quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Aprender com a dor dos lares / Era uma vez um lar

 


OPINIÃO CORONAVÍRUS

Aprender com a dor dos lares

 

Se não aprendemos com o que se tem passado nos lares, de onde provêm quase 40% das vítimas mortais, então não aprendemos nada.

 

DAVID PONTES

26 de Agosto de 2020, 5:49

https://www.publico.pt/2020/08/26/opiniao/opiniao/aprender-dor-lares-1929259

 

Ao fim de três horas de reunião, António Costa e Miguel Guimarães, apareceram juntos a jurar que todos os “mal-entendidos” entre Governo e médicos estão esclarecidos e a dar por findo um episódio lamentável. É muito bom que assim tenha sido, porque no meio de pandemia não nos podemos dar ao luxo de ter profissionais de saúde e executivo de costas voltadas, por muito que situações de tensão sejam naturais e por muito que haja razões de parte a parte. Um deles poderia ganhar o braço-de-ferro, mas no final eram os portugueses que perdiam.

 

Mas resolver não pode ser esquecer. Como ontem salientava Rui Rio, “temos de exigir do Governo que tudo o que aprendemos, ao longo destes meses, possa efectivamente ser colocado em prática para que em Novembro possamos combater a pandemia com uma eficácia muito maior”. E se não aprendemos com o que se tem passado nos lares, de onde provêm quase 40% das vítimas mortais, então não aprendemos nada.

 

E teremos aprendido pouco se, perante o expor das condições miseráveis de muitos lares, o anúncio da semana passada de 110 milhões de euros para o sector social e a contratação de 15 mil trabalhadores não passarem com urgência à fase de concretização. Como continuaremos a mostrar escasso poder de aprendizagem se não assimilarmos rapidamente que, durante uma epidemia, os lares não podem continuar a ser tratados como estruturas residenciais, mas como a primeira linha dos cuidados de saúde, exigindo uma melhor articulação entre os ministérios da Saúde e da Segurança Social.

 

Mas se médicos e autoridades de Saúde se voltarem a envolver em guerras de competências sobre quem deve ou não intervir em situações de urgência como a de Reguengos, então não queremos mesmo aprender.

 

O facto de sermos um país pobre, com recursos escassos, serve para justificar muita coisa, mas um país que trata os seus mais frágeis como tratou em Reguengos de Monsaraz e, infelizmente, em muitos outros lares, sem se sobressaltar, antes preferindo perder-se em questiúnculas políticas e corporativas, não é só pobre, é miserável. É moralmente miserável. Pois dói, custa muito ver, em vez de virar a cara como fizemos tantas vezes, a situação a que assistência aos mais velhos chegou.

 

Mas se não olharmos agora, não aprendemos, e, se não aprendermos, não mudamos e um dia destes seremos nós a estiolar numa cama de um lar bafiento. Temos de ser melhores do que isto.

 


REGUENGOS DE MONSARAZ

Era uma vez um lar

 

Como aluna de Enfermagem, ainda com insuficiente sentido crítico, fiz o melhor que consegui. Num esforço hercúleo para não fugir, franzi o sobrolho em concentração, coloquei um bocadinho de creme perfumado debaixo do nariz, tal como a minha orientadora tinha feito, e uma máscara. E depois passámos horas a fazer pensos.

 

CARMEN GARCIA

25 de Agosto de 2020, 10:53

https://www.publico.pt/2020/08/25/impar/cronica/lar-1929127

 

A Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, em Reguengos de Monsaraz, foi o primeiro lar onde entrei na vida, era ainda aluna de Enfermagem. Lembro-me dos tectos altos do edifício, da simpatia da funcionária que nos recebeu, vestida com uma bata azul e branca aos quadradinhos, e de uma sala de convívio que me pareceu gigante. Infelizmente as recordações boas terminam aqui. E começa o cenário dantesco.

