajudem os seus. Que as tribos e as
comunidades tenham a sua força. Jovens, mulheres, negros, velhos, doentes,
trabalhadores, minorias e cultos acreditam piamente que todas as medidas e
todos os gestos que desfaçam desigualdades e que promovam antigos oprimidos e
explorados têm absoluto fundamento.
O problema é ter
a certeza de que, quando não houver tribos nem comunidades, quando não houver
pessoas do mesmo grupo ou com a mesma crença, quando só houver gente da mesma
condição, quando tivermos a igualdade total, nessa altura, estaremos a viver em
plena ditadura totalitária. E teremos uma sociedade sem corrupção. E sem
liberdade.
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OPINIÃO
A corrupção e os 26 mil milhões da UE
Para o dinheiro ser bem gasto, é preciso melhorar a
transparência e o escrutínio. Senão, mais milhão, menos milhão, o dinheiro da
UE não nos vai servir de nada.
SUSANA PERALTA
5 de Junho de
2020, 0:00
Quando, em
setembro de 2019, se soube que Elisa Ferreira iria ter a pasta da Coesão e
Reformas da Comissão Europeia, o país político extasiou-se com a possibilidade
de Portugal beneficiar de mais fundos. Na altura, escrevi nas páginas do
PÚBLICO que estávamos “a discutir a UE na perspetiva do adolescente à espera da
semanada”. A discussão recente em torno dos 26 mil milhões da Comissão Europeia
não foi além disso. Desanimador.
Recordemos que um
orçamento tem dois lados: a despesa e a receita. Na despesa, a proposta “Next
Generation EU” da Comissão Europeia (CE) prevê 750 mil milhões de euros para
relançar a economia até 2024, dos quais 500 mil milhões seriam transferidos
para os países a fundo perdido. Juntam-se 540 já aprovados para combater a
crise no imediato e reforços pontuais do quadro financeiro plurianual entre
2021 e 2027, que a CE espera atinjam 1,1 biliões. E a receita? A CE quer emitir
750 mil milhões de dívida, a ser paga em prazos variáveis entre 2027 e 2058.
Para convencer os investidores de que é boa ideia emprestar dinheiro, os países
terão de comprometer-se a aumentar a sua contribuição futura para o orçamento
europeu, até 2% do seu rendimento nacional bruto. Além disso, a CE espera obter
receita através de novos impostos europeus.
Porque é que não
percebo o entusiasmo pueril com os 26 mil milhões? Por três razões. Em primeiro
lugar, nada nos garante que eles cheguem. Em segundo lugar, não são a parte
mais interessante nem a mais progressista do pacote da CE. Em terceiro lugar,
mesmo que cheguem, há o risco real de serem mal gastos.
O “Next
Generation EU” tem muito peso político, por se inspirar na posição conjunta de
Merkel e Macron, mas por enquanto é uma proposta. O calendário não deixa
dúvidas: até julho, Conselho Europeu; até ao final do verão, consulta ao
Parlamento Europeu; regresso ao Conselho Europeu em outubro. Ora: no Conselho
Europeu as decisões são tomadas por unanimidade e há muita coisa no pacote
(dívida comum, transferências a fundo perdido, impostos europeus, aumento das
contribuições nacionais para orçamentos futuros) que não agrada a todos os
países.
Mesmo que seja
aprovado, não sabemos quanto nos chegará. Os 26 mil milhões que tanta tinta
gastaram são uma estimativa de um documento a que as agências noticiosas
tiveram acesso. Não existem nos documentos públicos de apresentação do plano;
nem podiam, porque o “Next Generation EU" é um conjunto de vários
instrumentos e cada um deles vai ter diferentes condições de acesso: Mecanismo
de Recuperação e Resiliência, Assistência à Recuperação para a Coesão e os
Territórios da Europa, reforços dos Programas de Desenvolvimento Rural e
Mecanismo para uma Transição Justa, Instrumento de Apoio à Solvabilidade,
Mecanismo de Investimento Estratégico, Programa InvestEU, novo programa de
saúde, RescEU, programas de investigação, inovação e ação externa. Só
transcrevi aqui a longa lista de instrumentos para imaginarmos como será a
ainda mais longa lista de condições. Não, não nos vai cair um cheque na conta
de um dia para o outro.
