Manuel Carvalho
EDITORIAL
Uma conversa privada não deve ser assunto público
Ao exigir aos políticos que suspendam aos seus direitos e
liberdades individuais, estamos a ceder à demagogia populista, a ceder em
princípios essenciais e a menosprezar os nossos direitos.
24 de Agosto de
2020, 18:47
https://www.publico.pt/2020/08/24/sociedade/editorial/conversa-privada-nao-assunto-publico-1929144
No jornalismo ou
na política, como na vida, não vale tudo. Não vale pegar numa conversa privada
entre o primeiro-ministro e um jornalista, divulgada sem consentimento e com
violação de uma das regras mais sagradas do jornalismo, para criar uma polémica
pública – porque há direitos de privacidade que não se podem desproteger;
porque quando se tem uma conversa privada exprimem-se estados de ânimo, ideias
ou opiniões isentas da reflexão e da racionalidade que se exigem no espaço
público. Que a indignação do dia nas redes sociais recuse estes princípios
basilares das sociedades democráticas percebemos: que a Federação Nacional dos
Médicos ou a Ordem dos Médicos, naturalmente indignados com as palavras de
António Costa, propaguem uma frase solta, pronunciada em privado e divulgada à
revelia do seu autor, é difícil de perceber.
As declarações em
off são um dos mais preciosos instrumentos que os jornalistas têm para garantir
o direito à informação. É com base nesse instituto que se cria uma relação de
confiança entre fontes e jornalistas e se obtêm informações de interesse
público. Saber numa conversa solta e privada que um governante tem uma ideia
inflamada sobre este ou aquele assunto serve ao jornalista para contextualizar
o seu pensamento ou as suas opções. Não significa que essa ideia subordine a
sua acção. Há excepções? Sim, quando aquilo que se diz em privado é uma ameaça
à segurança, à vida ou à coexistência democrática. Dizer em privado que houve
médicos que tiveram comportamentos censuráveis está longe de acolher essas
situações extremas. Pode ser grave, e é grave, mas não justifica a violação da
privacidade.
O estado cada vez
mais conflitual para que caminhamos torna as posições como a que o PÚBLICO aqui
exprime cada vez mais difíceis de explicar e de assumir. Como dizia na semana
passada David Justino, referindo-se a outro contexto, é preciso coragem para
ser moderado. Até para defender princípios básicos. Foi por isso que o PÚBLICO
não reagiu às primeiras polémicas do vídeo. É por isso que só reage agora,
quando a questão ganhou uma dimensão pública e política incontornável. Quando
aquilo que devíamos preservar (segredo profissional, privacidade), já está
irremediavelmente perdido.
O que aconteceu
deve obrigar os jornais a reforçar os mecanismos de protecção do sigilo
profissional – mas o caso em apreço extravasa a discussão jornalística.
Remete-nos para esse erro perigoso que leva muitos a pensar que temos o direito
de saber tudo o que um político diz ou pensa, até em privado, acreditando que
essa via aumenta a transparência e melhora a democracia. É uma ilusão. Ao
exigir aos políticos que suspendam aos seus direitos e liberdades individuais,
estamos a ceder à demagogia populista, a ceder em princípios essenciais e a
menosprezar os nossos direitos.
CORONAVÍRUS
Bastonário dos Médicos diz que frase de António Costa foi
“um desabafo” e quer paz
Ministra da Saúde obrigou os médicos dos centros de saúde
em Abril, por despacho, a acompanhar diariamente os idosos com covid-19
residentes em lares que não precisam de internamento hospitalar. Enfermeiro diz
que lares de idosos são “terra de ninguém”.
Alexandra Campos
24 de Agosto de 2020, 23:15
O bastonário da
Ordem dos Médicos garante que nenhum médico de família se recusou a prestar
apoio no lar de idosos de Reguengos de Monsaraz e antecipa que a conversa com o
primeiro-ministro António Costa — marcada de urgência para esta terça-feira de
manhã — vai ser “objectiva e simples”. Miguel Guimarães diz ao PÚBLICO que tem
“margem de abertura para resolver” o conflito e acabar com o clima de tensão
dos últimos dias, que foi empolado pela divulgação de uma conversa privada (off
the record) entre António Costa e jornalistas no final de uma entrevista.
“Não podemos
continuar com esta guerra. As declarações do primeiro-ministro foram infelizes.
Mas este desabafo [de António Costa] provavelmente tem a ver com as informações
que lhe foram dadas pelo presidente da Administração Regional de Saúde [ARS] do
Alentejo”, considera.
