Estamos no “começo de uma crise muito profunda”, diz
Presidente da República
Filipa Almeida
Mendes
“Nós sabemos que
atravessamos o começo de uma crise muito profunda. Já várias vezes a
qualifiquei como brutal. Estamos ainda na ponta do iceberg”, afirmou esta
segunda-feira o Presidente da República aos jornalistas, lembrando, porém, que
têm sido implementadas medidas como o “lay-off simplificado, os complementos, o
regime de sucessão do lay-off simplificado e outros apoios sociais que têm
amortecido o aumento do desemprego”. “É um amortecimento de uma realidade
social que corresponde à paragem brutal que houve na economia portuguesa, como
nas economias europeias e muitas economias mundiais”, acrescentou.
A crise vai ter
impacto profundo em muitas famílias, disse Marcelo Rebelo de Sousa, “sobretudo
nos menos jovens com dificuldade de reajustamento ao mercado de trabalho e nos
mais jovens que tinham projectos e que veem adiados esses projectos e que, em
muitos casos, porque tinham empregos precários são dos primeiros a serem
dispensados”.
EDITORIAL
CORONAVÍRUS
Uma enorme dívida com os jovens
A Europa só recuperará totalmente do impacto económico
causado pelo coronavírus se usar os seus recursos para investir nos jovens
DAVID PONTES
31 de Agosto de
2020, 7:22
https://www.publico.pt/2020/08/31/opiniao/editorial/enorme-divida-jovens-1929754
No seu primeiro
discurso, no passado dia 18 de Agosto, após a saída da liderança do Banco Central
Europeu, Mário Draghi avisou que a Europa só recuperará totalmente do impacto
económico causado pelo coronavírus se
usar os seus recursos para investir nos jovens, na inovação e na investigação.
Só assim poderemos falar de “uma boa dívida”.
E sublinhou com
um argumento prático com uma dimensão moral. “A dívida criada pela pandemia não
tem precedentes e terá de ser paga principalmente por quem é jovem hoje”, disse
ele, sublinhando: “É, portanto, nosso dever equipá-los com os meios para
poderem pagar essa dívida, e poderem fazê-lo vivendo em sociedades melhoradas.”
Só olhando o
futuro, se poderá evitar que os millennials, aqueles que sofrem “algo inédito
numa geração”, duas profundas crises económicas, venham ainda a padecer de uma
terceira crise, um pouco mais lá para a frente, quando toda a dívida contraída
para combater os efeitos da pandemia tiver de ser paga.
Claro que isto é
muito mais fácil de dizer do que concretizar, especialmente se o Governo não
souber resistir à tentação de investir em políticas que lhe darão ganhos de
curto prazo, em vez de abrir espaço para investir na qualificação dos recursos
humanos, superando o crónico défice nacional nesta área. Os apelos de socorro
que muito em breve ecoarão por todo o lado, seguramente não ajudarão a manter o
discernimento.
Existe até uma
amarga oportunidade que não deveria ser desperdiçada. Na passada segunda-feira
soube-se que o ensino superior registou o maior número de candidatos, 62.675,
em mais de duas décadas. As famílias poderão ter reforçado a sua crença “nas
vantagens decorrentes da qualificação superior”, como afirmou o ministro Manuel
Heitor, mas a economia fala ainda mais alto.
Ocupando
normalmente as faixas mais frágeis do mercado de trabalho, os empregos de
muitos jovens, nomeadamente no turismo, foram os primeiros a desaparecer e a
retracção generalizada da economia já elevou o desemprego jovem para números de
há três anos. Entre estar desocupado, à espera de um emprego que muito
dificilmente vai surgir, muitas famílias terão optado por manter os jovens no
sistema de ensino. Mas para muitas delas quando a crise desabar em toda a sua
força não vai ser nada fácil conservá-los lá. O que torna premente não só
investir na qualidade das instituições de ensino, mas muito especialmente
reforçar os apoios sociais que permitirão manter os jovens a frequentá-las.