Depois, está a
fatura, que também não conhecemos. A Bloomberg e o think tank alemão ZEW
fizeram estimativas com base na proposta de Merkel e Macron (que era de 500 mil
milhões a fundo perdido), usando as regras de contribuição existentes e
distribuindo as ajudas em função do decréscimo do PIB e do aumento do desemprego.
Ambas concluem que Portugal será um contribuinte líquido (entre 0 e 0,4% do PIB
para a Bloomberg, entre 0,04 e 0,9% do PIB para a ZEW). Não sabemos como vai
ser com o “Next Generation EU", mas o que é certo é que não seremos
grandes beneficiários líquidos.
Isto não quer
dizer que o plano seja mau para Portugal. A dívida comum permite fazer um
esforço de investimento nos próximos anos que dificilmente faríamos de outra
forma. Se beneficiarmos de parte do montante a fundo perdido, a dívida portuguesa
não sobe. E há mais: o “Next Generation EU” abre a porta a reformas que seriam
inimagináveis no mundo pré-covid. Os impostos europeus sobre as grandes
empresas, as plataformas digitais e emissões de carbono aumentam a
disponibilidade de fundos no conjunto dos países. São bases fiscais que uma
pequena economia como a portuguesa não consegue tributar sem coordenação
europeia. Mais do que dividir recursos, é aumentando os recursos públicos
disponíveis que se faz a diferença. A transição energética e digital, que já
estava na agenda antes da pandemia, ganhou um orçamento reforçado. A principal
barreira à transição energética é que cada empresa individualmente tem mais a
perder do que a ganhar se se tornar mais verde. Em casos destes, com perdas
individuais e ganhos coletivos, é fundamental uma gestão coordenada à escala
europeia que permita que os muitos que ganham compensem quem perde.
Finalmente, o
mais crítico: para o dinheiro ser bem gasto, é preciso melhorar a transparência
e o escrutínio. Senão, mais milhão, menos milhão, o dinheiro da UE não nos vai
servir de nada.
O novo
paraministro, António Costa Silva, afirmou que Portugal tem instituições de
qualidade. Nem por isso. De resto, a informalidade de termos um paraministro a
pensar no plano para gastar os putativos 26 mil milhões é, por si só, um
péssimo sinal
Saiu esta semana
o relatório anual do GRECO (Group of States Against Corruption), uma iniciativa
do Conselho da Europa que desde 1999 faz recomendações aos países para combater
a corrupção. Em Portugal, falta implementar 40% das medidas recomendadas na
quarta ronda, há já seis anos. Um estudo do Parlamento Europeu de 2016 colocou
Portugal no segundo grupo de países mais corruptos da UE. O mesmo Parlamento
Europeu e a CE denunciaram várias vezes o esquema de “vistos gold" como
uma porta aberta à lavagem de dinheiro. O Índice de Transparência Orçamental –
uma iniciativa da International Budget Partnership que tem como parceiro
português o Instituto de Políticas Públicas – tem assinalado áreas de opacidade
preocupantes no Orçamento do Estado, onde sobressaem compromissos plurianuais
como as PPP ou as transferências para o sector financeiro. Ainda há pouco tempo
ficámos a saber que o contrato de venda do Novo Banco à Lone Star não é público
e não passou pelo escrutínio do Parlamento. Agora, o Governo está a preparar-se
para gastar mais de mil milhões na TAP sem nos ter mostrado planos de
viabilidade da empresa, quanto espera gastar nos próximos anos e em que
cenários.
Com tantas
instituições internacionais a dizer o contrário, o novo paraministro, António
Costa Silva, afirmou num webinar da Ordem dos Engenheiros a 18 de maio que
Portugal tem instituições de qualidade. Nem por isso. De resto, a informalidade
de termos um paraministro a pensar no plano para gastar os putativos 26 mil
milhões é, por si só, um péssimo sinal.
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