ENTREVISTA
Isabel Jonet: “Voltou a haver barracas em Lisboa”
Presidente do Banco Alimentar faz o balanço da última
campanha que, por não ter podido contar com voluntários, recolheu menos
toneladas de alimentos do que era habitual. E deixa alertas sobre riscos de
exclusão social e agravamento das condições de habitação.
Helena Pereira e
Graça Franco 4 de Junho de 2020, 0:00
Isabel Jonet está
preocupada com as consequências do ensino à distância na exclusão social e
defende, por isso, a abertura de todas as escolas no próximo ano lectivo: “Mais
vale abrir as escolas e perceber que os efeitos a longo prazo serão muito
superiores ao eventual risco [de saúde pública] que pode existir". Nesta
entrevista, que pode ouvir esta quinta-feira às 13h na Renascença, chama ainda
a atenção para a “estigmatização” de certos bairros sociais onde há infecções
de covid-19.
Que balanço que faz
da campanha do Banco Alimentar (BA) “Ajude a preencher este vazio”? Preencheu?
Este apelo foi
muito correspondido por quem doou alimentos através do site e dos vales mas
também através de milhares de donativos. Fizeram-nos falta os nossos
voluntários. Foi a primeira vez que não tivemos a presença física de
voluntários, os 42 mil voluntários na rua que convidam as pessoas que vão às
compras. Ainda falta que as cadeias de distribuição nos enviem os resultados
finais dos vales, mas os resultados são animadores. A campanha na Internet mais
do que duplicou: foram recolhidas mais de 180 toneladas. Mas nada disto é
comparável com as quase 3 mil toneladas de alimentos que eram recolhidas
fisicamente.
Quantas pessoas
por dia procuram o BA?
Em Fevereiro,
tínhamos 380 mil pessoas que eram ajudadas pelos 21 BA através de uma rede de
2600 instituições. De um dia para o outro, isto tudo mudou. Há muitas famílias
que ficaram com as suas vidas viradas do avesso. Um conjunto larguíssimo de
pessoas ficou impedido de trabalhar e ficou com os filhos em casa. Tivemos uma
dupla pressão na sociedade. Agora, tinham que estar em casa, não tinham
dinheiro e tinham que alimentar os filhos que deixaram de comer na creche, no
infantário ou na escola. No dia 20 de Março, lançámos a rede de emergência
alimentar para que não falhasse a ajuda a estes 380 mil (a maioria, em situação
de pobreza estrutural) e ajudasse as 60 mil pessoas a mais que se vieram
juntar, pessoas que ficaram sem emprego e que ficaram em layoff e ainda não
receberam.
Esta crise
revelou novas bolsas de dificuldades? Em que regiões e em que sectores?
Ainda estamos
para ver as consequências totais, mas trouxe no imediato bolsas grandes de
pobreza nas regiões a que já estamos habituados, Lisboa, Setúbal, o Algarve, o
Grande Porto. Trouxe uma pobreza conjuntural muito severa e nunca tínhamos tido
em Portugal, nem no tempo da crise de 2009/2010. Atingiu famílias que não
estavam habituadas a lidar com esta situação, famílias mais novas com crianças
em casa, provocando uma maior exclusão social até no acesso à educação. Estas
famílias tinham que ter os filhos a frequentar aulas que obrigavam a ter
computador, Internet e espaço em casa para as crianças poderem estar. Isto
trouxe uma clivagem no acesso à educação, que é um direito absolutamente
fundamental. Não haveria alternativa? Talvez não houvesse, mas é urgente
reparar esta situação que vivemos hoje. Isto vai ter consequências muito graves
no próximo ano lectivo. Temos crianças que puderam acompanhar as aulas quase de
forma pacífica e temos outras crianças que não puderam de todo.
Que devia ser
feito agora? O Governo já anunciou que o próximo ano lectivo deve ser dual, com
aulas presenciais e à distância.
