sexta-feira, 28 de agosto de 2020

O pesadelo americano // O estilo apocalíptico na política americana

 


EDITORIAL

O pesadelo americano

 

A convenção republicana tem sido palco para o expor pornográfico da mentira, da distorção e do engano.

 

DAVID PONTES

28 de Agosto de 2020, 6:37

https://www.publico.pt/2020/08/28/opiniao/editorial/pesadelo-americano-1929521

 

Nas cartas ao director da edição de ontem no New York Times havia esta pequena epistola: “No seu discurso na convenção republicana na segunda-feira à noite, Natalie Harp, uma sobrevivente ao cancro, fazia referência ao filme It’s a Wonderful Life [Do céu caiu uma estrela, na versão portuguesa], comparando Donald Trump a George Bailey, o protagonista do filme, representado pelo meu pai, Jimmy Stewart.

 

Dado que este amado clássico americano é sobre decência, compaixão, sacrifício e a luta contra a corrupção, a nossa família considera que a analogia de Ms. Harper é o cúmulo da hipocrisia e desonestidade”. Assinado, Kelly Stewart Harcourt Davis, Califórnia.

 

Comparar esse exemplo de esperança e bondade que encarna o american dream na personagem de Jimmy Stewart, com a estrela de televisão milionária que herdou a fortuna do pai e que se tem notabilizado pela capacidade de dividir um país em vez de o unir, é a imagem da perfeita da distopia orwelliana em que se transformou a política norte-americana sob a égide de Trump.

 

A convenção republicana tem sido palco para o expor pornográfico da mentira, da distorção e do engano. Do ridículo de uma citação inventada de Abraham Lincoln, ao absurdo de proclamar o sucesso da luta contra o covid-19, quando os Estados Unidos têm dos piores registos do mundo, ao assumir para Trump de medidas legislativas que foram da autoria de Obama ou de atacar os democratas por quererem deixar de financiar a polícia quando o seu candidato, Joe Biden, não defende nada disso, tudo cabe na reunião de um partido que parece ter deixado de existir. O que vemos é um partido que não tem mais programa que o seu candidato, que tem uma relação particular com a verdade: a verdade é o que ele quiser que seja.

 

Vejam-se os tumultos que levaram milhares à rua nos últimos tempos por causa da questão racial e que não conseguem obter uma palavra de compreensão do presidente norte-americano. Para ele, estes americanos são o inimigo e o contra manifestante que matou duas pessoas munido de metralhadora deverá ser porventura, como defendeu um dos seus mais acérrimos defensores, objecto de compreensão.

 

Que interessa que ainda ontem o jornal The Guardian tenha publicado um estudo que mostra que os “antifa” sejam responsáveis por zero mortes nos últimos 25 anos e, no mesmo período, a extrema-direita tenha provocado 329 vítimas. Para Trump os primeiros é que são a ameaça “fascista”.

 

É neste o país dividido, torcido, amargo que se transformou a terra dos sonhos. E como é seu apanágio antecipar tendências, convém estar muito atento.

 

tp.ocilbup@setnop.divad

 


OPINIÃO

O estilo apocalíptico na política americana

 

Para os republicanos os EUA estão ao mesmo tempo no melhor momento da história — e à beira do colapso

 

RUI TAVARES

28 de Agosto de 2020, 6:47

https://www.publico.pt/2020/08/28/opiniao/opiniao/estilo-apocaliptico-politica-americana-1929523

 

Num dos mais importantes ensaios políticos do século XX, o historiador Richard Hofstadter escreveu sobre “o estilo paranóico na política americana”. A sua primeira frase é: “a política americana tem muitas vezes sido uma arena para mentes zangadas”. O estilo paranóico, explica Hofstadter, “não é uma coisa nova e não é necessariamente de direita”, mas a designação inovadora que ele emprega é necessária para descrever a amplitude e a intensidade que essa atitude política foi assumindo até à época em que o ensaio foi escrito, nos anos 1960: “chamo-lhe o estilo paranóico simplesmente porque nenhuma outra palavra evoca adequadamente a sensação de exagero fervoroso, suspeição e fantasia conspiratória que tenho em mente”.

