Da sublevação catalã à “greve” do
capital
A mudança
das sedes de empresas é um duro golpe para o campo nacionalista.
Jorge Almeida Fernandes
7 de Outubro de 2017, 6:24
A jornada de mobilização do referendo e a greve geral, a 1 e
2 de Outubro, revelaram um clima pré-insurreccional na Catalunha, inseparável
da crise do Estado espanhol. É um conflito de longa duração. Barcelona não tem
as condições necessárias para a independência. Depois da mobilização da greve
geral surgiram sinais de refluxo. A “deserção” da banca catalã é um golpe
forte. A estratégia independentista consistirá em continuar a “acumular forças”
para negociar com Madrid numa posição favorável.
O conflito desenvolve-se numa lógica de “espiral
acção-reacção”. A táctica imobilista de Mariano Rajoy e o vespeiro do sistema
partidário espanhol impediram que o Estado tomasse a iniciativa. A iniciativa
pertenceu, até agora, ao campo independentista. O seu “roteiro”, que levou ao
“6 de Setembro” (aprovação expeditiva das “leis” do referendo e da ruptura com
Espanha), foi desenhado com muitos meses de antecedência. Ter iniciativa
dá-lhes uma grande vantagem: são eles quem marca os tempos do confronto. Em
contraponto, sem iniciativa, o Estado fica limitado à “via repressiva”.
O referendo de 1 de Outubro (1-O) foi concebido como uma
jornada de mobilização para acelerar a ruptura. Foi planeado no sentido de opor
às polícias uma “muralha de gente”. Rajoy garantiu que não haveria votação e
viu-se apanhado numa armadilha. Perante a passividade dos Mossos d’Esquadra
(polícia autonómica), fez avançar a Guardia Civil e a Polícia Nacional com
efeitos desastrosos. Os independentistas ganharam a batalha das imagens.
Marcaram pontos.
A greve geral, inicialmente convocada pelos radicais da
Candidatura de Unidade Popular (CUP, anarquista, anticapitalista e anti-UE),
foi organizada por duas grandes associações nacionalistas, a Assembleia
Nacional Catalã (ANC) e a Òmnium Cultural, que exigem a “independência já”. Os
confrontos do 1-O foram o decisivo detonador da amplitude da greve.
Pior ainda para o Governo é a ideia de que estará em vias de
perder o “controlo do território”. Foi ridicularizado nas assembleias de voto.
Foi a seguir desafiado quando os grupos radicais cercaram o quartel da Polícia
Nacional em Barcelona e exigiram a retirada das “forças espanholas”, lançando
outras acções de acosso. Enunciavam um programa: a “expulsão” dos
representantes do Estado e das forças de “ocupação”. O poder deslocava-se das
instituições para a rua: “Las calles serán siempre nuestras”.
“Insurreição tipo Beta”
Outro sinal, nas palavras do jornalista José António
Zarzalejos, é a “desinstitucionalização do poder”: a Generalitat abdica do seu
poder e entrega a iniciativa a organizações como a ANC, a Òmnium e ou a CUP.
Puigdemont perdeu o controlo da situação: “A Generalitat é vítima da sua
própria estratégia. Ou segue a ANC, a Òmnium e a CUP, ou incorre em alta
traição.”
Há outros olhares. A jornalista Elisa Beni apela a que
encaremos a novidade radical da Catalunha, em que “os instrumentos do século XX
[não servem] para lidar com rupturas e dinâmicas sociais do século XXI”.
Escreve no El Diario: “Na Catalunha, está claramente a decorrer uma
insurreição, mas não com as velhas e esgotadas dinâmicas dos séculos passados,
mas uma insurreição em tipo Beta, uma espécie de primeiro ensaio do que
constituirá a dinâmica da revolução ou da involução políticas do novo século.”
As democracias baseadas no Estado de direito e no monopólio da força pelo
Estado estariam desarmadas perante “insurreições pacíficas e de ruptura”. Entrámos
num mundo virtual: “A pós-verdade é a capacidade de prescindir da realidade ou
da verdade.”
