João Miguel Tavares
OPINIÃO
Portugal e o problema da corrupção – parte 2
27 de Agosto de
2020, 0:10
https://www.publico.pt/2020/08/27/politica/opiniao/portugal-problema-corrupcao-parte-2-1929352
Façamos um breve
resumo do que aconteceu em Portugal na última meia-dúzia de anos. Um
ex-primeiro-ministro foi preso. O grande banco do regime – o BES – faliu. Uma
das maiores empresas portuguesas – a PT – foi destruída. Os dois principais
líderes da empresa mais poderosa do país – a EDP – vão ser acusados de
corrupção activa e já foram afastados dos cargos. No Tribunal da Relação de
Lisboa, dois juízes terão andado a vender acórdãos e os seus dois últimos
presidentes são suspeitos de cumplicidade.
Reparem na
gravidade da situação: a corrupção chegou aos cargos mais altos do poder
político, do poder económico e do poder judicial. Tudo foi contaminado. Em
Itália, o regime caiu. Por cá, resmunga-se muito, mas continua a tratar-se o
cancro com aspirinas.
Àquele conjunto
podemos juntar o futebol, deputados, câmaras, associações, institutos de
solidariedade social, forças de segurança, advogados, procuradores do
Ministério Público, já para não falar nas relações suspeitas com o jornalismo.
Não parece haver uma única área intocada pela corrupção. E, no entanto, caímos
inexplicavelmente num duplo erro ao reflectir sobre o tema: 1) olhamos para
cada caso de forma individual, e não como um problema estrutural, ou seja, como
uma cultura de corrupção instalada no coração do regime; 2) tendemos a
moralizar cada caso e a encará-lo como uma falha de carácter dos envolvidos,
como se o problema residisse em questões de ética pessoal e não no desenho
institucional do regime político e jurídico português e dos incentivos (ou da
falta deles) no combate à corrupção.
No número 51 dos
Federalist Papers, escrito por James Madison em 1788, há um excerto famoso
sobre a natureza humana que ajuda a perceber o argumento (a tradução é minha):
“Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos
governassem os homens, não seriam necessários controlos externos ou internos de
governo. Na construção de uma forma de governo para ser administrada por homens
sobre homens, a grande dificuldade é esta: primeiro, é necessário conseguir que
o governo controle os governados; de seguida, é necessário obrigar o governo a
controlar-se a si próprio.”
O grande mérito
dos founding fathers que criaram os Estados Unidos da América é que, juntamente
com a aspiração aos grandes ideais (“life, liberty and the pursuit of
happiness”), cultivavam uma profunda desconfiança sobre a natureza humana, que
deu origem a uma obsessão: o firme propósito de controlar todos os excessos de
poder. Madison não estava preocupado em fazer o bem – estava preocupado em
prevenir-se contra o mal.
Essa deveria ser
também a nossa preocupação. Numa pessoa corrupta certamente escasseiam bons
valores morais, mas não compete a um regime político corrigir a natureza humana
– compete-lhe, isso sim, garantir que a arquitectura do regime não incentiva a
corrupção. Ora, aquilo que temos em Portugal são inúmeros estímulos à criação
de trapaceiros e à preservação da sua impunidade: 1) o sistema de justiça é de
uma lentidão exasperante; 2) o excesso de garantias de defesa permite o
infinito arrastamento dos processos; 3) faltam meios para a investigação da
criminalidade complexa; 4) o ordenamento jurídico não contempla formas eficazes
de combate à corrupção, como a delação premiada ou o enriquecimento ilícito; e,
sobretudo, 5) o país está pejado de incentivos à economia extractiva e à troca
de favores políticos. Este ponto 5 será o tema do meu próximo artigo.
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