segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Uma conversa privada não deve ser assunto público // Bastonário dos Médicos diz que frase de António Costa foi “um desabafo” e quer paz

 

Manuel Carvalho

EDITORIAL


Uma conversa privada não deve ser assunto público

 

Ao exigir aos políticos que suspendam aos seus direitos e liberdades individuais, estamos a ceder à demagogia populista, a ceder em princípios essenciais e a menosprezar os nossos direitos.

 

24 de Agosto de 2020, 18:47

https://www.publico.pt/2020/08/24/sociedade/editorial/conversa-privada-nao-assunto-publico-1929144

 

No jornalismo ou na política, como na vida, não vale tudo. Não vale pegar numa conversa privada entre o primeiro-ministro e um jornalista, divulgada sem consentimento e com violação de uma das regras mais sagradas do jornalismo, para criar uma polémica pública – porque há direitos de privacidade que não se podem desproteger; porque quando se tem uma conversa privada exprimem-se estados de ânimo, ideias ou opiniões isentas da reflexão e da racionalidade que se exigem no espaço público. Que a indignação do dia nas redes sociais recuse estes princípios basilares das sociedades democráticas percebemos: que a Federação Nacional dos Médicos ou a Ordem dos Médicos, naturalmente indignados com as palavras de António Costa, propaguem uma frase solta, pronunciada em privado e divulgada à revelia do seu autor, é difícil de perceber.

 

As declarações em off são um dos mais preciosos instrumentos que os jornalistas têm para garantir o direito à informação. É com base nesse instituto que se cria uma relação de confiança entre fontes e jornalistas e se obtêm informações de interesse público. Saber numa conversa solta e privada que um governante tem uma ideia inflamada sobre este ou aquele assunto serve ao jornalista para contextualizar o seu pensamento ou as suas opções. Não significa que essa ideia subordine a sua acção. Há excepções? Sim, quando aquilo que se diz em privado é uma ameaça à segurança, à vida ou à coexistência democrática. Dizer em privado que houve médicos que tiveram comportamentos censuráveis está longe de acolher essas situações extremas. Pode ser grave, e é grave, mas não justifica a violação da privacidade.

 

O estado cada vez mais conflitual para que caminhamos torna as posições como a que o PÚBLICO aqui exprime cada vez mais difíceis de explicar e de assumir. Como dizia na semana passada David Justino, referindo-se a outro contexto, é preciso coragem para ser moderado. Até para defender princípios básicos. Foi por isso que o PÚBLICO não reagiu às primeiras polémicas do vídeo. É por isso que só reage agora, quando a questão ganhou uma dimensão pública e política incontornável. Quando aquilo que devíamos preservar (segredo profissional, privacidade), já está irremediavelmente perdido.

 

O que aconteceu deve obrigar os jornais a reforçar os mecanismos de protecção do sigilo profissional – mas o caso em apreço extravasa a discussão jornalística. Remete-nos para esse erro perigoso que leva muitos a pensar que temos o direito de saber tudo o que um político diz ou pensa, até em privado, acreditando que essa via aumenta a transparência e melhora a democracia. É uma ilusão. Ao exigir aos políticos que suspendam aos seus direitos e liberdades individuais, estamos a ceder à demagogia populista, a ceder em princípios essenciais e a menosprezar os nossos direitos.

 

CORONAVÍRUS

Bastonário dos Médicos diz que frase de António Costa foi “um desabafo” e quer paz

 

Ministra da Saúde obrigou os médicos dos centros de saúde em Abril, por despacho, a acompanhar diariamente os idosos com covid-19 residentes em lares que não precisam de internamento hospitalar. Enfermeiro diz que lares de idosos são “terra de ninguém”.

 

Alexandra Campos 24 de Agosto de 2020, 23:15

https://www.publico.pt/2020/08/24/sociedade/noticia/bastonario-medicos-frase-antonio-costa-desabafo-quer-paz-1929160

 

O bastonário da Ordem dos Médicos garante que nenhum médico de família se recusou a prestar apoio no lar de idosos de Reguengos de Monsaraz e antecipa que a conversa com o primeiro-ministro António Costa — marcada de urgência para esta terça-feira de manhã — vai ser “objectiva e simples”. Miguel Guimarães diz ao PÚBLICO que tem “margem de abertura para resolver” o conflito e acabar com o clima de tensão dos últimos dias, que foi empolado pela divulgação de uma conversa privada (off the record) entre António Costa e jornalistas no final de uma entrevista.

 

“Não podemos continuar com esta guerra. As declarações do primeiro-ministro foram infelizes. Mas este desabafo [de António Costa] provavelmente tem a ver com as informações que lhe foram dadas pelo presidente da Administração Regional de Saúde [ARS] do Alentejo”, considera.

