Quem lá foi ainda lá está
Foram os primeiros a entrar na EN236-1 depois da tragédia em Pedrógão
Grande. Inspetores da Judiciária, peritos da Medicina Legal, militares da GNR.
Ainda não falaram com ninguém, porque não devem falar. Estavam a trabalhar,
representam instituições, há uma investigação em curso. Mas precisam tanto de
falar. Este é o seu relato, um exorcismo de tristeza sem nomes. Nem deles nem
das vítimas. Por respeito
Passou
quase um mês e os sonhos permanecem. E os flashes vindos do nada, por coisa
nenhuma. Uma estrada feita de fogo e só eles no meio. Um crânio pequenino a
olhá-los fixamente com os olhos que já não tem. Em cada família anónima a cara
das famílias que morreram. Nos ouvidos ainda os gritos, de um agudo que rebenta
escalas, gritos não, berros que arrepelam a pele, “Ai, acuda-me! Tirai-os de
lá”, e eles sem se puderem mexer, tal como naquele dia, sem poder fazer nada
para os salvar. Gente habituada à morte, com anos ou mesmo décadas ao serviço
da Polícia Judiciária, do Instituto Nacional de Medicina Legal e da Guarda
Nacional Republicana, deixou-se tocar por ela, apanhada em falso pela dimensão
desmesurada da tragédia de Pedrógão, as histórias demasiado humanas a
transformarem os cadáveres em muito mais do que um objeto de trabalho. Um pé no
alcatrão derretido da Estrada Nacional 236-1 e a barreira profissional caiu,
ausentou-se, deixando-os sem proteção para o que viram a seguir. Foi respirar
fundo, os pulmões presos às costas, o dever a travar brilhos nos olhos e “bora
lá, segue”. Mas não seguiram. Ainda lá estão, na ‘estrada da morte’. O nome é
feio, sensacionalista, cruel para quem ali mora, mas nenhum outro se lhe cola
tão bem. Desaparecerá com o tempo, assim como as coroas de flores colocadas nos
rails e os remendos do alcatrão.
Sábado, 17
de junho. “112 informa: coluna de fumo, será em mato. Acionado CBV Pedrógão
Grande e feita triangulação com CB’s Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos e
CMA Ferreira do Zêzere. Informado CODIS Leiria.”
Eram 14h43
e a Proteção Civil arrancava com o relatório da ocorrência do incêndio de
Pedrógão Grande, com ponto zero em Escalos Fundeiros. Começou miúdo, banal, por
um raio de trovoada seca que a PJ garante ter existido mas que o IPMA não viu.
A descarga atmosférica bate nos cabos de média tensão, descarnando-os, faz um
ricochete de 15 mil volts e lança-se na copa de um carvalho e daí para o mato
circundante. Num ai de dez minutos já pedia mais meios e em duas horas corria
com grande intensidade e multiplicava-se em frentes, três, depois quatro,
agigantando-se com a falta de comunicações e as rajadas de vento, que se fazem
de fogo em dia de 40 graus, alimentando-se de pinheiros e eucaliptos e matos
(43.201 hectares) e casas (491) e vidas (64).
Em cinco
horas chegou à zona da EN236-1, que liga Castanheira de Pera a Figueiró dos
Vinhos. Faltava pouco para as oito da noite. Era dia e não era. Era um breu de
fumo denso, horrível, puxado a rajadas brilhantes de fagulhas que mantinham os
helicópteros em terra. O IC8 estava cortado há menos de uma hora. De cinco em
cinco minutos a Proteção Civil registava mais uma povoação cercada pelas
chamas. Vila Facaia, Casalinho, Troviscais, Mosteiro, Graça, Vermelho, Pobrais.
Choviam os
pedidos aflitos dos comandos no terreno, sem comunicação com o posto de comando
e sem veículos para acudir. Era preciso evacuar e não havia ninguém para ir lá.
Mesmo que houvesse, não se conseguia falar com quem manda para os tirar de lá.
E os pedidos aflitos dos populares a chegar via 112, entre o foge e o não foge.
“Habitações cercadas com idosos acamados”, “vítimas queimadas”, “família em
perigo”, “casas a arder”, “despiste”, “filho desaparecido”... Uns fecharam-se
em casa. Os que decidiram partir desembocaram quase todos na Nacional. Sítio errado,
hora errada. Ao mesmo tempo chegou lá o diabo de fogo, o ciclone de chamas, o
fim do mundo, a incineradora, o downburst. Em 300 metros de estrada, ao
quilómetro 7, morreram 47 pessoas, 30 dentro dos carros, 17 fora.
