ANÁLISE
Duas Américas, como nunca as tínhamos visto
De onde surgiu esta América, que nos assombra tanto
quanto nos angustia? Olhemos para as duas convenções à procura de algumas
respostas.
29 de Agosto de
2020, 7:09
https://www.publico.pt/2020/08/29/mundo/analise/duas-americas-tinhamos-visto-1929651
1. Terminada a
época das convenções, o mundo ficou perante duas Américas, aparentemente
irreconciliáveis, à espera do dia 3 de Novembro para saber com qual das duas
pode contar. Isso fará toda a diferença. Dificilmente o que resta da ordem
internacional liberal sobreviveria a mais quatro anos de Trump. O caos
alastraria. Ganhariam Putin e Xi, mas também Erdogan, Bolsonaro, Duterte ou
outro qualquer candidato a ditador. Perderia a democracia, a liberdade e a
abertura. Não é uma visão catastrófica. É apenas o resultado de quatro anos de
“America First” e de uma concepção da ordem internacional segundo a qual cada
um vale por si e pela força que tem para impor a sua vontade aos outros, em que
a democracia não conta para definir alianças ou prioridades.
Merkel é muito
pior do que Putin aos olhos de Trump. Estas eleições são, como poucas vezes
aconteceu no passado, tão importantes para o mundo como para os americanos. Os
EUA são ainda a primeira potência à face da terra. Em Pequim, Moscovo, Berlim,
Bruxelas, Paris nada acontecerá, provavelmente, de mais importante. A Europa
vê-se a braços com duas crises na sua periferia – na Bielorrússia e na Turquia
– com as quais tem grande dificuldade em lidar sem o apoio dos Estados Unidos.
A pandemia abre um novo e vasto campo de incertezas que põe à prova a
resistência das democracias.
É preciso, no
entanto, olhar para os acontecimentos do ponto de vista de quem vai escolher –
os eleitores americanos. De onde surgiu esta América, que nos assombra tanto
quanto nos angustia? Olhemos para as duas convenções à procura de algumas
respostas.
2. A convenção
republicana que terminou na quinta-feira à noite com o discurso do actual
Presidente foi, porventura, o retrato da maior transformação da politica
norte-americana: a do Partido Republicano. Trump falou diante de uma plateia de
dois mil “figurantes” escolhidos segundo o critério da absoluta fidelidade à
realidade virtual que construiu e que pretende defender sem concessões. O
partido é ele, a família dele e os seus seguidores obedientes. Aqueles que
estão dispostos a repetir sem estados de alma a narrativa que construiu para si
próprio: o melhor Presidente da História da América. O construtor da mais
poderosa economia do mundo: nove milhões de empregos criados até Fevereiro.
Desapareceram, entretanto, 22 milhões e a América prepara-se para a maior
recessão desde a Grande Depressão.
O Grand Old Party
reduzido a zero? “No Bushes, no Reagans, no Cheneys or McCains”, escreveu Adam
Nagourney no New York Times. Em directo dos jardins da Casa Branca, como se já
pertencesse ao património imobiliário do recandidato. Com os convidados
sentados sem distanciamento social e sem máscara. Aplaudindo freneticamente.
Fogo-de-artifício final.
Como foi
possível? De uma forma resumida, tudo começou com o Tea Party, o movimento
populista e radical das bases republicanas que acabou por tomar conta do
partido e que, em 2008, teve força suficiente para impor Sara Palin a John
McCain contra Barack Obama. Depois, com Mitch McConnell, o líder republicano do
Senado, que deu um contributo inigualável para a polarização da política
americana quando, durante oito anos, teve como único objectivo fazer de Obama
um Presidente de um só mandato, e depois, impedir que governasse, bloqueando
qualquer iniciativa que exigisse a aprovação das duas câmaras do Congresso.
Com duas visões
opostas, Biden e Trump olham para o mesmo espaço: o centro. A pandemia e as
sondagens diriam que o vice-presidente de Obama estaria em vantagem, com o seu
discurso sobre a reconciliação. Mas do outro lado, estão as ruas de Kenosha,
oferecendo a Trump uma derradeira oportunidade, que explorou à sua maneira:
mentindo sobre os factos.
Trump recolheu os
frutos desta deriva radical. Não tem oposição. Cria a sua própria realidade e
faz-se aplaudir. Descreve uma América que não existe. Resolveu o maior
obstáculo à sua reeleição, declarando vitória contra a pandemia com que a China
infectou o mundo. Não poderia, portanto, haver máscaras nos jardins da Casa
Branca. Ele venceu-a, Joe Biden rendeu-se-lhe. Com Biden, a China tomaria conta
dos Estados Unidos. Com ele, os EUA tomam conta do mundo. O Médio Oriente está
finalmente em paz. Um jovem mais entusiasmado anunciou-o como “o salvador” da
civilização ocidental. “Com a ajuda de Deus.”
Os democratas
querem fazer da eleição um referendo ao Presidente? Trump ofereceu-lhe o
inverso: fazer de Biden o centro da campanha eleitoral. “Um Cavalo de Tróia do
socialismo.” Tão fraco perante Bernie Sanders como perante os distúrbios nas
ruas de Kenosha, Wisconsin. É a sua última cartada. Apresentar-se, como em
2016, como o candidato da lei e da ordem.
