sexta-feira, 19 de março de 2021

A história mal contada da venda das barragens pela EDP

 



OPINIÃO

A história mal contada da venda das barragens pela EDP

 

O governo tem um poder considerável neste negócio porque tem de o autorizar e tem direito de preferência na compra. Justifica-se que chegue à véspera sem perceber que vai ficar a ver navios?

 

Susana Peralta

19 de Março de 2021, 0:07

https://www.publico.pt/2021/03/19/economia/opiniao/historia-mal-contada-venda-barragens-edp-1955063

 

Durante uma audição com a Comissão Parlamentar de Trabalho e Segurança Social, no dia 10 de fevereiro, a ministra Ana Paula Godinho foi confrontada pelas deputadas e pelos deputados com as dificuldades de pais e mães em teletrabalho, numa altura em que já tinham passado quase três semanas desde o encerramento das escolas. A ministra não se mostrou disponível para apoiar estas famílias. Reconheceu que existem dificuldades, mas lembrou que a situação é “difícil para todos”. E acrescentou: “a dificuldade é real, mas todos vivemos situações de uma exigência imensa”.

 

Lembrei-me desta frase esta semana, a propósito da confusão em torno da venda das seis barragens do Douro concessionadas à EDP, vendidas por 2,2 mil milhões de euros. A EDP não era dona das barragens. Era concessionária, ao abrigo de um contrato com o Estado português. E por isso só pode trespassar a concessão ou então subconcessionar. O que também explica que o negócio careça de autorização da Agência Portuguesa do Ambiente e da Direcção-geral de Energia e Geologia, duas instituições tuteladas pelo Ministério do Ambiente.

 

 

Devemos ao Movimento Cultural Terras de Miranda, que inclui ex-dirigentes da Autoridade Tributária, ter trazido o tema a debate. O Movimento alertou o Ministro do Ambiente, logo em setembro, para o risco de a EDP estar a planear estratégias de planeamento fiscal agressivo, que é como quem diz, estratagemas para minimizar os impostos a pagar pela venda. O Movimento reivindicava ainda uma alteração à lei para que o Imposto de Selo relativo a esta venda revertesse a favor dos municípios onde se localizam as barragens. O IMT, esse, já é receita municipal; de qualquer forma, é menos claro que este seja devido, uma vez que o negócio é um trespasse de concessão e não uma venda de imóvel. O negócio envolveria cerca de 140 milhões de IMT e 110 milhões de imposto de selo, para além de IRC sobre as mais valias da venda, que são de 200 milhões de euros. A EDP montou uma complicada operação, que consistiu em criar uma sociedade, a Camirengia, detida a 100% pela EDP Produção, que ficou com as concessões. A EDP vendeu depois as ações da Camirengia a outra empresa, da francesa Engie que, junto com duas outras empresas francesas, Crédit Agricole Assurances e Natixis, comprou a concessão à EDP. Tudo, claro, devidamente aprovado pelas duas agências do Ministério do Ambiente.

 

Entretanto, a Camirengia finou-se em janeiro, integrada na empresa que a comprou. Nascida em agosto e batizada já em dezembro, a Camirengia teve uma vida curta, mas intensa, onde cumpriu com bravura o papel para o qual foi concebida. É que assim a EDP livrou-se dos direitos de exploração através de uma cisão e a nova proprietária adquiriu-os através de uma fusão por integração, o que permitiu recorrer a benefícios fiscais que libertaram a EDP de pagar impostos.

 

Esta história suscita-me várias reflexões. Em primeiro lugar, este tipo de planeamento fiscal agressivo já é escandaloso em tempos normais quando as empresas vendem ativos normais. Só que nem os tempos são normais, nem as barragens são um ativo qualquer. Estamos metidos na pior crise do século, há pessoas na fila para a ajuda alimentar e as barragens são bens do domínio público. Em segundo lugar, onde estava o governo? Alertado em setembro para a possibilidade do planeamento fiscal agressivo, o ministro Matos Fernandes, citado pelo DN a 28 de dezembro, diz que só após 20 de janeiro de 2021, é que “se poderá avaliar o valor a pagar”, acrescentando que compete à Autoridade Tributária pronunciar-se sobre o montante de imposto de selo devido. Mas não poderia o governo ter feito as diligências necessárias para saber que receita fiscal ia encaixar? O governo tem um poder considerável neste negócio porque tem de o autorizar e tem direito de preferência na compra. Justifica-se que chegue à véspera sem perceber que vai ficar a ver navios? Em terceiro lugar, o lucro da EDP em 2020 foi de 801 milhões de euros, um aumento de 56% face a 2019. Os benefícios fiscais deviam servir para ajudar empresas em dificuldades, não a EDP. Deixar fugir receita fiscal nesta história só mostra que, contrariamente ao que disse a ministra Ana Mendes Godinho, isto afinal só é difícil para alguns.

 

A minha quarta e última reflexão é a seguinte. Nós, economistas, chamamos “maldição dos recursos” a esta apropriação privada de recursos naturais. Já o Adam Smith dizia que um legislador prudente não devia encorajar projetos de minas. Não quero ser mal interpretada: a concessão privada, em si, não tem nada de errado. Mas precisamos de instituições fortes para que ela seja feita com regras que beneficiem as populações locais – como justamente reivindica o Movimento Cultural Terras de Miranda. Num dos artigos mais famosos sobre isto, “The Political Foundations of the Resource Curse”, publicado em 2006 no Journal of Development Economics, os autores explicam que só países com instituições que promovem a responsabilização dos atores políticos e onde as autoridades são competentes tendem a beneficiar dos recursos, porque estas instituições contrariam os incentivos políticos perversos que os recursos promovem. Está cá tudo: incentivos perversos, competência das autoridades e “responsabilização dos atores políticos”. Esta é a minha tradução improvisada para uma palavra inglesa que anda a fazer falta por cá: accountability. Talvez traduzido por “pedir contas” fique mais claro. Se cada um de nós fizesse como o Movimento Cultural Terras de Miranda, os portugueses podiam finalmente deixar de viver abaixo das suas possibilidades.

 

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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