Numa ponta
e noutra da via só gritos, lancinantes, guturais, de um sofrimento atroz. No
meio o silêncio. Gritava a meia dúzia que de lá saiu viva, a pé, de cabelos em
chamas, a pele queimada e a mente em ferida com as mortes grotescas a que
assistiu. Gritava o pai que deixara lá duas filhas e mulher. Gritavam os
vizinhos que sabiam bem quem partiu de carro das aldeias de pouca gente onde
todos se conhecem.
E gritavam
para dentro os militares da GNR, impotentes perante o monstro, imprevisível,
inesperado, repentino. Atónitos com a violência e a rapidez. “Como? Mas como é
que? Num minuto estava ali longe e depois...” Um fogo que não foi só de um lado
ao outro da estrada, pelo alto dos eucaliptos e pinheiros, mas circulou também
rasteiro, matreiro, à traição, em ambas as margens, na direção dos carros. E
também no ar, remoinhos desaustinados, bolas de fogo como balões a quem
soltaram o pipo. Não havia como travar aquilo.
Alguns militares, de tanto engolir lágrimas, afogaram-se em
angústia. Dez estão sob vigilância do gabinete de psicologia da GNR, que montou
campanha em Pedrógão. Dois foram encaminhados para o centro clínico.
Nos extremos da morte desenrolaram fitas brancas e amarelas, ataram-nas na largura da estrada e vedaram o troço, que continuaria a arder por longas horas antes que alguém lá entrasse e confirmasse (desmentisse, na verdade) a primeira contagem de vítimas mortais: 16, só ali. Mais 3 em Figueiró. No local permaneceram sempre patrulhas da GNR. Por segurança, sim. Mas também por respeito. Quem tanto sofreu não pode ficar sozinho.
Nos extremos da morte desenrolaram fitas brancas e amarelas, ataram-nas na largura da estrada e vedaram o troço, que continuaria a arder por longas horas antes que alguém lá entrasse e confirmasse (desmentisse, na verdade) a primeira contagem de vítimas mortais: 16, só ali. Mais 3 em Figueiró. No local permaneceram sempre patrulhas da GNR. Por segurança, sim. Mas também por respeito. Quem tanto sofreu não pode ficar sozinho.
A tragédia
chega às redações por volta das 23h de sábado. A PJ decide que é hora de
avançar. Não é preciso esperar pelo óbvio. Entre inspetores dos homicídios e
dos fogos, de Coimbra, Lisboa, Leiria e Aveiro, aciona-se uma dúzia de
elementos. Alguns avançam para Escalos Fundeiros, terriola de 80 almas, para
descobrir o ponto zero do incêndio. Outros para a EN236-1. Seguiram por
estradas acabadas de arder, sempre a abrir, no centro das duas faixas, como se
fossem no encalce do fogo sem nunca o querer apanhar, num slalom entre ramos
incandescentes, com bombeiros e GNR a bater o trajeto.
As
labaredas, aquém da distância de segurança, foram o único sinal de vida no
caminho. Nem um carro, nem uma pessoa, nem um animal. Só um fumo horrível. As
placas das terras queimadas. Uma solidão angustiante. Parecia uma cenário
pós-Tchernobyl. Ou uma foto a preto e branco em que só pintaram os carrinhos de
cor. E cada vez mais escuro, denso, forte, quilómetro a quilómetro, em direção
ao fim do mundo.
Rezou-se
baixinho para afastar o medo ou uma avaria, um pneu furado. Uma paragem e era o
fim. Talvez não fosse, mas parecia. Dali a umas horas passariam também por lá
as equipas do Instituto Nacional de Medicina Legal, uma de Coimbra e duas do
Porto. A recolha dos corpos devia começar quanto antes.
Eram três
da manhã quando a Judiciária entrou pela primeira vez na EN236-1. Passavam sete
horas desde a hora da morte e ainda não se respirava. As máscaras, das mais
fortes, mal travavam o fumo. Os pés das árvores ardiam, o alcatrão derretido
colava-se aos sapatos.
Foi uma
passagem rápida, para um lado e para o outro, mas ficará para sempre na memória
de quem a fez. Estava escuro como breu. De lanterna em punho, espreitaram para
cada carro e iniciaram uma contabilidade macabra. Depressa ultrapassaram as
estimativas. Contaram 26, por alto.
