OPINIÃO
Crime e preconceito
Há racismo em Portugal? Com certeza. Há racistas em
Portugal? Evidentemente. Portugal é um país racista? Não, nem faz sentido tal
observação. Na legislação, nos tribunais, nos sistemas de saúde e educação, em
nenhum dispositivo legal há conteúdos racistas e de segregação racial
objectiva. Mais: a legislação e a Constituição proíbem as manifestações de
racismo. São estas considerações que permitem dizer que “Portugal não é um país
racista”.
ANTÓNIO BARRETO
2 de Agosto de
2020, 8:00
É provável que o
assassino de Bruno Candé tenha agido também com preconceitos racistas. Se assim
for, é de esperar que o tema seja esclarecido, que todos possam debater o
assunto e que, se as houver, seja possível retirar lições para ver o que se
pode fazer a fim de diminuir este género de crime.
Tenhamos
consciência de que o crime também pode resultar de uma rixa de bairro, na qual
se poderão eventualmente detectar várias responsabilidades, mesmo se as do
assassino são sempre mil vezes mais culposas do que as da vítima. Entre a briga
de vizinhos e o preconceito racial, há uma gama de variedades possíveis que
expliquem o que se passou.
Além disso, é
necessário ter em consideração que o crime com conotações raciais não é o pior,
nem excepcional. O assassinato da mulher pelo marido ou de mulheres por
predadores sexuais não é menos grave, com atenuantes possíveis. O assassinato
de crianças pelos pais, parentes ou “tarados” também não é de menor relevo. O
assassinato de idosos por sadismo ou cupidez não é mais brando do que qualquer
outro acima referido. O assassinato de trabalhadores nos seus postos de
trabalho ou de comerciantes nas suas lojas (como se tem visto, com alguma
frequência, com portugueses residentes na Venezuela, no Brasil, na África do Sul
ou em Moçambique) não pode ser considerado como crime maior só pelo facto de as
vítimas serem nossos compatriotas, nem menor por se tratar de brancos em terras
de cores.
Todos estes
crimes são detestáveis e deveriam ser castigados com severidade, sem
considerações de comiseração de contexto, segundo as quais há tolerância por
causa do estatuto social, da educação e das condições de habitação. Estes
crimes, com ou sem preconceito, com ou sem condições de contexto, devem ser
julgados por si. Sem atenuantes.
Os crimes
raciais, categoria em que o de Moscavide poderia incluir-se, não devem ser
considerados mais odiosos do que os outros. Nem o contrário. Há países e
sociedades nos quais matar alguém da minoria (negro, asiático, cigano, hispano,
branco, índio…) merece pouca atenção. Períodos houve na história europeia e
americana, por exemplo, em que a morte de um branco às mãos de um negro ou de
um cigano era crime horrendo, mas o assassinato de um negro ou de um cigano por
brancos era já crime de menor importância, a merecer a análise das
circunstâncias atenuantes. Hoje, vivemos a situação inversa.
É certamente uma
das perversões causadas pelo preconceito, aquela que sugere que a condição
social ou racial do criminoso, assim como a da vítima, definem graus de culpa
variáveis. Os crimes com evidentes implicações racistas (foram vários nos
últimos anos em Portugal) suscitaram justificadas emoções, o que é compreensível.
Mas não se pode aceitar que esses crimes sejam piores do que os outros, os que
não têm implicações raciais e têm razões económicas, sociais, sexuais e
religiosas. Como não é aceitável que a identidade das vítimas ou dos criminosos
só seja revelada segundo as conveniências.
O que se passou
recentemente, no mundo inteiro, com o assassinato de George Floyd por um
polícia americano, comoveu a opinião pública e os movimentos de protesto
espalharam-se em poucos dias a dezenas de países. Foi certamente um dos
momentos em que o contágio por solidariedade se fez mais rapidamente e a mais
locais do mundo. Em certo sentido, quem se preocupa com a decência nas relações
humanas sentiu com emoção esta espécie de “onda de solidariedade” que
atravessou o planeta.
O problema é que
a solidariedade é muitas vezes selectiva: a naturalidade, a raça e a crença da
vítima e do perpetrador influenciam o julgamento, a solidariedade e as
consequências judiciais. Na história recente, é sabido que, na Europa e nos
Estados Unidos, os crimes cometidos pelas polícias foram primeiro objecto de
condescendência, para serem agora considerados com especial ferocidade.
Enquanto os crimes cometidos por africanos começaram por ser muito severamente
condenados, para agora serem “compreendidos”. Também faz parte da história
recente o tratamento diferenciado dos ricos e dos pobres perante crimes
patrimoniais: os roubos de umas dezenas de euros ou dólares, castigados com
anos de prisão, contrastam com os assaltos de milhões transformados em perdas ou
erros justificados.
A solidariedade e
a indignação selectivas são hoje moeda corrente, mas representam sempre um grau
muito baixo da moral colectiva.
Em Portugal,
vivemos dias particularmente sensíveis. Por razões justificadas, movimentos de
minorias têm vindo a organizar a sua actividade na defesa de interesses e na
afirmação de cidadania. Por razões de oportunismo, alguns movimentos e forças
políticas entenderam explorar todas as situações em que possam enxertar a
indignação e a solidariedade selectivas. Assim é que se tenta exacerbar a
questão do racismo em Portugal, em polémica quase sempre destituída de razão.
O problema tem
sentido. Mas a polémica é inútil e artificial. Há racismo em Portugal? Com
certeza. Há racistas em Portugal? Evidentemente. Portugal é um país racista?
Não, nem faz sentido tal observação. Na legislação, nos tribunais, nos sistemas
de saúde e educação, em nenhum dispositivo legal há conteúdos racistas e de
segregação racial objectiva. Mais: a legislação e a Constituição proíbem as
manifestações de racismo. São estas considerações que permitem dizer que
“Portugal não é um país racista”, o que parece ferir as sensibilidades de
alguns políticos, mas também que as designações de “racismo estrutural” e
“racismo sistémico” são meros divertimentos semióticos de quem quer alimentar
uma disciplina na sua faculdade.
O mundo
contemporâneo tem de aprender a tratar do problema do racismo. É uma das suas
grandes chagas. Racismos de todas as cores e com implicações sociais,
culturais, políticas e económicas. Racismos em todos os continentes, entre
etnias diferentes ou contra as minorias. Certos países são racistas, enquanto
em outros há racismos, diferenças evidentes, mas que não interessam aos
agitadores de ocasião. Em praticamente todos os países que adquiriram a
independência depois da Segunda Guerra, surgiram, por vezes violentamente,
fenómenos de racismo contra grupos locais, contra antigos colonos e contra
vizinhos rivais. Nenhum continente está hoje livre de racismo. Um mundo mais
decente é um mundo com menos racismo, mais integração e mais igualdade de
oportunidades. E com menos pessoas apostadas em exacerbar os racismos por
oportunismo político.
Sem comentários:
Enviar um comentário