Lisboa, Centro Comercial das Bugigangas
Mais um mini-argumento para o debate sobre a cidade. Em 17
ruas da Baixa de Lisboa, há 103 lojas de bugigangas para turistas.
Bárbara Reis
28 de Dezembro de 2018, 6:29
Quando há dias contei as cadeiras das esplanadas da Rua
Augusta — são 912 — um leitor escreveu esta frase no site do PÚBLICO: “Se quer
uma cidade sem turismo, vá para Pyongyang!”
Foi estranhamente inspirador. Passou-me pela cabeça
dedicar-lhe esta última crónica do ano. Afinal, foi neste leitor que mais vezes
pensei enquanto varri a Baixa de Lisboa, rua a rua, a contar as lojas.
Não quero convencer ninguém, muito menos quem acredita que a
defesa da cidade se faz no duelo capitalismo versus comunismo. O comunismo não
faz bem à saúde, nem à economia, nem às cidades. Colocá-lo na equação vem com
pelo menos 62 anos de atraso. O duelo é outro. Queremos um centro histórico
vazio ou com habitantes? Queremos uma Lisboa-Disneylândia ou uma Lisboa
inteligente? Uma Lisboa sem critério ou com visão? Um
centro-cenário-para-turistas ou um centro capaz de atrair turismo a longo prazo
sem expulsar os residentes, nem destruir o “mix funcional”? O duelo é entre uma
cidade banal e de plástico e uma cidade genuína e distintiva.
A única coisa que quero é oferecer mais um miniargumento
para o debate e insistir que é possível melhorar as nossas cidades.
Correndo o risco de déjà vu, depois das cadeiras, fui contar
as lojas de bugigangas. Não percorri toda a Baixa, muito menos todo o centro
histórico. Cingi-me às 17 ruas da grelha pombalina central: as dez paralelas
que descem para o rio (Madalena-Nova do Almada) e as sete que atravessam na
perpendicular (Comércio-Santa Justa).
Neste rectângulo, contei 616 lojas a funcionar (dezenas e
dezenas estão fechadas). Destas, 103 são lojas de bugigangas (ímanes,
miniaturas da Torre de Belém, porta-moedas de cortiça e T-shirts do Ronaldo),
12 alugam bicicletas e carrinhos, seis são “mercearias” com “traditional food”
que se anunciam como “olive shop”, e 13 vendem vinho, quase sempre com
“experiências” e “wine tasting”. Somado, são 134 lojas que existem a pensar nos
turistas.
Esta é uma pequena amostra. Não cheguei à Sé nem ao castelo
de São Jorge ou a Alfama, onde as bugigangas reinam e ocuparam farmácias,
papelarias, mercearias, padarias, oculistas e ateliers de costura. Às 134,
podemos somar dois terços dos cafés e restaurantes (151) — e aqui estou a ser
simpática. Total: 234 lojas para turistas.
No ano passado, a Câmara Municipal de Amesterdão proibiu a
abertura de novas lojas para turistas em 40 ruas do centro histórico. Havia
280. Ao anunciar a medida, o vice-presidente disse que ter tantas lojas iguais
prejudicava a cidade.
Os critérios da minha contagem serão diferentes, mas não
muito. Em Amesterdão, consideraram lojas para turista os lugares onde se vendem
souvenirs, queijos e bilhetes (para os canais e os museus) e se alugam
bicicletas.
Como Amesterdão, o nosso CBD (Central Business District)
arrisca-se a tornar-se um CCB (Centro Comercial das Bugigangas).
O comércio da Baixa ainda tem algumas “funções raras” que
definem os CBD: encontrei uma chapelaria, um escritório da ILGA, o velho
Polycarpo das facas, sete retrosarias, seis lojas de ferragens e material
eléctrico, dois sapateiros, três gravadores, quatro lavandarias, oito
cabeleireiros e barbearias, duas sex shops e o Animatógrafo do Rossio. Também
há uma residência universitária, lojas de tatuagens, decoração, lãs e tecidos.
As ourivesarias são pouco mais de 20. Há alguns serviços (finanças, registos,
bancos e correios). E pouco mais.
O resto é monótono. Contei 151 cafés e restaurantes, muitos
dos quais indistintivos. Se todos os menus voassem e caíssem trocados, os
empregados de mesa não notavam. Há 101 lojas de roupa, sapatos e malas. E
contei 41 hotéis e guest houses.
Em 2019, não vou contar candeeiros, não se preocupem. Se
alguém quiser contar as lojas de bugigangas do resto do centro histórico, é um
serviço público bem-vindo e candidato a coffee break. Até lá, vou estudar os
programas de viagens que o escritor José Luís Peixoto organiza com a agência
Pinto Lopes a Pyongyang. Antes que chegue a democracia e as bugigangas.
O mistério das lojas asiáticas
O perigo de generalizações exige-nos prudência e cautela,
mas também não nos pode conduzir à paralisação e à apatia.