Ainda havia
corpos a arder. Uma criança ao colo do pai, que um inspetor extinguiu, parecia
olhar para eles através da janela de vidro derretido. O vidro funde a 1100
graus. Não havia qualquer hipótese de sobrevivência, nem dentro nem fora dos
carros.
Mesmo na
penumbra, cada vítima contou-lhes uma história pela posição em que morreu, como
uma Pompeia apanhada pelo vulcão em que o fogo fez a vez da cinza. O casal
abraçado, resignado. As crianças protegidas debaixo do tabliê. O homem
escondido sob o carro numa derradeira tentativa de sobrevivência. As fugas pela
estrada travadas pelo calor. Um corpo que alguém tentou apagar com um extintor,
deixando-lhe o perfil desenhado a branco no asfalto.
Numa
investigação criminal, num homicídio, os mortos servem um fim. Ajudam a chegar
a quem os matou. A atenção foca-se na obtenção de pistas, o corpo não é mais um
corpo que teve uma vida mas um campo de análise, mesmo nos mais bárbaros
crimes. Mas ali não havia culpados para procurar, ali um cadáver era uma pessoa
real que era preciso identificar, atentar nos detalhes pessoais, olhar
fixamente quando se quer é virar a cara.
E, de tanto
olhar, as imagens ficaram gravadas e ativam-se sem aviso todos os dias. Uma
criança da idade daquela criança. Uma família igual àquela família. Dias
terríveis, noites piores, em que a mente viaja repetidamente até à estrada,
àquela estrada, com aquelas pessoas que só se queriam salvar, pôr os filhos a
salvo, em que se sente o que se pensa que sentiram, em que se deixa que entrem
na nossa vida e sejam nossos também, próximos, e que soframos por eles. E isso
mói. Traumatiza.
Perto das
seis da manhã chegou a primeira equipa de Medicina Legal. Antes não valia a
pena. A estrada não tinha iluminação e não foram providenciados holofotes para
o local do crime. Fala-se de crime porque o inquérito tutelado pelo DIAP de
Leiria não afasta a possibilidade de ter havido homicídio por negligência. Será
longa a investigação, alimentada por centenas de testemunhos de outros tantos
intervenientes, desde o primeiro a ver o fogo a quem o tentou apagar, quem
mandou nas operações, quem não mandou mas devia ter mandado, quem ligou para o
112 a pedir a ajuda que nunca chegou, quem fugiu, quem perdeu tudo, quem se salvou.
E mais os peritos e as peritagens, os relatórios, as imagens de drones, os
vídeos de populares, as análises, as autópsias. Para cada uma das vítimas uma
ramificação de ligações que é preciso seguir. Não peçam pressa, que não vai
dar.
No
lusco-fusco, que o fumo fazia mais fusco que lusco, começava o levantamento
oficial das vítimas, com todos os elementos vestidos de macacão branco, à CSI.
Na mala que deve estar sempre preparada para emergências como esta havia
etiquetas, luvas, máscaras e bodybags. Não chegaram. Tiveram de recorrer aos
dos bombeiros. As estatísticas da tragédia ultrapassaram até a logística
recomendada para um desastre de massas.
À medida
que ia clareando, o palco da tragédia tornava-se ainda mais dantesco, apanhando
desprevenido mesmo quem faz da análise da morte profissão. Quem faz autópsias
todos os dias aguenta tudo, não é? Não. Não há como aguentar aquilo. Não eram
os corpos, era o cenário todo. Falava. Mortos que falavam. 300 metros com 30
corpos espalhados, como um presépio de horror feito de soldadinhos de chumbo,
cada um no seu sítio, na sua posição. Como um filme que se põe em pausa. A
ideia de movimento estava lá, a ideia de vida.
A sala de
autópsias é um lugar assético, protegido, onde as emoções não entram, não
magoam. Não se conhece a pessoa. Entra, sai e acabou. Ali, no alcatrão,
recebeu-se tudo num turbilhão, sem barreiras, que piorou nos dias seguintes,
com a mente a fazer o match perfeito entre o que viu e as histórias e
fotografias que a comunicação social foi mostrando. Aquela era aquela família.
E a outra. E aquele casal. Tão novos. Estavam felizes nas fotografias das redes
sociais. Uns tinham vindo da praia, muitos só estavam a passar o fim de semana,
nem eram dali.