O “discurso do Rei”
A ANC, a Òmnim e a CUP convocaram uma mobilização máxima
para segunda-feira, dia da reabertura do Parlament catalão, de modo a forçar a
declaração unilateral de independência (DUI). O presidente Puigdemont e os seus
consellers (ministros) fizeram declarações contraditórias mas reforçaram a
crença na iminente proclamação da independência — já na segunda-feira — sob
pressão das “massas”.
Entretanto, na noite da greve geral, houve o “discurso do
Rei”. Os catalães não gostaram mas levaram-no a sério. A mensagem foi assim
lida pelo La Vanguardia: “O Estado vai defender a unidade de Espanha” ou
“Artigo 155 à vista [intervenção do Estado].” A ilusão de uma mediação
europeia, a arma de recurso de Puigdemont, desvaneceu-se. A única mediação
efectiva será a de instituições da sociedade civil espanhola. Na quinta-feira,
o Tribunal Constitucional suspendeu a sessão do Parlament marcada para o dia 9.
Para contornar a proibição, Puigdemont comparecerá na câmara na tarde do dia
10, para “informar sobre a situação política”.
O tom mudou subitamente. Santi Vila, conseller para as
Empresas, demarcou-se da DUI. Teme a intervenção estatal — o artigo 155.
“Primeiro temos de serenar e acordar um cessar-fogo, não tomar decisões nos
próximos dias. A suspensão da autonomia ou as detenções aumentariam as tensões
e polarizariam a situação.” Publicou também um artigo no soberanista Ara que
abre com uma inesperada linguagem: “O que distingue os fanáticos do resto das
pessoas é que para eles a realidade não interessa, especialmente se contraria
as suas próprias convicções.” Previne: “Também é um facto que poucas semanas
antes foi aprovado, pela maioria soberanista do Parlament, um ordenamento legal
que não será aceite como lícito pela minoria constitucionalista.”
O Partido Democrático Europeu Catalão (PDeCAT), de Vila e de
Puigdemont, apelou ao adiamento da DUI. Enfim, o ex-presidente Artur Mas
declarou ontem ao Financial Times que “a Catalunha ganhou o direito a ser
independente” mas ainda não tem condições para uma “independência real”.
Aconselha prudência.
“O fantasma da Grécia”
Na quinta-feira, a edição online do Ara abria com este
título: “O fantasma da Grécia paira sobre a Catalunha.” Na sequência do 1-O e
da greve geral, os bancos catalães caíram a pique na bolsa. O clima de
insegurança levanta o espectro da crise financeira. Os casos não são
comparáveis. Mas a “deserção” dos dois grandes bancos catalães (e espanhóis),
Caixa Bank e Sabadell, que transferiram preventivamente as suas sedes para as
Baleares e Alicante, fez soar o alarme. Outras empresas seguiram o exemplo. E
investidores estrangeiros ameaçam sair da Catalunha no caso de proclamação da
independência.
Ao longo dos últimos anos, as organizações empresariais
catalãs lançaram repetidos avisos contra o independentismo. O temor agravou-se
com o radicalismo da CUP e a sua crescente influência sobre Puigdemont e
partidos soberanistas. Todas as pressões falharam. Mas o capital pode também
“fazer greve”. É o que está a acontecer.
Os bancos e outras empresas agem por motivos económicos e
por receio da insegurança. Mas não só. O ministro das Finanças, Luis de
Guindos, fez uma rápida alteração legal que facilita a transferência das sedes.
O Ara chama atenção para a dimensão política do acto e para a vulnerabilidade
da Catalunha: “Guindos viu que ajudar as empresas desejosas de mudar a sede —
pelo facto de transmitir a sensação de que a independência terá custos irreversíveis
na vida económica e social — podia ser mais eficaz do que as medidas
jurídico-penais e policiais.”
Moral: ainda a procissão vai no adro.
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