Resultou com
Nixon em 1968, quando os movimentos cívicos e a contestação nas universidades
dominavam a agenda política, e com George H.W. Bush em 1988. A mensagem foi
repetida até à exaustão durante os quatro dias da convenção. Sem variações nem
nuances. Não há nuances no partido de Trump. Apenas um discurso simples e
primário. Que não incita à reflexão, apenas à adesão apaixonada. A sua força e
a sua fraqueza.
3. Trump falou
para a sua base de apoio, que é aquela parte da América que não se interessa
pelo mundo, que viu o seu estatuto e os seus rendimentos diminuírem com a
globalização, o eleitor branco com pouca escolaridade. Aqueles que temem que a
população branca se transforme numa minoria. Os que acreditam que cada
americano tem o direito constitucional e inalienável de ter uma arma de fogo e
de usá-la para defender a sua propriedade. Os que não entendem que o direito à
saúde deve ser universal, sem depender de um emprego que dá direito a um seguro
(uma das suas maiores derrotas foi não ter conseguido desmantelar o Obamacare).
Os que não gostam de um Governo forte, que vêem em Washington uma elite
corrupta que não se importa com as suas vidas. Os que não têm grandes
exigências doutrinárias. O Partido Republicano abdicou pela primeira vez de um
programa. Sobrou a definição de Mike Pence na terceira noite da Convenção:
“Make America Great Again. Again”.
4. O que estava
em causa para o Partido Democrata? A resposta é simples: preservar o partido de
Bill Clinton e de Barack Obama. Resistir à radicalização imposta pelos
republicanos. Deste ponto de vista, a Convenção democrata cumpriu os seus
objectivos.
Biden é um velho
político centrista. Não caiu na asneira de procurar uma parceira na ala radical
do partido, como alguns aconselhavam, alegando que era preciso garantir os
votos mais à esquerda. Situou o que está em causa nestas eleições para além dos
programas e das ideologias – na decência, no carácter, na defesa dos
fundamentos da democracia americana. Foi o partido de Obama que esteve
representado na Convenção. Foi Obama que fez o discurso que estabeleceu as
balizas e que encarregou Kamala Harris da difícil tarefa de preservar a sua
herança.
Biden esteve à
altura deste desafio. Conseguiu ultrapassar-se a si próprio e oferecer aos americanos
uma mensagem simples, forte e convincente: restituir à América a sua verdadeira
alma, generosa, decente, trabalhadora, dinâmica, igualitária e aberta ao mundo.
Onde cabe toda a gente e que é mais do que uma soma de minorias e de grupos com
a sua identidade e os seus interesses próprios. Estiveram lá, mas não
dominaram. Os democratas fugiram da pior das tentações e do maior dos riscos:
responder à radicalização com a radicalização.
5. Com duas
visões opostas, Biden e Trump olham para o mesmo espaço: o centro. A pandemia e
as sondagens diriam que o vice-presidente de Obama estaria em vantagem, com o
seu discurso sobre a reconciliação. Os republicanos já tinham sofrido uma
assinalável derrota nas eleições intercalares de 2018. Alguns dos estados liderados
por governadores republicanos fieis ao Presidente tiveram de fazer marcha-atrás
quando a Casa Branca lhes disse para ignorar a pandemia e abrir a economia, com
um resultado desastroso.
Do outro lado,
estão as ruas de Kenosha, oferecendo a Trump uma derradeira oportunidade, que
explorou à sua maneira: mentindo sobre os factos. Na pequena cidade do
Wisconsin, um swing state fundamental para a vitória dos democratas, um polícia
e um membro das milícias de extrema-direita de 17 anos na posse de uma arma
semiautomática mataram duas pessoas e feriram gravamente duas. Na versão de
Trump, a violência está do lado dos manifestantes que se revoltaram contra o
assassínio de mais um negro com sete balas disparadas à queima-roupa por um
polícia branco. Como com George Floyd, há um vídeo perante o qual é difícil
manter a serenidade. A percepção não é nítida. A classe média dos subúrbios ou
o pequeno comerciante vêem nas televisões imagens de destruição, incêndios e
confrontos. Interrogam-se sobre quem são os responsáveis. Tornam-se mais
sensíveis à mensagem central da convenção republicana: a lei e a ordem. Os
subúrbios podem vacilar? “Uma coisa é clara: os subúrbios serão o campo de
batalha principal em 2020”, diz William Galston, da Brookings Institution.
“A Convenção
Republicana foi, toda ela, sobre mentiras e medo”, escreve Max Boot no
Washington Post. Para acrescentar: “E pode funcionar de novo. “Biden e Harris
vão conseguir passar à ofensiva sobre a turbulência nas ruas de Wisconsin e
noutras cidades?”. A base furiosa e extremista de Trump, sentindo o apelo, pode
acender novos rastilhos. Faltam 65 dias, uma eternidade. O mundo não pode fazer
nada, a não ser esperar.
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