Moradores da Misericórdia relançam a ideia do “vizinho” como
o centro da comunidade
POR O CORVO • 12 OUTUBRO, 2017 •
Melhorar as relações entre moradores, turistas, comerciantes
e donos de espaços nocturnos é o objectivo do projecto Um Bom Vizinho,
apresentado esta semana na freguesia da Misericórdia, que inclui Bairro Alto,
Bica, Santa Catarina, Príncipe Real e Cais do Sodré. Várias entidades locais,
associações, moradores e comerciantes da zona juntaram-se para mostrar que,
apesar do turismo massificado, dos excessos da vida nocturna e da especulação
imobiliária, ainda é possível dar sentido à vida comunitária no coração da
capital. “Este conceito de proximidade, que cuida e informa, é algo que nos
anima”, diz o presidente da associação de moradores, Luís Paisana. Mas será uma
tarefa “muito difícil”, reconhece. Todos têm um papel importante. E nem os
sem-abrigo ficam de fora.
Texto: Sofia Cristino
Melhorar a vida do
bairro, as relações entre vizinhos e integrar, cada vez mais, uma franja
estigmatizada da população na cidade de Lisboa são alguns dos desafios lançados
pelo projecto Um Bom Vizinho, apresentado esta terça-feira (10 de outubro) pela
Associação de Moradores da Freguesia da Misericórdia (AMBA). Segundo Luís
Paisana, presidente da associação, pretende-se “sensibilizar as pessoas para as
relações de boa vizinhança”. “Temos de viver todos em comunidade, não é com
conflitos que vamos chegar a algum lado. Há forças muito fortes e interesses
que pressionam esta freguesia (Misericórdia), mas as pessoas que cá estão têm
de fazer um esforço para se entenderem”, diz.
Numa altura em que se
fala, cada vez mais, do “turismo de massas” e em que as sempre presentes
queixas dos moradores quanto ao ruído em zonas de convívio nocturno voltam a
ser tema central de conversa, apaziguar a relação entre moradores, comerciantes
e donos de bares é um dos grandes desafios do projecto Um Bom Vizinho – que faz
parte dos 38 projectos aprovados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), ao
abrigo do programa BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) para
2017. Durante um ano, a CML financia a iniciativa que, depois, terá de
prosseguir por conta própria. Combater o despovoamento e a descaracterização da
freguesia da Misericórdia, utilizando a empregabilidade como um factor de
inclusão social, é outro dos objectivos.
“Pretende-se encontrar um equilíbrio entre moradores,
comerciantes de todo o tipo, donos de bares que fazem ruído, turistas e os que
vêm aqui só sair à noite e não são turistas. Os comerciantes têm de perceber
que estão numa zona residencial, mas que o negócio também não pode acabar
porque, senão, a zona fica desvalorizada”, explica Luís Paisana. “Temos de
evitar esta dicotomia de que os moradores estão contra os comerciantes”
acrescenta o dirigente associativo, que considera crucial o combate ao
despovoamento e à descaracterização da freguesia. Uma forma de o conseguir é
através da empregabilidade dos seus residentes.
Para cumprir os objectivos, a AMBA e os parceiros – como a
Associação Portuguesa Emprego Apoiado, o Centro de Formação Profissional para o
Comércio e Afins (CECOA), a Fundação Aga Khan e as associações dos Albergues
Nocturnos de Lisboa e Girassol Solidário – têm previstas várias actividades. A
Horta Urbana é uma delas. Num terreno da Associação de Albergues Nocturnos de
Lisboa, pretende-se juntar sem-abrigo, desempregados, emigrantes, entre outros,
a interagirem na prática da agricultura. Sendo o mote do encontro as relações
entre vizinhos, Paulo Ferreira, da Associação de Albergues Nocturnos de Lisboa,
lança um desafio a quem mora ao lado da associação. “Às vezes, a vizinhança não
olha com bons olhos para este tipo de pessoas. Ao criarmos uma horta urbana, também
queremos cativar os vizinhos a entrarem”, afirma.
Luís Paisana,
convidou, ainda, os doentes evacuados de Cabo Verde para Portugal a
participarem nesta iniciativa, salientando o forte contributo que acredita que
podem dar. “Poderá haver pessoas evacuadas de Cabo Verde, que são de ilhas onde
cultivam a terra, que, em vez de estarem numa pensão em condições sub-humanas,
passam a poder cultivar a terra, mas também têm memórias e saberes, que poderão
partilhar com outros”, explica. A Horta Urbana poderá ser, também, um incentivo
à criação de espaços de cultivo de diversos produtos agrícolas, como
“manjericão e outras ervas aromáticas de utilização diária”. “A partir da Horta
Urbana poderemos fazer hortas domésticas, porque todos podemos ter em nossa casa
uma pequena horta. Poderíamos também fazer workshops e livros de receitas”,
acrescenta.
O Toc Toc Vizinhos é outra das actividades sugeridas para o
sucesso de O Bom Vizinho. Para Luís Paisana, será, provavelmente, “a mais
complicada”, mas também a “mais entusiasmante”. A ideia é andar diariamente a
tocar à porta dos comerciantes e de outras entidades locais, sensibilizando-os
para a importância das boas relações entre vizinhos. “Vamos bater literalmente
à porta de todos os estabelecimentos comerciais da freguesia e tentar perceber
as suas necessidades pessoais e a nível de formação”, esclarece. Todos os
parceiros, formais e informais, serão ainda participantes do jornal comunitário
Folha de Alface, publicação mensal, em papel e formato digital, promovendo e
divulgando as diversas actividades do projecto.
Luís Paisana salienta que o projeto Um Bom Vizinho surge
numa altura em que o turismo “não é regulado” e “descaracteriza Lisboa”. “As
pessoas estão a desaparecer dos sítios onde habitam e, no fundo, para os
turistas é interessante perceber os nossos hábitos e cultura. Com este
projecto, pretende-se também um turismo de qualidade e não um turismo de
massas, que é destruidor e não deixa grande valor”, considera. Algo que, no
fundo, contribui também para manter a comunidade unida em torno do conceito de
vizinhança.
O dirigente concorda
que vai ser um trabalho “muito difícil”. “Já andamos nesta guerra há muitos
anos. A palavra ‘vizinho’, felizmente, está a ter mais visibilidade. Na própria
campanha eleitoral, o presidente da Câmara de Lisboa já se referia aos
munícipes como vizinhos”, salienta. “Este conceito de proximidade, que cuida e
informa, é algo que nos anima, mas sabemos que é um trabalho muito difícil e,
por isso, temos de o fazer com calma e passo a passo, porque não vamos ter
resultados imediatos, temos consciência disso”, admite.
No final do primeiro ano do projecto O Bom Vizinho, período
de tempo financiado pela CML, Luís Paisana confessa que gostaria de ter “um
livro de boas práticas”. “Seria importante ficarem escrito as boas práticas da
boa vizinhança, o que melhorou e o que pode melhorar”, conclui.
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