OPINIÃO
Aeroporto do Montijo: a mais recente vítima covid-19!
Se as medidas de mitigação da pandemia têm por base a
audição de investigadores que se dedicam ao estudo dessa temática, porque
motivo se insiste em fazer ouvidos moucos aos impactos ambientais com origem
nos níveis de ruído que se sabe serem inevitáveis no Montijo?
José A. Alves
2 de Agosto de
2020, 5:45
Desde que se
conheceu a proposta de localização de um novo aeroporto na península do
Montijo, no coração da maior e mais importante zona húmida do país, este sempre
foi um caso sintomático. A apresentação pública do Estudo de Impacte Ambiental
(EIA) tornou este atentado à biodiversidade um caso confirmado que, apesar de
originar anticorpos, acabará certamente na contabilidade das vítimas da actual
pandemia.
A actual pandemia
criou em poucos meses uma rotura nos modelos assentes no constate crescimento
económico, claramente insustentáveis num planeta com recursos finitos. Enquanto
os países europeus, apanhados de surpresa pelo novo coronavírus, tentavam
desenhar medidas de contenção e mitigação dos seus efeitos nefastos, em
Portugal, o Governo foi rápido a antecipar várias acções para conter a
propagação deste vírus. Com apenas 78 casos, decretou em 12 de Março a
suspensão da actividade lectiva. A 16 de Março avançou com restrições à
circulação nas fronteiras terrestres com Espanha e passados dois dias entrou em
vigor o estado de emergência, confinando todo o país. Menos de uma semana após
essa data, no dia 24 de Março e também pela acção do Governo, tiveram início as
reuniões técnicas no Infarmed com o objectivo de informar os membros do
Governo, o Presidente da República, representantes de vários partidos, entre
outros, sobre a evolução da pandemia. Estas reuniões contaram com apresentações
de especialistas em várias temáticas, desde saúde pública a epidemiologia e
doenças infecciosas, com contribuições provenientes de membros de várias
instituições (Universidades, Institutos de investigação, etc.). A transferência
de conhecimento que teve e tem lugar nestas reuniões foi e é um factor
determinante no sucesso da estratégia que os governantes de Portugal
estabelecem no combate à actual pandemia. Sucesso esse amplamente reconhecido internacionalmente
e justificado por membros do Governo como tendo por base uma acção rápida
assente nos mais avançados conhecimento e evidências científicas.
Infelizmente,
esta atenção aos especialistas e à informação de que dispõem não foi replicada
pelos governantes e entidades responsáveis por avaliar os impactos ambientais
do aeroporto do Montijo, especificamente no que diz respeito aos impactos na
avifauna estuarina. E se o sucesso se atinge com recurso aos melhores dados da
ciência e da técnica, ignorar os mesmos só poderá dar origem ao fracasso! Num
projecto de tal relevância para o país, que irá influenciar a vida e a saúde
pública de várias gerações, é difícil entender a falta de vontade do Governo e
das autoridades nacionais nas suas diferentes competências em acolher o
conhecimento científico mais avançado e tomar decisões com base nas evidências
por ele demonstradas. E o fracasso está a bater à porta.
No passado dia 15
de Junho, várias associações de defesa do ambiente estiveram no Parlamento para
uma vez mais declararem a invalidade do estudo de impacte ambiental do
aeroporto do Montijo. No caso da avifauna estuarina, os impactos “negativos,
significativos, moderada/elevada, permanentes e irreversíveis na avifauna”, tal
como considerados no parecer da comissão de avaliação do EIA, não irão permitir
o avanço deste projecto. Tanto o processo que decorre actualmente em tribunal,
bem como os inquéritos de revisão iniciados pela convenção de Ramsar e pelo
African-Eurasian Migratory Waterbird Agreement (AEWA) entregues à autoridade
nacional para a conservação da natureza, demonstram a batalha que se avizinha
onde a legislação nacional e comunitária, e os acordos internacionais, irão
certamente prevalecer, como aliás já previsto no parecer dos técnicos do
Instituto da Conservação da Natureza e Florestas.
Curiosamente, e
apesar da queda abrupta e jamais registada no transporte aéreo global, a ANA
alinha com o Governo ao declarar a suposta urgência deste projecto. Uma vez que
a ANA é detida pela Vinci, que por sua vez é também um dos dois maiores
accionistas da Lusoponte, poderá existir aqui um risco de contágio de
interesses. E a urgência em avançar com a localização Montijo talvez se possa
diagnosticar pela concessão da exploração rodoviária da Lusoponte terminar em
2030. Se a proposta localização do novo aeroporto fosse outra e mediante a
crise no sector da aviação, também este vítima da covid-19 (incluindo a TAP),
esta urgência da Vinci e dos governantes teria provavelmente outro tratamento.
Felizmente há quem consiga identificar as graves lacunas deste processo. Os
presidentes das câmaras municipais da Moita e do Seixal têm resistido
estoicamente ao elevado risco de contágio de que são alvo e têm vindo a
desmascarar estudos e medidas de mitigação que, não assentando nos melhores
dados da ciência e da técnica, não podem defender os valores e qualidades
ambientais dos cidadãos e concelhos que representam.
Neste século onde
nos podemos deslocar com uma facilidade inigualável, não deixa de ser curioso
que é esse nível de vida a exponenciar a transmissão do novo coronavírus e a
originar um confinamento global. Quando as ligações aéreas (humanas) estão
severamente limitadas, são as aves migradoras que todos os anos ligam o
estuário do Tejo ao Árctico e à África Ocidental a assegurar a conectividade
planetária. Está nas nossas mãos evitar que essas ligações naturais e as
espécies que as desempenham sejam substituídas por rotas artificiais que servem
apenas uma. Na remota eventualidade do projecto do aeroporto do Montijo
sobreviver aos efeitos do novo coronavírus, será certamente portador de
sequelas muito graves que infelizmente não se manifestarão no próprio, mas nas
multas pelo incumprimento de legislação comunitária que os contribuintes terão
de suportar e pela perda de biodiversidade que todos, neste mundo globalizado,
iremos sentir.
Portugal pode
ainda sair mais saudável desta pandemia se abandonar o modelo económico de
crescimento insustentável assente em combustíveis fosseis e lançar o país numa
rota de sustentabilidade ambiental, seguindo a estratégia nacional de conservação
da natureza e biodiversidade e implementando o Green Deal, proposto pela
Comissão Europeia. Em suma, transformar-se num caso de sucesso ambiental e da
conservação da biodiversidade, bastando para isso ouvir os especialistas!
Investigador no
CESAM – Centro de Estudos do Ambiente e do Mar e no Departamento de Biologia,
Universidade de Aveiro
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