 

Passado meio século, o ensaio de Hofstadter continua a ser brilhante, mas foi superado pelos acontecimentos. Já não é possível chamar à maneira de fazer política de um Donald Trump “estilo paranóico”. A paranóia continua a fazer parte, mas atingiu um tal ponto de incandescência que se torna necessário encontrar um novo termo para esta fase. Proponho “apocalíptico”.

 

Na convenção republicana desta semana os oradores sucederam-se repetindo sempre o mesmo motivo discursivo paradoxal: que os EUA estão ao mesmo tempo no melhor momento da história — e à beira do colapso. Para Trump e os seus apoiantes é considerado possível e até lógico acreditar nas duas coisas ao mesmo tempo: para poder ganhar, Trump tem de repetir contra todas as evidências que tornou a “América grande de novo”; para que o seu adversário perca, Trump tem de provar que essa América “grande de novo” é afinal tão frágil que, se Biden ganhar, o país acaba. Como disse o vice-presidente Pence na convenção republicana: “a escolha nestas eleições é se a América continua a ser a América”.

 

Seria fácil descontar esta retórica como banal à aproximação de atos eleitorais. Aconteça o que acontecer, a América não vai desaparecer depois das eleições. Mas implícita naquela frase está uma insinuação à base eleitoral demograficamente mais homogénea dos republicanos: sem Trump, a América que desaparece é aquela em que automaticamente vocês fazem parte da maioria e estão no topo da hierarquia, a América mais branca, mais masculina e mais velha, na qual vocês se sentem mais escudados da competição de uma América mais jovem, mais feminista e mais multicolor.

 

Trump precisa que essa “nova América”, — ao invés de ser o resultado da evolução da sociedade, das lutas históricas das minorias e da implementação real de direitos — seja assustadora. Ele precisa que a sua descrição das cidades americanas como vivendo num estado de “carnificina” seja real, precisa que o país pareça como estando à beira da guerra civil. Só assim o estilo apocalíptico parecerá credível, demovendo alguns de votar e levando outros a votar como se as suas vidas dependessem disso. Só assim Trump poderá ganhar, ou ficar tão próximo disso que a definição do vencedor real das eleições se torne incerta. E, digam as sondagens o que disserem agora, isto não é uma impossibilidade.

 

De certa forma, a Convenção de Trump não foi a do Partido Republicano — foi a que se viveu nas rua de Kenosha, Wisconsin, após o cidadão negro Jacob Blake ter sido baleado sete vezes pelas costas à queima-roupa por um polícia. Trump pretende ganhar à maneira de Nixon no tempo do “estilo paranóico”, apresentando-se como candidato da “lei e da ordem”. Talvez por isso um dos seus apresentadores prediletos — e possível candidato republicano em 2024 — tenha chegado ao ponto de justificar os atos criminosos de um adolescente de 17 anos, aderente de uma das milícias de “vigilantes”, que saiu de casa armado de uma metralhadora e fez 25 quilómetros para matar dois manifestantes nas ruas de Kenosha, Wisconsin. Tucker Carlson, o apresentador e apoiante de Trump, precisa que os seus espectadores acreditem que a situação nas cidades dos EUA é tão caótica que, numa inversão orwelliana, o crime é segurança, o tiroteio com armas semi-automáticas é paz e o homicídio indiscriminado de manifestantes é lei e ordem.

 

O que acontece aos movimentos apocalípticos? Uma de duas hipóteses opostas.

 

No mundo real, chega sempre um momento em que as profecias falham, em que a realidade lá fora não condiz com as “mentes zangadas” dos crentes, e em que a seita tem de digerir a derrota e seguir em frente, como aconteceu às várias igrejas que previram o fim do mundo para uma data precisa no calendário, e esse fim do mundo não veio.

 

Mas a política, em particular quando apocalíptica, corre o risco de ver as suas profecias auto-realizadas. A história conta-nos que se se repetir muitas vezes que nós, os mais poderosos e perfeitos do mundo, somos na verdade vítimas à mercê de serem destruídas, se pode eternizar um cenário de guerra civil cultural que alimenta temores de uma guerra civil real.

 

A tese de Joe Biden é que basta derrotar Donald Trump para que o febrão passe e a sociedade norte-americana se una. Para isso, Biden precisaria de uma vitória ampla e indubitável e de um Trump que aceitasse a derrota graciosamente. É uma história bonita — mas é difícil acreditar em milagres contra o apocalipse.

 

Historiador; fundador do Livre

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