sábado, 13 de fevereiro de 2021

Itália: a falência do populismo soberanista

 



Itália: a falência do populismo soberanista

 

O facto mais notável da metamorfose italiana é a viragem de Salvini, por ter percebido que a via soberanista já não leva a parte nenhuma. Isto e a institucionalização do Cinco Estrelas mudam o tabuleiro político e terão repercussões na Europa.

 

Jorge Almeida Fernandes

12 de Fevereiro de 2021, 19:34

https://www.publico.pt/2021/02/12/mundo/analise/italia-falencia-populismo-soberanista-1950509

 

O governo Draghi, que este sábado toma posse em Roma, encerra uma época da política italiana marcada pela fractura soberanista e pela rebelião populista. A metamorfose “europeísta” que está em curso pode ser o sinal de um contraciclo com repercussão para lá das fronteiras italianas. A nomeação de Draghi pelo Presidente Mattarella já desencadeou efeitos que vão mudar o sistema partidário italiano. Para já, apaga-se a mais funda linha de clivagem da política italiana: a questão europeia. Mudam os alinhamentos e as regras do jogo.

 

O ano de 2016, com a eleição de Donald Trump, foi um marco na ascensão dos populismos soberanistas ou dos nacionalismos autoritários. Abriu o caminho a Bolsonaro e foi uma bênção para o húngaro Orbán ou para o polaco Kaczynski. Foi aplaudido em França por Marine Le Pen e, na Itália, por Matteo Salvini e Beppe Grillo – é bom não o esquecer.

 

Muito mudou. Primeiro Grillo e, agora Salvini, convertem-se em paladinos da Europa, integram-se na política institucional e avalizam um governo “presidencial” chefiado pelo ex-presidente do Banco Central Europeu. Draghi é, certamente, o mais influente italiano no mundo. Mas, até agora, um seu governo seria tabu. E, diga-se, a União Europeia de 2021 já não é a de 2012, à austeridade sucedeu a solidariedade.

 

Antes de falar da natureza e do papel do novo governo presidencial – é conveniente aguardar a exposição do programa no Parlamento, a sua composição e a reacção final dos partidos – chamo a atenção para o provável impacto do governo Draghi no sistema político italiano. A conversão de Salvini é de longe o efeito mais importante, tanto mais que se pode repercutir para lá das fronteiras da Itália. Aguardemos.

 

Mas também se deve sublinhar a institucionalização do Movimento 5 Estrelas. O seu fundador (e “garante”) Beppe Grillo já tinha tido um papel de destaque na troca da aliança com a Liga de Salvini – de que nunca foi entusiasta – pela coligação com o Partido Democrático (PD), em 2019. Desta vez, excedeu-se. Desceu de Génova a Roma, tomou as rédeas do partido e tudo fez para apoiar Draghi – e para salvar o M5S da desagregação que se anunciava. Há uma semana, os “grillini” gritavam no Parlamento: “Ou Conte ou nada”. Esta semana, passaram a gritar “Viva Draghi”.

 

Se a elite parlamentar do movimento depressa se converteu às benesses do poder, permanece uma ala ainda significativa que sonha com as passadas glórias da guerra anti-sistema. Não é de excluir uma cisão.

 

No governo Conte-2, partilhado com o PD, o M5S iniciou o processo de “europeização” e meteu na gaveta os slogans eurocépticos. Deu o passo definitivo quando, no Parlamento Europeu, votou a favor da eleição de Ursula von der Leyen.  O primeiro-ministro Giuseppe Conte teve também um papel muito activo no Plano de Recuperação da UE.

 

Conte passou a ser, de certa forma, o líder político do movimento. A queda do seu executivo não significa necessariamente o seu desaparecimento. Ele pode vir a ser um insubstituível unificador perante a ameaça de cisão. Hoje, o M5S valerá 15% das intenções de voto, o que ainda é muito. “O grillismo mudou de vestes, o Movimento dos anti-sistema tornou-se governativo tornou-se whatever it takes” (custe o que custar), ironiza o politólogo Pasquale Pasquini, citando a expressão histórica de Draghi para salvar o euro. O apoio a Draghi é o adeus à mitologia da democracia directa.