Nos
primeiros três carros não havia ninguém, os ocupantes conseguiram fugir. Depois
aparece um corpo, e depois outro, e depois um monte de carros, todos com gente
lá dentro. E outro monte mais à frente. Percebe-se o pânico, a confusão, a
desorientação. Não se via um palmo com o fumo. Há um primeiro que se despista,
bate nos rails e fica atravessado. Já dali não sai. A seguir vem outro que
trava a fundo. E atrás mais um que bate nesse, e depois outro e outro. Há um
pinheiro que cai. Tenta-se fazer marcha atrás, inverter a marcha, mas já não é
possível. Os pneus rebentam, desfazem-se, as jantes cravam-se no alcatrão
quente.
Para o lado
do IC8 havia fogo, para o lado de Castanheira os acidentes que a maioria só viu
quando entrou por ali adentro. Vários choques em cadeia que fizeram de barreira
à fuga e de onde foi impossível sair.
Há pessoas
dentro dos carros, fora dos carros. Uns tentaram fugir para cima, outros para
baixo. Uns mudaram de carro, outros quiseram mudar e não conseguiram e ali
ficaram. Muitas portas fechadas, a maioria. Há sinais de atropelamentos. Foi o
salve-se quem puder.
Passadas
dez horas desde a hora da morte os carros ainda estavam quentes e havia brasas
nas margens. Mantinha-se o fumo e um calor atroz. Entre as seis da manhã e a
uma da tarde levantaram-se 39 corpos, só ali num pedacinho de estrada. A
técnica de abrir as portas foi aprimorada pela repetição. Basta puxar um pouco
para cima, ouve-se um clique e já está. A ida aos restantes, mais dispersos,
estendeu-se até ao fim do dia.
As vítimas
foram tiradas uma a uma pela equipa conjunta da Medicina Legal e da PJ. Não é
normal que seja assim. Os peritos não fazem essa parte braçal, final.
Habitualmente, são as funerárias ou os elementos da Proteção Civil. Mas ali
sim, sem perguntarem sequer se havia quem o fizesse. Houve cuidados extremos nesse
momento. Houve carinho.
A cada
carro foi atribuída uma letra, a cada corpo um número. Além das fotografias do
local intocado, o anotador registou tudo o que permitisse a rápida
identificação das vítimas (concluída em cinco dias): matrículas, marcas, número
de ocupantes, referências geográficas, local da estrada, distâncias entre
carros e o pouco que o fogo não apagou. O ouro permaneceu nas vítimas que o
traziam, ainda que fundido em alguns casos (funde a mais de mil graus). Também
no chão, aqui e ali, o metal precioso foi encontrado em montinhos de anéis,
fios, pulseiras. Quem fugiu das casas trouxe consigo o que quis salvar.
Um a um
foram colocados em sacos ao longo da estrada, recolhidos posteriormente para o
camião frigorífico da Autoridade Nacional de Proteção Civil, um gigante branco
(no cenário negro), com gavetas suficientes para responder a cenários de
catástrofe. Mas que se avariou duas vezes. Uma no caminho, fácil de remendar, e
outra descoberta já depois de todos os corpos estarem acondicionados. Não fazia
frio. De recurso foi alugado um outro camião, de transporte de alimentos, mas
sem gavetas, que obrigaria a mais uma transladação, já às primeiras horas da
madrugada de segunda-feira, na zona industrial de Figueiró, por recato, antes
de partir para o INML em Coimbra.
As equipas
da ‘estrada da morte’ já tinham sido entretanto rendidas. Mas antes da partida
passaram pelo quartel dos bombeiros de Castanheira de Pera. A vila estava
cercada pelo fogo. Só se entrava por um caminho, o que já tinha ardido. Havia
uma mesa corrida, posta, em reabastecimento contínuo. Alimentava-se quem
aparecia a troco de nada. Havia canja, jardineira, entrecosto, melão fresquinho
e muito desalento, que pesava. Tantas histórias naquela mesa. Pessoas a chorar
mortos num desabafo baixinho, pessoas a procurar pessoas, bombeiros exaustos,
famílias sem expressão, polícias, médicos legistas, num entra e sai mudo.
Era um cenário de guerra. À mesma mesa sentavam-se os
deslocados, os feridos, os combatentes, cada um com a sua vivência de horror,
passando uns aos outros a comida numa partilha de irmãos. Toca a sirene. Um
bombeiro que tinha acabado de se sentar levanta-se. Beija a filha e a mulher,
abraça-as quando lhes vê as lágrimas. E parte.
“Bora lá, segue.” Há que seguir em frente.
“Bora lá, segue.” Há que seguir em frente.
Sem comentários:
Enviar um comentário