Itália: a falência do populismo soberanista
O facto mais notável da metamorfose italiana é a viragem
de Salvini, por ter percebido que a via soberanista já não leva a parte
nenhuma. Isto e a institucionalização do Cinco Estrelas mudam o tabuleiro
político e terão repercussões na Europa.
Jorge Almeida
Fernandes
12 de Fevereiro
de 2021, 19:34
https://www.publico.pt/2021/02/12/mundo/analise/italia-falencia-populismo-soberanista-1950509
O governo Draghi,
que este sábado toma posse em Roma, encerra uma época da política italiana
marcada pela fractura soberanista e pela rebelião populista. A metamorfose
“europeísta” que está em curso pode ser o sinal de um contraciclo com
repercussão para lá das fronteiras italianas. A nomeação de Draghi pelo
Presidente Mattarella já desencadeou efeitos que vão mudar o sistema partidário
italiano. Para já, apaga-se a mais funda linha de clivagem da política
italiana: a questão europeia. Mudam os alinhamentos e as regras do jogo.
O ano de 2016,
com a eleição de Donald Trump, foi um marco na ascensão dos populismos
soberanistas ou dos nacionalismos autoritários. Abriu o caminho a Bolsonaro e
foi uma bênção para o húngaro Orbán ou para o polaco Kaczynski. Foi aplaudido
em França por Marine Le Pen e, na Itália, por Matteo Salvini e Beppe Grillo – é
bom não o esquecer.
Muito mudou.
Primeiro Grillo e, agora Salvini, convertem-se em paladinos da Europa,
integram-se na política institucional e avalizam um governo “presidencial”
chefiado pelo ex-presidente do Banco Central Europeu. Draghi é, certamente, o
mais influente italiano no mundo. Mas, até agora, um seu governo seria tabu. E,
diga-se, a União Europeia de 2021 já não é a de 2012, à austeridade sucedeu a
solidariedade.
Antes de falar da
natureza e do papel do novo governo presidencial – é conveniente aguardar a
exposição do programa no Parlamento, a sua composição e a reacção final dos
partidos – chamo a atenção para o provável impacto do governo Draghi no sistema
político italiano. A conversão de Salvini é de longe o efeito mais importante,
tanto mais que se pode repercutir para lá das fronteiras da Itália. Aguardemos.
Mas também se
deve sublinhar a institucionalização do Movimento 5 Estrelas. O seu fundador (e
“garante”) Beppe Grillo já tinha tido um papel de destaque na troca da aliança
com a Liga de Salvini – de que nunca foi entusiasta – pela coligação com o
Partido Democrático (PD), em 2019. Desta vez, excedeu-se. Desceu de Génova a
Roma, tomou as rédeas do partido e tudo fez para apoiar Draghi – e para salvar
o M5S da desagregação que se anunciava. Há uma semana, os “grillini” gritavam
no Parlamento: “Ou Conte ou nada”. Esta semana, passaram a gritar “Viva
Draghi”.
Se a elite
parlamentar do movimento depressa se converteu às benesses do poder, permanece
uma ala ainda significativa que sonha com as passadas glórias da guerra
anti-sistema. Não é de excluir uma cisão.
No governo
Conte-2, partilhado com o PD, o M5S iniciou o processo de “europeização” e
meteu na gaveta os slogans eurocépticos. Deu o passo definitivo quando, no
Parlamento Europeu, votou a favor da eleição de Ursula von der Leyen. O primeiro-ministro Giuseppe Conte teve
também um papel muito activo no Plano de Recuperação da UE.
Conte passou a
ser, de certa forma, o líder político do movimento. A queda do seu executivo
não significa necessariamente o seu desaparecimento. Ele pode vir a ser um
insubstituível unificador perante a ameaça de cisão. Hoje, o M5S valerá 15% das
intenções de voto, o que ainda é muito. “O grillismo mudou de vestes, o
Movimento dos anti-sistema tornou-se governativo tornou-se whatever it takes”
(custe o que custar), ironiza o politólogo Pasquale Pasquini, citando a
expressão histórica de Draghi para salvar o euro. O apoio a Draghi é o adeus à
mitologia da democracia directa.
