quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Portugal e o problema da corrupção – parte 2

 


João Miguel Tavares

OPINIÃO

Portugal e o problema da corrupção – parte 2

 

27 de Agosto de 2020, 0:10

https://www.publico.pt/2020/08/27/politica/opiniao/portugal-problema-corrupcao-parte-2-1929352

 

Façamos um breve resumo do que aconteceu em Portugal na última meia-dúzia de anos. Um ex-primeiro-ministro foi preso. O grande banco do regime – o BES – faliu. Uma das maiores empresas portuguesas – a PT – foi destruída. Os dois principais líderes da empresa mais poderosa do país – a EDP – vão ser acusados de corrupção activa e já foram afastados dos cargos. No Tribunal da Relação de Lisboa, dois juízes terão andado a vender acórdãos e os seus dois últimos presidentes são suspeitos de cumplicidade.

 

Reparem na gravidade da situação: a corrupção chegou aos cargos mais altos do poder político, do poder económico e do poder judicial. Tudo foi contaminado. Em Itália, o regime caiu. Por cá, resmunga-se muito, mas continua a tratar-se o cancro com aspirinas.

 

Àquele conjunto podemos juntar o futebol, deputados, câmaras, associações, institutos de solidariedade social, forças de segurança, advogados, procuradores do Ministério Público, já para não falar nas relações suspeitas com o jornalismo. Não parece haver uma única área intocada pela corrupção. E, no entanto, caímos inexplicavelmente num duplo erro ao reflectir sobre o tema: 1) olhamos para cada caso de forma individual, e não como um problema estrutural, ou seja, como uma cultura de corrupção instalada no coração do regime; 2) tendemos a moralizar cada caso e a encará-lo como uma falha de carácter dos envolvidos, como se o problema residisse em questões de ética pessoal e não no desenho institucional do regime político e jurídico português e dos incentivos (ou da falta deles) no combate à corrupção.

 

No número 51 dos Federalist Papers, escrito por James Madison em 1788, há um excerto famoso sobre a natureza humana que ajuda a perceber o argumento (a tradução é minha): “Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários controlos externos ou internos de governo. Na construção de uma forma de governo para ser administrada por homens sobre homens, a grande dificuldade é esta: primeiro, é necessário conseguir que o governo controle os governados; de seguida, é necessário obrigar o governo a controlar-se a si próprio.”

 

O grande mérito dos founding fathers que criaram os Estados Unidos da América é que, juntamente com a aspiração aos grandes ideais (“life, liberty and the pursuit of happiness”), cultivavam uma profunda desconfiança sobre a natureza humana, que deu origem a uma obsessão: o firme propósito de controlar todos os excessos de poder. Madison não estava preocupado em fazer o bem – estava preocupado em prevenir-se contra o mal.

 

Essa deveria ser também a nossa preocupação. Numa pessoa corrupta certamente escasseiam bons valores morais, mas não compete a um regime político corrigir a natureza humana – compete-lhe, isso sim, garantir que a arquitectura do regime não incentiva a corrupção. Ora, aquilo que temos em Portugal são inúmeros estímulos à criação de trapaceiros e à preservação da sua impunidade: 1) o sistema de justiça é de uma lentidão exasperante; 2) o excesso de garantias de defesa permite o infinito arrastamento dos processos; 3) faltam meios para a investigação da criminalidade complexa; 4) o ordenamento jurídico não contempla formas eficazes de combate à corrupção, como a delação premiada ou o enriquecimento ilícito; e, sobretudo, 5) o país está pejado de incentivos à economia extractiva e à troca de favores políticos. Este ponto 5 será o tema do meu próximo artigo.

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