quarta-feira, 26 de agosto de 2020

E se ninguém ganhar as eleições nos Estados Unidos?

 


OPINIÃO

E se ninguém ganhar as eleições nos Estados Unidos?

 

A um candidato do Partido Democrata é agora preciso ganhar por uma tal distância que nem um presidente com o descaramento de Donald Trump tenha coragem de pôr o resultado em causa.

 

RUI TAVARES

26 de Agosto de 2020, 0:15

https://www.publico.pt/2020/08/26/mundo/opiniao/ninguem-ganhar-eleicoes-estados-unidos-1929236

 

Prever o resultado das eleições presidenciais nos EUA costumava ser uma simples questão binária: ou ganhava o candidato do Partido Democrata, ou ganhava o candidato do Partido Republicano. Mesmo as eleições de 2000, nas quais Al Gore e George W. Bush acabaram praticamente empatados no estado da Florida, não foram assim tão diferentes: o Supremo Tribunal interveio para declarar que a vitória naquele estado pertencia a Bush Jr., e assim foi determinada a vitória no colégio eleitoral também, o que deu a George W. Bush as chaves da Casa Branca com menos meio milhão de votos do que Al Gore.

 

O mesmo, apesar de tudo, se pode dizer das eleições de 2016. A distância no voto popular entre Donald Trump e Hillary Clinton foi maior ainda — o republicano Trump entrou na Casa Branca com menos três milhões de votos do que teve a democrata Hillary Clinton — mas ninguém na noite eleitoral ou depois dela exprimiu quaisquer dúvidas de que ele tivesse garantido a vitória no colégio eleitoral.

 

O ano de 2020 vai ser muito diferente. Trump tem dito repetidamente aos seus eleitores que só perderá estas eleições se elas forem fraudulentas, o que significa que contempla a possibilidade de não reconhecer a vitória do seu adversário, Joe Biden. A posição de Trump é tanto mais estranha quanto, estando ele no poder executivo a nível federal, ter ele muito mais possibilidades de interferir no processo eleitoral do que o seu adversário (mesmo presumindo que este o conseguisse fazer apenas nos 19 estados de que o Partido Democrata controla o congresso estadual, contra os 29 controlados pelo Partido Republicano, com dois estados “empatados” entre ambos os partidos). E a verdade é que os adversários de Trump não têm parado de alertar para uma tentativa de interferência do Presidente no processo eleitoral, através do esvaziamento do Serviço Postal dos EUA (constitucionalmente protegido, uma vez que este era o principal meio de comunicação entre as colónias que declararam a independência do país no século XVIII), essencial para permitir o voto à distância num contexto de pandemia, principalmente nos grandes centros urbanos onde é mais difícil manter o distanciamento físico, e onde a maior parte do eleitorado é democrata. Trump, por sua vez, não faz nada para esconder os seus intentos, dizendo aos sete ventos (e sem vestígio de qualquer prova) que o voto postal é fraudulento e justificando assim tanto a sua ameaça implícita de não reconhecer o resultado eleitoral como a prática continuada de não permitir que o Serviço Postal funcione adequadamente.

 

Temos portanto que as barreiras para uma vitória democrata são mais altas do que antes, e do que se costuma imaginar. A Joe Biden não basta estar à frente nas sondagens (Hillary Clinton também esteve), nem ter mais votos (idem), nem sequer ter muito mais votos (ibidem). A um candidato do Partido Democrata é agora preciso ganhar por uma tal distância que nem um presidente com o descaramento de Donald Trump tenha coragem de pôr o resultado em causa.

 

Do outro lado, porém, as coisas não são mais fáceis. Os democratas habituaram-se a perder no colégio eleitoral o que ganham na votação popular, e até a perder no Supremo Tribunal o que poderiam ter ganho no colégio eleitoral. Quando Al Gore concedeu a derrota em 2000 a George W. Bush, esta atitude de alguma contenção nas emoções era justificada perante o mal que faria aos EUA, enquanto indisputada superpotência global, ser o país forçado a uma dúvida prolongada sobre qual seria o seu próximo Presidente. Mas com uma hipotética segunda vitória de Trump, nas condições atrás descritas, as coisas são diferentes e é duvidoso que os democráticos tenham o mesmo autocontrolo, ou até que consigam controlar a sua base eleitoral. O resultado é que tanto Trump pode não reconhecer uma vitória de Joe Biden como os democratas não reconhecerem uma vitória do candidato republicano; e que este cenário de república das bananas seja sequer possível nos EUA já nos diz muito sobre a deliquescência do poderio moral estado-unidense.

 

 

Para mais, há fortes razões de sobrevivência para que ambos optem agora por uma posição mais intransigente. Se Trump perde, o Partido Republicano será provavelmente lançado numa travessia no deserto muito prolongada, principalmente quando estados como o Texas, algures no decurso da próxima década, se tornarem disputáveis pelos democratas por razões da sua evolução e composição demográfica. E se Trump ganhar, podendo nomear juízes do Supremo por mais quatro anos, os conservadores podem vir a ter uma maioria inexpugnável no poder judicial durante mais de uma geração.

 

É portanto plausível um cenário em que não se saiba quem é candidato vencedor na noite eleitoral, nem nos dias e semanas seguintes; em que o Supremo Tribunal não seja visto por muita gente como um árbitro neutral; e em que o Presidente que tomar posse no dia 20 de janeiro de 2021 não seja reconhecido por metade (ou mais) da sociedade estado-unidense.

 

Se acham que isto é impossível, olhem para o ano de 2020 até agora e verifiquem quantas coisas “impossíveis” já aconteceram. A questão a saber é antes como ficará um mundo em que os EUA não tenham uma liderança consensualmente reconhecida.

 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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