 

O presidente da ARS do Alentejo, José Robalo, tem dito que ameaçou alguns médicos com processos disciplinares porque estes queriam “abandonar” os doentes do lar de Reguengos de Monsaraz. Na resposta à auditoria da Ordem dos Médicos ao surto de covid-19 neste lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (que provocou a morte de 16 residentes, uma funcionária e um motorista da Câmara), José Robalo argumenta que foi obrigado a intimar médicos com processos disciplinares porque estes se recusaram a ir para o lar e para o pavilhão municipal para onde os idosos que estavam infectados, mas não necessitavam de internamento hospitalar, foram transferidos mais tarde.

 

O bastonário da OM garante que isto é falso. “Os médicos de família [do centros de saúde] foram sempre trabalhar, cumpriram as escalas, nunca faltaram, apesar de terem protestado porque havia falta de equipamentos de protecção individual”, retorque. E os médicos dos hospitais a quem também foi pedido apoio? Os do hospital de Évora foram dar apoio no início, diz. Agora, argumenta, se eram precisos especialistas em medicina interna no pavilhão onde os doentes ficaram alojados, estes doentes deveriam ter ido para o hospital” para aí serem tratados. Até porque, recorda, os médicos dizem que não tinham equipamentos fundamentais para intervir numa situação de emergência, como desfibrilhadores ou fármacos. “Houve uma série de coisas que falharam. Mas o que o presidente da ARS fez foi tentar defender-se com unhas e dentes e optou por acusar os médicos. Foi uma fuga para a frente”, remata.

 

Contrastando com o tom conciliador do bastonário, o presidente da Federação Nacional dos Médicos considerou as declarações de António Costa “chocantes e totalmente inapropriadas” e o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos voltou a afirmar que os médicos das Unidades de Saúde Familiar (USF) não têm que prestar assistência nos lares de idosos, o que está expresso numa portaria de 2007.

 

Os lares de idosos têm ou não de ter médicos?

Por lei, os lares de idosos não são obrigados a ter médicos, apenas enfermeiros – um por cada 40 utentes, ou um por cada 20, no caso de estes serem idosos com dependências, explicou ao PÚBLICO Sérgio Branco, presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros. Mas nem esta obrigação é cumprida muitas vezes, afirma. “Há lares que têm um enfermeiro para cem utentes”, diz Sérgio Branco, que lamenta que as residências para idosos não sejam periodicamente fiscalizadas. São “terra de ninguém” — a saúde diz que a tutela é da Segurança Social porque os lares de idosos são estabelecimentos residenciais, não de saúde, enquanto a Segurança Social alega que o que está em causa na pandemia de covid-19 são cuidados de saúde, acentua.

 

Mas, com o surto epidémico a avançar em Portugal e a atingir os lares de idosos, em 24 de Abril passado a ministra da Saúde determinou, por despacho, que os doentes com covid-19 residentes nestas estruturas e cuja situação clínica não exija internamento hospitalar passariam a ser acompanhados diariamente pelos médicos de família e pelos enfermeiros dos respectivos agrupamentos de centros de saúde, em articulação com os hospitais da sua área de referência.

 

Foi a resposta à União de Misericórdias Portuguesas (UMP) e à Confederação Nacional de Instituições Particulares de Solidariedade Social (CNIS), que avisaram que os idosos e as pessoas com deficiência podiam ter que vir a ser retirados dos lares, por causa da escassez de funcionários e da falta de preparação para lidarem com o novo coronavírus.

 

Esta segunda-feira o presidente da União de Misericórdias Portuguesas (UMP), Manuel Lemos, ainda veio deitar mais achas para a fogueira ao revelar outro caso de alegada recusa de apoio médico num lar da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro. Manuel Lemos disse que “médicos do centro de saúde do Barreiro” se terão “recusado a dar apoio” no lar São João, onde um surto de covid-19 infectou mais de meia centena de utentes e funcionários e provocou três mortes no início deste mês.

 

“Os médicos [do centro de saúde do Barreiro] não explicitaram as razões para a [alegada] recusa. Foi a provedora da Santa Casa de Misericórdia do Barreiro que nos comunicou a situação na semana passada e nós não queremos ser acusados do crime de omissão de auxílio”, afirmou Manuel Lemos, à saída de uma reunião com o bastonário da OM.

 

 

Manuel Lemos explicou que pediu a reunião com Miguel Guimarães para lhe fazer um apelo —  o de “sensibilizar” os profissionais para que “não deixem as pessoas sem médicos nos lares das misericórdias”. E isto porque a alternativa seria “transferi-los para os hospitais” onde correm maiores riscos.

 

“Não sei de nada” sobre o caso do Barreiro, reagiu o bastonário, defendendo que essa situação tem que ser enquadrada e esclarecida. “Os médicos de família estão a fazer um trabalho extraordinário” que passa por seguir milhares de doentes com covid-19 que não necessitam de internamento hospitalar, frisou.

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