REPORTAGEM
CORONAVÍRUS
Jovens desempregados pela pandemia não vêem “uma porta,
nem uma janela aberta”
David, Cláudia e Cristina estão sem trabalhar. São jovens
e fazem parte de um dos grupos mais afectados pela pandemia. Sem alternativa
nas suas áreas, há quem tenha ficado num limbo: com formação a mais para alguns
postos de trabalho, mas sem experiência suficiente para esses mesmos lugares.
“É horrível a sensação de impotência”
Joana Gorjão
Henriques 31 de Agosto de 2020, 6:20
Até Março, David
Alves, 23 anos, ficava à espera que o telemóvel tocasse com alguém do outro
lado a chamá-lo para fazer uma visita guiada ao Museu do Aljube, em Lisboa.
Tudo parecia encaminhado: a recibos verdes, e pago à hora, iria trabalhar para
poupar dinheiro e sair de casa dos pais. Mas o museu fechou assim que começou a
pandemia. Desde então que está à procura de emprego.
Cláudia Marques,
27 anos, terminou o curso de Ciências da Comunicação em plena pandemia, e já
está à procura de trabalho noutras áreas, mas nem para postos menos
qualificados a chamam. Trabalhadora estudante, ficou sem um part-time que tinha
no aeroporto mal as fronteiras fecharam.
Cristina Paiva,
32, há 11 anos que é guia-intérprete oficial e estava habituada a períodos de
trabalho menos intensos, mas nunca pensou que, um dia, iria ficar parada tanto
tempo. “Não sabemos quando vamos voltar a ter trabalho. É completamente uma
incerteza. Não vemos uma luz ao fundo do túnel”, desabafa.
Além de estarem
sem emprego, estes jovens têm em comum a angústia expressa por Cristina Paiva.
São alguns dos rostos de um “grupo” que mais está a sofrer as consequências da
pandemia. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de
desemprego dos jovens no segundo trimestre de 2019, entre os 15 e 24 anos, era
de 18,1% e passou para 19,9%; já entre quem tem 25 e 34 anos subiu de 5,8% para
7,7%. Também subiu o número de jovens abaixo dos 35 anos que não trabalha, nem
estuda: era de 8,7% no segundo trimestre de 2019 e passou para 12,8% no período
homólogo deste ano.
Desde Março que
David Alves enviou, persistentemente, currículos para vários locais. Nem na sua
área, nem noutra lhe dão resposta: tentou papelarias, livrarias, lojas de
vários tipos, supermercados. Licenciado em História pela Universidade Nova de
Lisboa, está prestes a começar o mestrado em Sociologia no ISCTE. Sem apoios do
Estado, vive com os pais no Seixal, algo que está longe de ser o seu objectivo.
São eles que o ajudam a pagar o mestrado. É perto da baía que nos encontramos,
numa manhã de dia de semana. “Pelo menos um ano antes da pandemia estava a
fazer planos com a minha namorada para vivermos juntos”, desabafa.
A mãe é educadora
de infância e o pai militar reformado. Reconhece que a família tem uma situação
económica que lhe permite “dar-se ao luxo” de estudar. “Mas sinto, cada vez mais,
que sou um peso. O trabalho antigamente servia para retirar o peso económico
aos meus pais; agora é uma questão de autonomia, de querer alugar uma casa.
Parte de mim sabe que não sou o único e que há pessoas em piores condições que
eu. Mas este pensamento positivo não dura muito tempo porque uma pessoa sente
necessidade de melhorar as suas condições. A minha namorada tem ordenado, e
está bem, e agora sinto que sou um peso para ela — estávamos a fazer planos
para mudar e coloquei um ponto final nisso porque não recebo.”
Maioria tem
emprego imediato, mas 16% dos jovens do ensino profissional não estudam nem
trabalham
À medida que o
tempo passa, sente que “os pensamentos são cada vez mais pessimistas”. Houve
até uma altura em que desistiu de enviar currículos porque “estava de rastos”.
