O prédio do Estado para futura residência estudantil que
será um condomínio de luxo
POR O CORVO • 9 OUTUBRO, 2017 •
O Largo do Intendente
assiste à construção de um empreendimento de luxo, no que resta de um edifício
do XVIII. O imóvel, que pertencia ao Estado, foi anunciado, em 2014, como
futura residência universitária com 239 quartos. O então presidente da Câmara de
Lisboa, António Costa, disse que o projecto era da “maior importância” para a
revitalização da zona. O mesmo considerou Manuel Salgado, vereador do
urbanismo, avaliando-o como vital para “trazer gente nova”. Mas a Estamo,
imobiliária estatal, acabou por vender o prédio a uma empresa com outros
planos. A qual, durante o período da venda, mudou duas vezes de mãos e três
vezes de gerência, sendo agora detida por uma sociedade controlada por Luiz
Horta e Costa, ex-administrador do grupo Escom. Relato de como o interesse
público perdeu para o privado.
Texto: Samuel Alemão
Por estes dias, o
fragor das retroescavadoras em movimentações de terras e o trabalho dos
operários dominam o interior do número 57 do Largo do Intendente. Há muito que
por detrás das fachadas do antigo prédio de construção pré-pombalina se
encontrava apenas o seu miolo vazio. Algo que está prestes a mudar, com a
construção de um empreendimento de luxo que prevê 51 apartamentos de tipologias
T1 e T2, com áreas brutas variando entre os 50 e os 170 metros quadrados,
distribuídos por seis pisos. O projecto imobiliário, denominado Largo do
Intendente 57, tem como promotor a Eusofia, sociedade imobiliária cujo capital
é detido maioritariamente por uma empresa criada por Luiz Horta e Costa, antigo
administrador do grupo Escom, parte do universo Espírito Santo.
Mas, há pouco mais de
três anos, o antigo imóvel do Estado havia sido anunciado em reunião de câmara
como uma futura residência de estudantes. Algo que António Costa, então
presidente da autarquia, qualificou como da “maior importância”. Em 26 de março
de 2014, foi aprovado em reunião de vereação, apenas com duas abstenções, um
pedido de licenciamento para a construção de uma residência de estudantes, com
239 quartos, requerido pela Estamo, imobiliária de capitais exclusivamente
públicos criada para alinear propriedades estatais. Na memória descritiva do
projecto, entregue nos serviços de urbanismo da autarquia no ano anterior, além
do alojamento, fazia-se referência a “uma diversidade de espaços destinados a
comércio (loja/bar/cantina), recepção e área administrativa”, mas também a
áreas de estar, de leitura, de estudo e de refeições. Propunha-se também a
manutenção da “fachada, inalterada e recuperada como uma ‘memória’ do antigo
revestimento em azulejo”.
O edifício, que
estava indicado como Imóvel de Valor Concelhio, e se encontrava devoluto há
muito, havia sido apontado como a possível futura casa do Alto Comissariado
para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), em abril de 2011, aquando da
instalação do gabinete da presidência de António Costa no Largo do Intendente –
momento que desencadeou o processo de regeneração daquela área. Mas, em julho
do ano seguinte, o então autarca anunciava que tal já não se viria a
concretizar, por desistência do governo na altura liderado por Passos Coelho.
No entanto, Costa garantia, nesse mesmo momento, que a Estamo se encontrava “a
decidir como o valorizar” o imóvel, assegurando ainda que existia uma
universidade “interessada” em usar o espaço para residência de estudantes,
embora sem dar “indicação oficial” aos serviços camarários.
Certo é que a empresa
estatal acabou ela mesma, em 2013, por apresentar o tal pedido de licenciamento
para o projecto da residência universitária. Na véspera da sua aprovação, em
Março de 2014, o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, declarou ao jornal PÚBLICO que se tratava de um “projecto
importantíssimo” para o rejuvenescimento da Mouraria, pois iria “trazer gente
nova” para o bairro. Na tal reunião camarária realizada a 26 de março de 2014,
na qual o projecto foi discutido e votado, também António Costa mostrou o maior
entusiasmo com o mesmo plano.
“A residência, seja
de quem seja, é da maior importância para a revitalização do Intendente porque
a introdução de 200 quartos para estudantes é o maior contributo que podemos
dar para a revitalização definitiva daquela zona”, disse o então presidente, em
resposta às críticas dos dois vereadores comunistas, que se opunham a uma
possível gestão privada da residência. Foram deles, aliás, ambas as abstenções.
