Política europeia ou política alemã?
Teresa de Sousa
9 de Fevereiro de
2021, 21:00
https://www.publico.pt/2021/02/09/mundo/analise/politica-europeia-politica-alema-1950002
1. “A visita do
chefe da diplomacia europeia, Joseph Borrell, a Moscovo confirmou este estado
miserável da política externa europeia”, escreve Judy Dempsey no Carnegie-Europe.
“Este” estado miserável, segundo a autora, foi a incapacidade da Europa de
tirar algum partido dos quatro anos de “ausência” da liderança americana no
mundo para construir uma política externa “mais estratégica”. Ele também se
deve, prossegue a autora, “a que a maioria dos seus Estados-membros, e em
particular a Alemanha, têm muito pouco interesse em dar a Borrell a autoridade
de que precisa para forjar uma política externa forte”.
A visita de
Joseph Borrell a Moscovo foi apenas o último episódio desta incapacidade
europeia para agir estrategicamente num mundo em crescente turbulência. O que
tem de específico é que o fracasso e a humilhação foram indisfarçáveis ao ponto
de ser impossível atenuá-los com esta ou aquela explicação. Foi pública a forma
displicente e arrogante com que Sergei Lavrov, o chefe da diplomacia russa,
tratou o seu homólogo europeu, declarando-lhe que a Europa “não é um parceiro
fiável” e acusando-o de “mentir” sobre Alexei Navalny. A coreografia montada
para a visita fez o resto. O Governo russo escolheu a presença de Borrell em
Moscovo para expulsar três diplomatas europeus (da Alemanha, Suécia e Polónia),
acusando-os de interferir no caso Navalny. Borrell soube das expulsões através
das redes sociais.
A oportunidade da
visita era altamente questionável, porque coincidia com o julgamento e a prisão
do opositor russo mais emblemático e com a repressão violenta sobre os seus
apoiantes. A visita foi caucionada pelo Conselho de Ministros dos Negócios
Estrangeiros, mesmo que com as vozes contrárias da Polónia e de alguns outros
países do Leste europeu, o chefe da diplomacia europeia justificou à priori a
sua viagem com uma pequena frase-feita: “É melhor falar com a Rússia do que
falar da Rússia”. Como se verificou, a frase não tinha qualquer orientação
política substantiva a sustentá-la.
2. A União
Europeia fez da “autonomia estratégica” em relação aos outros grandes pólos de
poder mundiais a sua nova bandeira política. O que os responsáveis europeus
querem dizer com ela é bem mais simples: a “autonomia” de que falam é em
relação aos Estados Unidos da América. É essa a preocupação central de Bruxelas
e das principais capitais da União – como desenvolver uma política externa, em
todas as suas dimensões, que não esteja dependente da política externa
norte-americana. Em termos teóricos, esse objectivo é fácil de descrever.
Citando as palavras do chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva,
num seminário organizado pelo Instituto Jacques Delors, “a União Europeia não é
o parceiro júnior dos EUA”, ou seja, relaciona-se com os EUA de igual para
igual. Aparentemente, esta formulação não teria nada de particularmente grave,
a não ser que ela visa acentuar as divergências de interesses entre as duas
margens do Atlântico e não as convergências, ao mesmo tempo que ignora as
fraquezas europeias em domínios fundamentais do poder. A sua tradução é a
tentativa de definir uma política independente em relação à Rússia e em relação
à China.
Quanto à Rússia,
a visita de Borrell diz quase tudo: a União não tem qualquer estratégia.
Poder-se-ia dizer que, desde a invasão da Ucrânia e a anexação da Crimeia, em
2014, os europeus tomaram consciência da ameaça à sua segurança representada
pelo expansionismo agressivo de Moscovo. Merkel negociou com Putin os “acordos
de Minsk”, que o líder russo nunca cumpriu. A União decretou sanções à Rússia,
já renovadas por várias vezes. O problema é que essas sanções não conseguem
incomodar Moscovo ou atingir os seus interesses económicos. E a razão é
simples: a Alemanha não permite que as sanções toquem na indústria energética
russa, que é o sustentáculo da sua economia. O Nord Stream II é o exemplo mais
acabado desta política. Berlim nem sequer põe a hipótese de suspender a
construção do segundo gasoduto que liga o território russo directamente ao
território alemão. Os Estados Unidos decretaram sanções contra as empresas
europeias envolvidas na sua construção. Paris dá sinais contraditórios.
Enquanto o secretário de Estado para a Europa, Clément Beaune, pedia à Alemanha
a suspensão do gasoduto na sequência do desastre diplomático de Borrell, Macron
desautorizava-o publicamente durante uma conferência de imprensa conjunta com
Merkel. Nada faz demover a chanceler. Constanze Stelzenmuller, da Brookings
Institution, escrevia no Financial Times que “O Nord Stream II arrisca-se a
passar à história como um dos maiores erros políticos de Merkel”.
Enquanto for
assim, Putin não tem grandes razões de preocupação.
3. Em relação à
China, a política europeia não é substancialmente diferente. Tivemos a prova no
penúltimo dia de 2020 e da presidência alemã do Conselho da União Europeia. A
vinte dias da tomada de posse de Joe Biden, Berlim e Bruxelas assinavam um
acordo de princípio de investimento global com Pequim. Percebe-se a pressa
chinesa, que andou sete anos sem ceder às principais exigências da Europa: a
chegada de Biden à Casa Branca. A pressa europeia – ou, mais exactamente, alemã
– é bastante menos compreensível. Ninguém tem a menor dúvida de que esta jogada
de antecipação europeia foi devidamente registada em Washington.
Os dois casos – a
relação com a Rússia e o acordo de investimento com a China – apenas sublinham
a predominância alemã nas decisões europeias sobre o resto do mundo. A Alemanha
quer que a Rússia continue a ser o seu principal fornecedor de energia. A Alemanha
precisa do gigantesco mercado chinês para a sua indústria exportadora. Escrevia
Bruno Alomar no Figaro: “A Alemanha, que por vezes parece andar sem bússola
pelo vasto mundo, tem uma, que utiliza até à obsessão: a sua indústria.” O
problema é que o tempo da geoeconomia já passou.


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