A conversão de
Salvini
Numa notícia
anterior, assinalei a racionalidade da viragem do líder da Liga e a sua
tonitruante conversão: “Estamos de mãos, pés, coração e cérebro na Europa, mas
naturalmente quero uma Europa que defenda as empresas e a agricultura italianas
(...). E [com Draghi] podemos estar na Europa de cabeça erguida.”
Os politólogos
falam em “salto mortal”. Giovanni Orsina aponta algumas razões. No plano
táctico, barrada a hipótese de eleições antecipadas, Salvini evita a formação
de uma “maioria Ursula”, que poderia incluir Berlusconi e o isolaria. E lança
“um processo de re-legitimação aos olhos do establishment europeu e italiano”.
Retomar as bandeiras
do passado seria fazer as “guerras de ontem”, observa Orsina. Por outro lado, a
Liga tem “duas almas”, a populista e a dos “produtores do Norte”, interessados
na integração europeia. Com o Plano de Recuperação, que concede à Itália 209
mil milhões de euros, Salvini não tinha escolha. E recolocou a Liga no centro
da vida política, evitando uma longa ostracização.
Será interessante
seguir a disputa do terreno deixado vago pela conversão da Liga. O partido
Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, tentará ocupá-lo. Mas, neste momento, quem
está embaraçada e em risco de marginalização é Meloni. Salvini estará ainda a
preparar um salto a médio ou longo prazo: a entrada no Partido Popular Europeu.
A questão do
oportunismo ou da sinceridade tem pouco relevo em política. O que importa é que
Salvini percebeu que o soberanismo estava esgotado e foi forçado a fazer o
“salto mortal”, engolindo tudo quanto disse nos últimos anos. Esta parece-me
ser a lição destes dias: a falência do soberanismo ou, pelo menos, de uma fase
do fenómeno.
E o
centro-esquerda?
O PD está também
embaraçado. Tendo perdido grande parte da sua identidade ideológica, permanece
como centro de gravidade da política italiana. Partilhou o segundo governo
Conte com o M5S. Em caso de colapso, apostaria na “coligação Ursula”. Mas o
governo Draghi tem vocação de ser de “unidade nacional” e a rápida jogada de
Salvini apanhou em contra-pé o PD de Nicola Zingaretti.
Porquê? O PD,
herdeiro do Partido Comunista Italiano e da esquerda democrata-cristã, fundou-se
como um partido de várias identidades, inspirado no Partido Democrata
americano. Travaram-se intermináveis debates entre uma eventual reconversão
social-democrata e o centrismo reformista da fase Renzi.
De facto, foi a
polarização entre europeísmo e soberanismo que ajudou o PD a sobreviver. A
jogada de Salvini põe em causa esta clivagem. Todos vão passar a adoptar
slogans pró-Europa. Que identidade resta ao PD para o seu combate político? O
europeísmo é uma questão programática central, mas é uma identidade “mole” para
diferenciar um partido dos outros.
“Não pode ficar à
espera de tempos melhores”, escreve Pasquini. “Se não quiser desaparecer como o
Partido Socialista francês, o PD tem de afrontar num verdadeiro congresso os
problemas da sua identidade e das alianças.”
Não se sabe
quanto durará o governo Draghi. Os partidos terão pelo menos um ano para
reformularem as suas estratégias. Deixando a Europa de ser a grande clivagem,
quais serão os alinhamentos nas futuras eleições? O politólogo Roberto
D’Alimonte admite, inclusive, o regresso a uma lógica bipolar, interrompida
pelo sucesso do M5S nas eleições de 2013 e 2018.
Tudo isto é um
tanto futurista. Para já, resta ver o estado de espírito com que os italianos
sairão da pandemia e o sucesso da “operação Draghi”, num país que perdeu as
suas perspectivas de futuro.


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