Mas todos os partidos presentes na vereação (PS, PSD, CDS e PCP) reconheceram a
importância da iniciativa então aprovada. “Quando nos aparece uma proposta num
sítio que para nós é como pão para a boca, o que devemos fazer é procurar
acelerar. Queremos uma cidade viva”, disse ainda Costa na mesma reunião.
Os sinais de que tal
desígnio não se viria a cumprir surgiram, porém, no ano seguinte, quando a
Estamo, e apesar do licenciamento para a residência estudantil, decidiu colocar
o prédio à venda, por cerca de três milhões de euros. Em 18 de junho de 2015, O
Corvo dava conta dessa aparente mudança de planos, quando noticiava que o
imóvel havia sido incluído num lote de uma dúzia de propriedades situadas no
centro de Lisboa a alienar. Na altura, fonte da imobiliária estatal esclarecia
que “não se pode dizer que o imóvel se destina a uma residência de estudantes”.
“O que acontece, isso sim, é que relativamente a ele existe um projecto
aprovado para esse destino, mas a opção ficará sempre ao critério de um
eventual comprador e, obviamente, das entidades licenciadoras, sobre se quer
manter ou alterar o projecto, ou destinar o imóvel a uso distinto”, comentava a
mesma fonte.
A participada pela
Parpública dizia também a O Corvo que o facto de ter decorrido mais de um ano
entre a aprovação em reunião camarária do projecto de arquitectura e a
colocação à venda do imóvel estava relacionada com a “(aparente) receptividade
do mercado para acolher determinado produto”. De facto, na primavera de 2015, o
mercado imobiliário evidenciava sinais de retoma, após os anos da crise, pelo
que a Estamo afirmava ser aquela “uma boa altura para avançar com a respectiva
venda e testar a receptividade da procura ao produto”. Na resposta às questões
do Corvo, a empresa esclarecia que, “caso o imóvel não venha a receber qualquer
proposta válida e nos termos do Regulamento de Venda, ficará um ano em
negociação directa”. “Nesta altura não será, pois, de antecipar qualquer
alteração do projecto que venha a ser promovida pela Estamo”, previa.
Mas ela aconteceu. No
final desse ano, a Estamo acabou por alienar o imóvel em causa por 4,5 milhões
de euros. O contrato-promessa com a firma Eusofia – Sociedade Imobiliária, Lda
foi assinado no dia 7 de dezembro de 2015, vindo a escritura da transacção a
ser efectivada no seguinte dia a 12 de fevereiro. Alguns meses depois, ainda em
2016, entraria nos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa um novo pedido de
licenciamento para obras de transformação daquele edifício num conjunto
habitacional, com uma área bruta construtiva de 6.957 metros quadrados e uma
área total habitável de quase 3 mil metros quadrados. Ficava assim para trás a
ideia anunciada, dois anos antes, de construir a então considerada vital
residência universitária. As obras para o empreendimento de luxo acabaram por
receber luz verde, a 27 de janeiro deste ano, através de despacho assinado pelo
vereador Manuel Salgado – o alvará com a autorização definitiva para o avanço
dos trabalhos seria emitido a 19 de maio passado. Eles começariam poucas
semanas depois, tendo um prazo de conclusão estimado em 18 meses.
As obras planeadas e
a comercialização do empreendimento de luxo parecerão agora um coisa linear, se
comparadas com a vida social da Eusofia no período que mediou entre a
negociação com a Estamo e a entrega do projecto aos serviços de urbanismo da
CML. Senão, vejamos. No momento em que aquela sociedade imobiliária assinou o
contrato-promessa para a compra do então decrépito prédio de propriedade
estatal, a 7 de dezembro de 2015, era detida a 100% pela firma Lisbinvest SA,
sediada no Luxemburgo, onde fora criada em dezembro de 2013 por Miguel Câncio
Martins. O empresário era, aliás, o gerente da Eusofia na altura da assinatura
do contrato-promessa. Função assumida apenas duas semanas antes, a 23 de novembro
de 2015, no exacto momento em que a sua Lisbinveste adquiria a totalidade das
quotas da firma criada, em dezembro de 2014, por António João Barata Da Silva
Barão. Com essa transacção, a firma passava a deter uma quota de 90% e outra de
10% do capital social da Eusofia, de apenas dois mil euros.