Deixo o alerta
que esta situação de clivagem no acesso à educação deve ser olhada de forma
realista e com muito cuidado. Não há hipótese de estas crianças frequentarem o
ensino. Então, o que temos que fazer? Mais vale abrir as escolas e perceber que
os efeitos a longo prazo serão muito superiores ao eventual risco [de saúde
pública] que pode existir. A situação dos pais destas crianças não está
resolvida nem estará. Tudo isto vai demorar muito tempo tal como vai demorar
muito tempo à economia a pôr-se em marcha ao ritmo necessário para permitir que
estas famílias voltem a ter a sua situação equilibrada. Uma situação
conjuntural de pobreza como esta tem que ter medidas excepcionais. Estas
famílias e estas crianças têm que ser apoiadas de forma integral para que não
se sintam excluídas. Quando se diz que este foi um vírus democrático, não foi
nada democrático. Embora os vírus e as doenças possam matar os ricos e os
pobres, os mais vulneráveis são as pessoas que vivem em condições piores, andam
de transportes públicos, os filhos não têm acesso a computador. Numa altura de
emergência, estas pessoas têm que ser ajudadas e quem tem que ajudar é o
Estado, é a sociedade civil e a ajuda deve ser quase um a um porque todas estas
famílias são diferentes. Temos desde os feirantes aos higienistas, desde os
motoristas de táxi a personal trainers, empregadas domésticas, sector cultural.
O alargamento do
rendimento mínimo garantido pode ser uma solução?
Sim, é preciso
dar dinheiro às pessoas até para gerar riqueza na economia. Tem que se ajudar
as pessoas, dando verbas com os controlos que sejam necessários embora no
início é preciso aligeirar [o controlo]. É preciso, por exemplo, que todas as
pessoas que já requereram a situação de layoff ou apoios e que estão
desesperadas há três meses à espera possam ter acesso a isto até para terem
balões de oxigénio que gerem alguma esperança. Hoje, só se fala dos fundos
[europeus] que vão vir mas não podemos estar só a falar do ouro do Brasil
quando a caravela ainda está a meio do oceano. É urgente ajudar hoje pessoas
que estão em situação de emergência.
Quantas pessoas
são?
Já falei com a
ministra do Trabalho sobre um programa que já aí está e que com facilidade se pode
rapidamente ajudar desde que os serviços aceitem as ideias de quem decide e que
não combatam com uma certa passividade algumas medidas que podem ser tomadas.
Estou a falar do fundo europeu de apoio aos carenciados, cujas regras têm que
ser revisitadas. Já foi alargado mas pode ser muito melhor aproveitado para
levar esta ajuda de emergência. Só não muda de ideias quem as não tem. Em
Portugal, há 1 milhão de pessoas que vive com menos de 250 euros por mês e dois
milhões que vivem com menos de 450 euros por mês. Agora, houve muitos que
ficaram com zero.
O que pensa sobre
o facto de se divulgarem os locais onde há surtos de covid-19 quando esses
locais são bairros sociais ou bairros ilegais? Isto não estigmatiza as pessoas
que foram afectadas pelo vírus e que antes já tinham sido afectadas pela
pobreza?
Não só
estigmatiza como dá um medo tremendo, o que pode dar lugar a uma grande
insegurança. Não podemos deixar, de maneira nenhuma, que se gere insegurança
social.
Houve
irresponsabilidade da parte dos políticos?
Não há
irresponsabilidade. Os políticos sentem uma necessidade de estar constantemente
a revelar números e dados continuamente até pela pressão mediática. Este grau
de transparência é excessivo. A pouco e pouco, há que criar uma imunidade
colectiva que nos permita seguir em frente e abordar o próximo Inverno e não
pode haver pessoas estigmatizadas.
Estes bairros
estão a aumentar ou a diminuir?
A aumentar muito.
Na margem sul, com a subida de rendas, os bairros muito difíceis e degradados,
como o Segundo Torrão que teve um acréscimo do número de barracas muito
substancial. Voltou a haver barracas em Lisboa porque as pessoas tiveram que
largar a sua casa e vivem em condições muito precárias.
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