 

O meu estágio, note-se, não era na fundação. Mas eram as enfermeiras do centro de saúde da cidade que lá se deslocavam para fazer as dezenas de pensos diários. E, quando entrei numa camarata imensa, cheia de senhoras idosas acamadas, quase todas demenciadas e profundamente emagrecidas, nem fui capaz de perceber por que é que ali cheirava tanto a morte e a decomposição. Só quando começámos a destapar as feridas que lhes cobriam os corpos, literalmente da cabeça aos pés, é que percebi que tinha acabado de me confrontar, pela primeira vez, com o lugar onde a dignidade termina.

 

Como aluna de Enfermagem, ainda com insuficiente sentido crítico, fiz o melhor que consegui. Num esforço hercúleo para não fugir, franzi o sobrolho em concentração, coloquei um bocadinho de creme perfumado debaixo do nariz, tal como a minha orientadora tinha feito, e uma máscara. E depois passámos horas a fazer pensos.

 

Tudo isto que vos conto aconteceu em 2009 e suponho que, ao longo destes 11 anos, muita coisa tenha mudado. Só que aparentemente não mudou o suficiente. E sabem qual é o verdadeiro problema, muito maior que qualquer trica política? É que este lar está longe de ser caso único.

 

Contei há dias, na minha página pessoal de Facebook, que no início da minha carreira comecei a fazer umas horas num lar de onde acabei por me despedir após ser repreendida aos gritos porque, num dia quente de Agosto, coloquei protector 50+ no rosto de um idoso de 80 anos que andava a trabalhar na horta. Aparentemente e segundo me gritaram, o protector era demasiado caro para ser utilizado assim. Ainda estou para perceber o que raio seria este “assim”, mas nesse dia percebi que, nestes casos, não pode existir um “se não os podes vencer, junta-te a eles”. A única solução, quando não conseguimos mudar as más práticas, é vir embora e denunciar. Mesmo que as denúncias caiam quase sempre em saco roto.

 

Sei que é importante que no caso de Reguengos se apurem responsabilidades. Também sei as coisas terríveis que os meus colegas lá viram e viveram. Sei do cheiro a urina, dos idosos só de fralda, do calor abrasador e da falta de condições. Mas também sei que é ainda mais importante que nos façamos ouvir agora, enquanto sociedade, para mudar de uma vez por todas o paradigma de muitos lares deste país.

 

Até ao fim

 

Não vou cair no caminho fácil do “se fossem cães estava toda a gente indignada”, porque, além de ser um argumento vazio, me parece falacioso. Eu também me preocupo com os cães. E isso não quer dizer que não me preocupe com os idosos. Ou com as crianças. Preocupo-me com todos aqueles que, sendo frágeis, temos obrigação de proteger. E preocupo-me ainda mais quando percebo que falhamos.

 

Reguengos pode servir como bode expiatório, mas está longe de ser caso único. Pensem nos lares que conhecem, pensem em quantos deles têm quartos individuais, em quantos respeitam a sabedoria dos idosos, em vez de os infantilizar, pensem naquelas salas de estar que parecem antecâmaras da morte… E as imobilizações? Já pensaram sobre isso? Todos os estudos apontam que as imobilizações não reduzem de forma significativa o número de acidentes, mas, ainda assim, continuamos a ver em todo o lado idosos presos a camas, cadeirões e cadeiras de rodas.

 

Parece-me que é altura, enquanto sociedade, de levantarmos a voz e de exigirmos respeito e dignidade para com aqueles que nos deram a vida. É altura de não nos calarmos, de denunciarmos, de não deixarmos passar, de pressionarmos a Segurança Social para que faça inspecções surpresa e para que não feche mais os olhos.

 

A minha avó, que felizmente esteve sempre em casa connosco, dizia muitas vezes: “Filho és, pai serás, como fizeres assim encontrarás.” E eu acho que podemos adaptar esta frase para um “novo és, velho serás”.

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