 

A conversão de Salvini

Numa notícia anterior, assinalei a racionalidade da viragem do líder da Liga e a sua tonitruante conversão: “Estamos de mãos, pés, coração e cérebro na Europa, mas naturalmente quero uma Europa que defenda as empresas e a agricultura italianas (...). E [com Draghi] podemos estar na Europa de cabeça erguida.”

 

Os politólogos falam em “salto mortal”. Giovanni Orsina aponta algumas razões. No plano táctico, barrada a hipótese de eleições antecipadas, Salvini evita a formação de uma “maioria Ursula”, que poderia incluir Berlusconi e o isolaria. E lança “um processo de re-legitimação aos olhos do establishment europeu e italiano”.

 

Retomar as bandeiras do passado seria fazer as “guerras de ontem”, observa Orsina. Por outro lado, a Liga tem “duas almas”, a populista e a dos “produtores do Norte”, interessados na integração europeia. Com o Plano de Recuperação, que concede à Itália 209 mil milhões de euros, Salvini não tinha escolha. E recolocou a Liga no centro da vida política, evitando uma longa ostracização.

 

Será interessante seguir a disputa do terreno deixado vago pela conversão da Liga. O partido Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni, tentará ocupá-lo. Mas, neste momento, quem está embaraçada e em risco de marginalização é Meloni. Salvini estará ainda a preparar um salto a médio ou longo prazo: a entrada no Partido Popular Europeu.

 

A questão do oportunismo ou da sinceridade tem pouco relevo em política. O que importa é que Salvini percebeu que o soberanismo estava esgotado e foi forçado a fazer o “salto mortal”, engolindo tudo quanto disse nos últimos anos. Esta parece-me ser a lição destes dias: a falência do soberanismo ou, pelo menos, de uma fase do fenómeno.

 

E o centro-esquerda?

O PD está também embaraçado. Tendo perdido grande parte da sua identidade ideológica, permanece como centro de gravidade da política italiana. Partilhou o segundo governo Conte com o M5S. Em caso de colapso, apostaria na “coligação Ursula”. Mas o governo Draghi tem vocação de ser de “unidade nacional” e a rápida jogada de Salvini apanhou em contra-pé o PD de Nicola Zingaretti.

 

Porquê? O PD, herdeiro do Partido Comunista Italiano e da esquerda democrata-cristã, fundou-se como um partido de várias identidades, inspirado no Partido Democrata americano. Travaram-se intermináveis debates entre uma eventual reconversão social-democrata e o centrismo reformista da fase Renzi.

 

De facto, foi a polarização entre europeísmo e soberanismo que ajudou o PD a sobreviver. A jogada de Salvini põe em causa esta clivagem. Todos vão passar a adoptar slogans pró-Europa. Que identidade resta ao PD para o seu combate político? O europeísmo é uma questão programática central, mas é uma identidade “mole” para diferenciar um partido dos outros.

 

“Não pode ficar à espera de tempos melhores”, escreve Pasquini. “Se não quiser desaparecer como o Partido Socialista francês, o PD tem de afrontar num verdadeiro congresso os problemas da sua identidade e das alianças.”

 

Não se sabe quanto durará o governo Draghi. Os partidos terão pelo menos um ano para reformularem as suas estratégias. Deixando a Europa de ser a grande clivagem, quais serão os alinhamentos nas futuras eleições? O politólogo Roberto D’Alimonte admite, inclusive, o regresso a uma lógica bipolar, interrompida pelo sucesso do M5S nas eleições de 2013 e 2018.

 

Tudo isto é um tanto futurista. Para já, resta ver o estado de espírito com que os italianos sairão da pandemia e o sucesso da “operação Draghi”, num país que perdeu as suas perspectivas de futuro.

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