O presidente da
ARS do Alentejo, José Robalo, tem dito que ameaçou alguns médicos com processos
disciplinares porque estes queriam “abandonar” os doentes do lar de Reguengos
de Monsaraz. Na resposta à auditoria da Ordem dos Médicos ao surto de covid-19
neste lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (que provocou a morte
de 16 residentes, uma funcionária e um motorista da Câmara), José Robalo
argumenta que foi obrigado a intimar médicos com processos disciplinares porque
estes se recusaram a ir para o lar e para o pavilhão municipal para onde os
idosos que estavam infectados, mas não necessitavam de internamento hospitalar,
foram transferidos mais tarde.
O bastonário da
OM garante que isto é falso. “Os médicos de família [do centros de saúde] foram
sempre trabalhar, cumpriram as escalas, nunca faltaram, apesar de terem
protestado porque havia falta de equipamentos de protecção individual”,
retorque. E os médicos dos hospitais a quem também foi pedido apoio? Os do
hospital de Évora foram dar apoio no início, diz. Agora, argumenta, se eram
precisos especialistas em medicina interna no pavilhão onde os doentes ficaram
alojados, estes doentes deveriam ter ido para o hospital” para aí serem
tratados. Até porque, recorda, os médicos dizem que não tinham equipamentos
fundamentais para intervir numa situação de emergência, como desfibrilhadores
ou fármacos. “Houve uma série de coisas que falharam. Mas o que o presidente da
ARS fez foi tentar defender-se com unhas e dentes e optou por acusar os
médicos. Foi uma fuga para a frente”, remata.
Contrastando com
o tom conciliador do bastonário, o presidente da Federação Nacional dos Médicos
considerou as declarações de António Costa “chocantes e totalmente
inapropriadas” e o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos
voltou a afirmar que os médicos das Unidades de Saúde Familiar (USF) não têm
que prestar assistência nos lares de idosos, o que está expresso numa portaria
de 2007.
Os lares de
idosos têm ou não de ter médicos?
Por lei, os lares
de idosos não são obrigados a ter médicos, apenas enfermeiros – um por cada 40
utentes, ou um por cada 20, no caso de estes serem idosos com dependências,
explicou ao PÚBLICO Sérgio Branco, presidente da Secção Regional do Sul da
Ordem dos Enfermeiros. Mas nem esta obrigação é cumprida muitas vezes, afirma.
“Há lares que têm um enfermeiro para cem utentes”, diz Sérgio Branco, que
lamenta que as residências para idosos não sejam periodicamente fiscalizadas.
São “terra de ninguém” — a saúde diz que a tutela é da Segurança Social porque
os lares de idosos são estabelecimentos residenciais, não de saúde, enquanto a
Segurança Social alega que o que está em causa na pandemia de covid-19 são
cuidados de saúde, acentua.
Mas, com o surto
epidémico a avançar em Portugal e a atingir os lares de idosos, em 24 de Abril
passado a ministra da Saúde determinou, por despacho, que os doentes com
covid-19 residentes nestas estruturas e cuja situação clínica não exija
internamento hospitalar passariam a ser acompanhados diariamente pelos médicos
de família e pelos enfermeiros dos respectivos agrupamentos de centros de
saúde, em articulação com os hospitais da sua área de referência.
Foi a resposta à
União de Misericórdias Portuguesas (UMP) e à Confederação Nacional de
Instituições Particulares de Solidariedade Social (CNIS), que avisaram que os
idosos e as pessoas com deficiência podiam ter que vir a ser retirados dos
lares, por causa da escassez de funcionários e da falta de preparação para
lidarem com o novo coronavírus.
Esta segunda-feira
o presidente da União de Misericórdias Portuguesas (UMP), Manuel Lemos, ainda
veio deitar mais achas para a fogueira ao revelar outro caso de alegada recusa
de apoio médico num lar da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro. Manuel Lemos
disse que “médicos do centro de saúde do Barreiro” se terão “recusado a dar
apoio” no lar São João, onde um surto de covid-19 infectou mais de meia centena
de utentes e funcionários e provocou três mortes no início deste mês.
“Os médicos [do
centro de saúde do Barreiro] não explicitaram as razões para a [alegada]
recusa. Foi a provedora da Santa Casa de Misericórdia do Barreiro que nos
comunicou a situação na semana passada e nós não queremos ser acusados do crime
de omissão de auxílio”, afirmou Manuel Lemos, à saída de uma reunião com o
bastonário da OM.
Manuel Lemos
explicou que pediu a reunião com Miguel Guimarães para lhe fazer um apelo
— o de “sensibilizar” os profissionais
para que “não deixem as pessoas sem médicos nos lares das misericórdias”. E
isto porque a alternativa seria “transferi-los para os hospitais” onde correm
maiores riscos.
“Não sei de nada”
sobre o caso do Barreiro, reagiu o bastonário, defendendo que essa situação tem
que ser enquadrada e esclarecida. “Os médicos de família estão a fazer um trabalho
extraordinário” que passa por seguir milhares de doentes com covid-19 que não
necessitam de internamento hospitalar, frisou.
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