“Em Junho voltei a mandar para muitos dos mesmos.” A determinada altura
ponderou guiar um tuk tuk — aquele tipo de trabalho que sempre achou que podia
fazer um dia se não encontrasse mais nada — só que este sector foi um dos
grandes afectados.
O plano agora é
continuar à procura de trabalho. Para não se sentir inactivo, tem feito
pesquisa em temas que lhe interessa investigar, de forma “autodidacta”. “O
único pensamento positivo que tenho é que vou começar o mestrado.”
Se antes da
pandemia pensava que não iria aceitar qualquer emprego na perspectiva de
arranjar um dia algo na sua área, hoje esse raciocínio deixou de fazer sentido.
Enfrenta o dilema, comum a outras pessoas na sua situação: por um lado, tem
formação a mais para alguns postos de trabalho, por outro, não tem experiência
suficiente para esses mesmos lugares. “Vou a uma livraria e querem pessoas com
dois anos de experiência, numa loja de roupa é a mesma coisa…”, desabafa. “Há
pessoas muito mais experientes que eu e a empresa despediu-as, pessoas mais
velhas e com mais formação, e estão com o mesmo paradigma.”
Entre estas
tentativas, surgem também angústias. Ainda chegou a pensar “mentir” no
currículo, escrevendo que tinha menos formação. Mas depois confronta-se com o
dilema: “Se calhar há mais gente na mesma situação, com menos formação, que
precisa mais do trabalho do que eu…”
Enviar “uns 30
currículos"
Sem respostas na
área de jornalismo e da comunicação onde se licenciou, também Cláudia Marques
começou a concorrer para call centers, lojas, trabalhos como administrativa e
até de recepcionista só que se tem deparado com o mesmo problema de David
Alves: “O maior entrave que colocam é a experiência profissional.”
Aos 27 anos,
Cláudia Marques terminou agora a licenciatura em Ciências da Comunicação, pela
Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), à distância. Era suposto usar os
estúdios de rádio e televisão da universidade para experimentar as diversas
formas de jornalismo, mas com o ensino à distância Cláudia Marques teve que trocar
os microfones profissionais pelo do telemóvel.
Jovens estudam
para tentar conseguir um emprego e não para a profissão desejada
Antes de se
licenciar tirou um curso profissional em multimédia na Escola Profissional de
Imagem. Trabalha desde 2014: esteve no centro de informática da UAL como
técnica, num call center, num quiosque de produtos açorianos e, mais
recentemente, em part-time no aeroporto a fazer check-in, nas portas de
embarque, no apoio a passageiros. O seu contrato terminava em Abril, e não lhe
fizeram um novo. Na altura, o objectivo “era concorrer a uma coisa na área ou
continuar ali [no aeroporto] e tentar trepar para um cargo mais interessante”,
confessa.
Tudo mudou, conta
num centro comercial em Oeiras, onde vive com os pais. Desde que perdeu o
emprego que já enviou “uns 30 currículos”. “Acaba por ser ingrato terminar o
curso no meio de uma pandemia. Sinto que antes de ser licenciada tinha mais
oportunidades de emprego do que agora. Sei que a área é muito concorrida mas a
pandemia veio piorar tudo. Não há maior frustração do que um jovem cheio de
sonhos, que acabou esta etapa, não ter emprego, ter uma grande barreira à
frente: não há emprego e mesmo na área foram dispensadas muitas pessoas ou
postas em layoff””.
O pai trabalha na
navegação aérea e Cláudia Marques tem uma paixão pela aviação civil, por isso
esta seria uma segunda escolha. Só que também aqui as oportunidades escasseiam:
“O problema é que, como não há voos como antes, não abrem concursos para nada”,
desabafa.
Não tem qualquer
ocupação neste momento, e diz que tem saudades das aulas: “É uma sensação muito
estranha começar um ano a estudar e a trabalhar ao mesmo tempo, quase à beira
de um esgotamento mas a sentir-me útil ao quadrado, depois ficar sem emprego e
neste momento não estar a fazer nada.”
