OPINIÃO
A história mal contada da venda das barragens pela EDP
O governo tem um poder considerável neste negócio porque
tem de o autorizar e tem direito de preferência na compra. Justifica-se que
chegue à véspera sem perceber que vai ficar a ver navios?
Susana Peralta
19 de Março de
2021, 0:07
https://www.publico.pt/2021/03/19/economia/opiniao/historia-mal-contada-venda-barragens-edp-1955063
Durante uma
audição com a Comissão Parlamentar de Trabalho e Segurança Social, no dia 10 de
fevereiro, a ministra Ana Paula Godinho foi confrontada pelas deputadas e pelos
deputados com as dificuldades de pais e mães em teletrabalho, numa altura em
que já tinham passado quase três semanas desde o encerramento das escolas. A
ministra não se mostrou disponível para apoiar estas famílias. Reconheceu que
existem dificuldades, mas lembrou que a situação é “difícil para todos”. E
acrescentou: “a dificuldade é real, mas todos vivemos situações de uma
exigência imensa”.
Lembrei-me desta
frase esta semana, a propósito da confusão em torno da venda das seis barragens
do Douro concessionadas à EDP, vendidas por 2,2 mil milhões de euros. A EDP não
era dona das barragens. Era concessionária, ao abrigo de um contrato com o
Estado português. E por isso só pode trespassar a concessão ou então
subconcessionar. O que também explica que o negócio careça de autorização da
Agência Portuguesa do Ambiente e da Direcção-geral de Energia e Geologia, duas
instituições tuteladas pelo Ministério do Ambiente.
Devemos ao Movimento
Cultural Terras de Miranda, que inclui ex-dirigentes da Autoridade Tributária,
ter trazido o tema a debate. O Movimento alertou o Ministro do Ambiente, logo
em setembro, para o risco de a EDP estar a planear estratégias de planeamento
fiscal agressivo, que é como quem diz, estratagemas para minimizar os impostos
a pagar pela venda. O Movimento reivindicava ainda uma alteração à lei para que
o Imposto de Selo relativo a esta venda revertesse a favor dos municípios onde
se localizam as barragens. O IMT, esse, já é receita municipal; de qualquer
forma, é menos claro que este seja devido, uma vez que o negócio é um trespasse
de concessão e não uma venda de imóvel. O negócio envolveria cerca de 140
milhões de IMT e 110 milhões de imposto de selo, para além de IRC sobre as mais
valias da venda, que são de 200 milhões de euros. A EDP montou uma complicada
operação, que consistiu em criar uma sociedade, a Camirengia, detida a 100%
pela EDP Produção, que ficou com as concessões. A EDP vendeu depois as ações da
Camirengia a outra empresa, da francesa Engie que, junto com duas outras
empresas francesas, Crédit Agricole Assurances e Natixis, comprou a concessão à
EDP. Tudo, claro, devidamente aprovado pelas duas agências do Ministério do
Ambiente.
Entretanto, a
Camirengia finou-se em janeiro, integrada na empresa que a comprou. Nascida em
agosto e batizada já em dezembro, a Camirengia teve uma vida curta, mas
intensa, onde cumpriu com bravura o papel para o qual foi concebida. É que
assim a EDP livrou-se dos direitos de exploração através de uma cisão e a nova
proprietária adquiriu-os através de uma fusão por integração, o que permitiu
recorrer a benefícios fiscais que libertaram a EDP de pagar impostos.
Esta história
suscita-me várias reflexões. Em primeiro lugar, este tipo de planeamento fiscal
agressivo já é escandaloso em tempos normais quando as empresas vendem ativos
normais. Só que nem os tempos são normais, nem as barragens são um ativo
qualquer. Estamos metidos na pior crise do século, há pessoas na fila para a
ajuda alimentar e as barragens são bens do domínio público. Em segundo lugar,
onde estava o governo? Alertado em setembro para a possibilidade do planeamento
fiscal agressivo, o ministro Matos Fernandes, citado pelo DN a 28 de dezembro,
diz que só após 20 de janeiro de 2021, é que “se poderá avaliar o valor a
pagar”, acrescentando que compete à Autoridade Tributária pronunciar-se sobre o
montante de imposto de selo devido. Mas não poderia o governo ter feito as
diligências necessárias para saber que receita fiscal ia encaixar? O governo
tem um poder considerável neste negócio porque tem de o autorizar e tem direito
de preferência na compra. Justifica-se que chegue à véspera sem perceber que
vai ficar a ver navios? Em terceiro lugar, o lucro da EDP em 2020 foi de 801
milhões de euros, um aumento de 56% face a 2019. Os benefícios fiscais deviam
servir para ajudar empresas em dificuldades, não a EDP. Deixar fugir receita
fiscal nesta história só mostra que, contrariamente ao que disse a ministra Ana
Mendes Godinho, isto afinal só é difícil para alguns.
A minha quarta e
última reflexão é a seguinte. Nós, economistas, chamamos “maldição dos
recursos” a esta apropriação privada de recursos naturais. Já o Adam Smith
dizia que um legislador prudente não devia encorajar projetos de minas. Não
quero ser mal interpretada: a concessão privada, em si, não tem nada de errado.
Mas precisamos de instituições fortes para que ela seja feita com regras que
beneficiem as populações locais – como justamente reivindica o Movimento
Cultural Terras de Miranda. Num dos artigos mais famosos sobre isto, “The
Political Foundations of the Resource Curse”, publicado em 2006 no Journal of
Development Economics, os autores explicam que só países com instituições que
promovem a responsabilização dos atores políticos e onde as autoridades são
competentes tendem a beneficiar dos recursos, porque estas instituições
contrariam os incentivos políticos perversos que os recursos promovem. Está cá
tudo: incentivos perversos, competência das autoridades e “responsabilização
dos atores políticos”. Esta é a minha tradução improvisada para uma palavra
inglesa que anda a fazer falta por cá: accountability. Talvez traduzido por
“pedir contas” fique mais claro. Se cada um de nós fizesse como o Movimento
Cultural Terras de Miranda, os portugueses podiam finalmente deixar de viver
abaixo das suas possibilidades.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
Sem comentários:
Enviar um comentário