Um negócio que
acontecia no exacto momento em que a Eusofia e a Estamo ultimavam os detalhes
da venda do número 57 do Largo do Intendente. No dia em que a Lisbinvest
comprava a Eusofia e Miguel Câncio Martins se tornava gerente, esta função
deixava de ser exercida por Nicolas Patrick Marie Dalibot, um empresário que
apenas desempenhava tal cargo há 21 dias. Assumira-o a 2 de novembro, sucedendo
a António Silva Barão, que renunciara ao cargo. Algo que Patrick faria a 23 de
novembro, para dar lugar a Câncio Martins. Este, porém, também não assumiria
uma gerência muito longa na Eusofia, vindo a renunciar a 28 de março de 2016,
ou seja, quatro meses após ter assumido funções. É nesse dia que se dá uma
alteração importante, com a compra da quota de 90% da sociedade Eusofia pela
Flag Capital, SA e a entrada para a gerência de Luiz Miguel de Oliveira Horta e
Costa, de Eduardo Nuno Leitão Horta e Costa e ainda de José Salazar Estibeiro
Rodrigues.
A Flag Capital fora
criada a 23 de dezembro de 2015 – por coincidência, num período entre a data da
assinatura pela Eusofia do contrato-promessa com a Estamo para a compra do
edifício do Intendente e o efectivo firmar da escritura -, com um capital de 50
mil euros, tendo então um conselho de administração formado por Luiz Horta e
Costa, Rui Miguel de Oliveira Horta e Costa e ainda Eduardo Nuno Leitão Horta e
Costa. Uma composição que viria a ser alterada a 31 de março de 2016, três dias
após a tomada de posição maioritária daquela sociedade na Eusofia. Nessa
altura, dá-se a saída da administração da Flag Capital, por renúncia, de Rui
Horta e Costa – o qual viria também a renunciar, em fevereiro deste ano, ao
cargo de administrador não executivo dos CTT, após ter sido constituído arguido
no âmbito da Operação Marquês, relacionado com alegados esquemas de corrupção,
fraude fiscal e branqueamento de capitais.
O Corvo questionou
agora, mais uma vez, a Parpública sobre os contornos da mudança de planos
relativamente ao prédio do Largo do Intendente. “Qual a razão para o vosso
imóvel – que havia visto aprovado pela CML, em março de 2014, o licenciamento
para a sua transformação numa grande residência para estudantes universitários
– ter acabado por se transformar num empreendimento de habitação de luxo?”, era
pergunta. A entidade gestora de participações do Estado informou, todavia, que
não havia nada a acrescentar sobre esta matéria.
Na recta final da
campanha eleitoral para as últimas eleições autárquicas, Ricardo Robles,
candidato do Bloco de Esquerda à presidência do município de Lisboa, que acabou
por ser eleito vereador, apontou o caso da mudança de planos verificada no
Intendente como exemplo da falta de investimento em residências universitárias.
Mas também de especulação imobiliária. “É esta lógica da cidade que privilegia
sempre o negócio, a mais-valia, o lucro fácil em detrimento do que são as
necessidades das pessoas, que estão a ser expulsas e precisam de alternativas
de habitação”, disse, referindo-se à passagem de um imóvel do Estado para
investidores privados, os quais estão ali a construir apartamentos de luxo,
pouco tempo depois de a residência universitária que lá deveria ter nascido ter
sido qualificada, pelo então presidente da CML, como da “maior importância para
a revitalização” daquela zona da cidade.
O Corvo perguntou a
Margarida Martins (PS), presidente da Junta de Freguesia de Arroios, o que
pensava sobre esta alteração de planos. A autarca garante que apenas soube da
construção dos apartamentos “há dois meses”, pouco depois de as obras terem
início e recordou que as juntas nada podem decidir sobre esta matéria.
Confessando-se preocupada com a falta de habitação naquela área da cidade, que
qualifica como “preocupante”, Margarida Martins desvaloriza, todavia, a falta
de alojamento para estudantes.
“Há imensas
residências para estudantes na freguesia, sobretudo para pessoas que estão em
Lisboa a fazer doutoramentos e escolhem esta zona por ser perto do centro, ter
metro e ser cosmopolita”. A presidente de junta confessa, contudo, que gostaria
que houvesse “mais habitação para jovens” a preço acessível, naquela área. Algo
que, diz, deverá mudar através dos empreendimentos a construir na Rua de São
Lázaro e na Rua Gomes Freire, no âmbito do Programa Municipal de Renda
Acessível.
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