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
12 de Julho de 2017, 6:06
Este artigo é totalmente baseado e sustentado por citações e
constitui um convite aos ilustres jornalistas para traduzirem estas perguntas e
questões em investigações, que possam contribuir para o desvendar deste
mistério.
“Durante o primeiro
período de trabalho de campo havia 60 lojas de bangladechianos nesta zona de
Lisboa. Em 2006 eram já 80 ao longo da Avenida Almirante Reis, Rua da Palma,
Calçada dos Cavaleiros, Rua do Benformoso, Largo do Intendente, Rua de São
Lázaro e nos centros comerciais Mouraria e Martim Moniz. Em 2008, ocupavam já
mais de 150 lojas, entre a Praça Martim Moniz e imediações, os Anjos e a baixa
lisboeta (onde, só no último ano, abriram mais de 30 lojas).”
Isto afirma José Mapril em 2010 num estudo académico
publicado na Etnográfica Revue. Num levantamento desenvolvido pelo sociólogo
Guilherme Pereira ele assinala que desde 2010/12, na zona da Baixa, as lojas de
souvenirs low-cost (LLC) de fabrico massificado e pretensamente português ou
representativos de Lisboa passaram de nove para 90!
Muito recentemente, Carla Salsinha (2017), a presidente da
UACS, avisava com pertinência e urgência: “Todos os tipos de comércio têm
direito a existir”, mas confessou ter dificuldade em entender a concentração de
lojas de recordações turísticas de baixo custo e de kebabs, “em locais onde os
comerciantes portugueses não conseguem sobreviver”. Apesar das rendas cada vez
mais altas, só na Baixa haverá 97 lojas de souvenirs detidas por cidadãos do
Bangladesh, disse a presidente da UACS. E depois, para além dessas, há todo um
mundo de lojas muito caras e das grandes cadeias multinacionais. Tudo isto
estará a criar um quadro muito desfavorável para o comércio convencional.
Salsinha denuncia uma total ausência de planeamento
estratégico por parte da CML, do chamado Urbanismo Comercial nos
licenciamentos, de forma a garantir um equilíbrio. Além disso, os produtos de
fabrico massificado e pretensamente “portugueses” garantem um tsunami de
plástico e quinquilharia híbrida, que afecta e domina largamente o ambiente e a
imagem de uma zona que se pretendia como a historicamente central e nobre de
Lisboa.
Em 2014, a conceituada e respeitada professora Raquel
Varela, especialista nas questões do Trabalho, já tinha referido o efeito
nocivo e incompreensível deste fenómeno: “As mercearias asiáticas em Portugal
fazem dumping como fazem as empresas-monopólio portuguesas cujos preços e a
produção é inteiramente — e sem qualquer livre concorrência que não a da
aparência jurídica — por estas fixada. Não faço ideia se as ditas mercearias
são indianas, do Bangladesh, ou do Paquistão, nem me interessa, se fossem
alentejanas e fizessem dumping eram as mercearias alentejanas que, como fazem
dumping, não podem vender produtos de qualidade nem ter trabalhadores com
condições dignas. Entram em Lisboa, e noutras cidades, com salários mais baixos,
horários não controlados por ninguém e condições laborais desconhecidas —
muitas com um regime fiscal abonatório durante cinco anos.”
Seguindo esta linha de questões, a jornalista Sónia Simões
publicava um artigo no Observador (18 Março 2016): “Nos últimos meses, o número
de mercearias e frutarias tem crescido abruptamente nas ruas dos bairros
históricos de Lisboa. E não só. Já se começam a fazer notar noutros concelhos.
Para tal, também contribuíram as leis portuguesas. Por um lado, como sublinhou
ao Observador o vereador Duarte Cordeiro com o pelouro da Economia e Inovação
da Câmara de Lisboa, o Licenciamento Zero, que vem simplificar a vida aos
empresários que queiram abrir um negócio. Por outro, refere o responsável pelo
SEF, a própria Lei dos Estrangeiros, que dispensa os vistos de trabalho para a
autorização de residência no país.
Assim, qualquer cidadão estrangeiro que obtenha um contrato
de trabalho e faça descontos para a Segurança Social consegue automaticamente
uma autorização de residência — o que não acontece noutros países da Europa.
‘Temos indícios de que algumas lojas possam estar a ser usadas para esse fim’,
reconhece o investigador. Sempre que os serviços de fiscalização do SEF se
deparam com vários contratos de trabalho em nome de uma mesma empresa, abrem um
inquérito para apurar se existe, de facto, uma relação laboral, ou se é uma
relação fictícia. Daí as empresas estarem frequentemente ‘a rodar’. Isto é, a
abrir e a fechar, mas mantendo os mesmos espaços comerciais.”
Para terminar, o perigo de generalizações grosseiras e de
estigmatizações ou mesmo de inaceitáveis discriminações de grupos étnicos
exige-nos prudência e cautela, mas também não nos pode conduzir a uma
paralisação e apatia impedidora, inibidora e neutralizadora dos mais básicos
princípios de análise, dedução e discernimento daquilo que é evidente. Trata-se
do equilíbrio e futuro de Lisboa!
Historiador de Arquitectura
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