“Há desempregados
que se sentem em casa como ‘num poço sem fundo’”
Entretanto tem
feito a gestão das redes sociais da mãe, agente imobiliária, de modo a ter
alguma coisa para mostrar em marketing digital. Vai continuar a enviar currículos;
se não tiver respostas, quer fazer formação numa língua estrangeira. Assusta-a
a ideia de ficar parada muito tempo. “É horrível a sensação de impotência, de
querer mostrar o meu potencial, de querer fazer mais, destacar-me e não ter nem
uma porta, nem uma janela aberta. É o não saber onde estou amanhã, não poder
ter grande ambição.”
Ainda ponderou
inscrever-se num mestrado mas reflectiu: “Tinha que pensar num muito
especializado… Não vale a pena investir em mais formação para ficar igual, para
ficar desempregada na mesma. Nós, recém-licenciados, estamos no limbo entre
aceitar o mínimo que apareça, abaixo da nossa formação, ou ficar sem fazer
nada.”
O congelamento do
turismo
Guia intérprete
oficial, Cristina Paiva, 32 anos, está sem qualquer rendimento desde Março,
além do apoio do Governo para profissionais independentes. Quem trabalha em
turismo está habituado a poupar, a trabalhar no Verão para viver no Inverno,
nota. É preciso gerir a economia familiar com base nessa sazonalidade: “Não
sabemos se vamos começar a trabalhar em Março ou Abril.” Mas este ano, a “queda
abrupta de rendimento” aconteceu numa altura, Março, em que era suposto “estar
a subir o trabalho”, ou seja, o esforço do Inverno prolongou-se para a
tradicional época alta. E não sabem “até quando”, lamenta.
Descreve o que
faz como turismo cultural, um trabalho que muitas vezes passa “invisível";
os seus clientes-tipo são reformados ou perto da reforma, com “background
cultural” e poder económico, pessoas que procuram visitas guiadas para ter um
melhor contexto sobre o país que visitam. O guia recebe-os como “anfitrião”:
“Somos a cara do país”, diz.
A sua função é
acompanhar e dar o contexto histórico e cultural aos grupos, num percurso
previamente desenhado e que pode durar vários dias ou até semanas; também faz
visitas locais mais curtas, na zona de Lisboa, Sintra, Oeste ou Alentejo. Ao
longo do tempo Cristina Paiva foi criando a sua carteira de clientes, que
chegam sobretudo dos Estados Unidos e do México, Brasil ou Argentina, regiões
onde neste momento há fortes restrições. “Se não trabalhar, não ganho.”
Neste período de
paragem aproveitou para fazer formação: inscreveu-se num curso de língua
gestual portuguesa, tem ido a alguns monumentos que estão a fazer visitas
gratuitas para os guias. Mas este período tem sido desafiante: “Apesar de
parecerem férias, para nós é apenas estar sem trabalho. É uma sensação de
incerteza, de preocupação, porque não sabemos até quando vamos aguentar, se
quando começarmos a trabalhar vai ser com quantidade suficiente para fazer vida
do turismo e quando é que isso vai acontecer.”
Prevê que possa
aparecer algum trabalho nos próximos meses mas “muito pouco”. Pensa que talvez
em Março de 2021 o turismo volte a mexer. Mas não está, para já, a ponderar
procurar trabalho noutra área. Tem conseguido reduzir os gastos ao mínimo e
descreve com paixão o que faz. “É difícil abandonar 11 anos de construção de
carteira de clientes, de formação, para começar de novo e numa situação que,
por si, não é boa.”
Quem trabalhava
no turismo e convivia quotidianamente com o crescimento do sector, sabia que,
mais tarde ou mais cedo, teria que existir um travão, comenta. “Estávamos a ver
este crescimento desenfreado, que teria que parar para bem de todos. Mas nunca
ninguém imaginou esta paragem total, este congelamento.”
Não esconde que
“a gestão” do momento actual “é complicada”. Como David, como Cláudia,
questiona-se: “O que se faz agora? É uma grande incerteza.”
tp.ocilbup@hgj
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