sábado, 8 de maio de 2021

Governo está a violar regras de requisição civil que criou para o Zmar

 



ODEMIRA

Governo está a violar regras de requisição civil que criou para o Zmar

 

Privados que protestam contra a requisição não são proprietários, mas apenas donos de casas amovíveis que, se o empreendimento for à falência, terão de ser desmontadas e retiradas do local.

 

Mariana Oliveira

8 de Maio de 2021, 6:29

https://www.publico.pt/2021/05/08/sociedade/noticia/governo-violar-regras-requisicao-civil-criou-zmar-1961720

 

O Governo está a violar as regras da requisição civil que ele próprio determinou para a utilização do empreendimento turístico ZMar. Isto porque o executivo, em parceria com a Câmara Municipal de Odemira, está a usar o complexo para alojar imigrantes que não têm covid-19, nem estão em isolamento profiláctico, as duas situações previstas no despacho conjunto do primeiro-ministro e do ministro da Administração Interna que decretou a requisição civil.

 

Na realidade, as pessoas que estão em dez casas (das cerca de 260) do empreendimento não têm covid-19, nem estiveram em contacto com pessoas contaminadas pelo vírus. São apenas trabalhadores que as autoridades detectaram estar a residir em locais sem as devidas condições e que foram colocados temporariamente no ZMar.

 

Questionado sobre a justificação deste desvio à requisição civil, que na opinião de especialistas ouvidos pelo PÚBLICO pode configurar um vício de desvio de poder, o Ministério da Administração Interna optou por não responder. A Câmara de Odemira também não respondeu às perguntas do PÚBLICO.

 

O presidente da autarquia José Alberto Guerreiro reconheceu esta quinta-feira numa conferência de imprensa que os 49 trabalhadores que foram realojados na madrugada de quinta-feira apenas saíram da propriedade onde residiam (local onde viviam cerca de 70 pessoas) por falta de condições. O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, também tem reconhecido publicamente a utilização do ZMar para alojar pessoas que estiverem a residir em locais sem condições de salubridade, sem nunca referir, no entanto, que tal situação não está prevista no despacho que decretou a requisição civil.

 

Providência não suspende requisição

Entretanto, esta sexta-feira intensificou-se a luta dos chamados “proprietários privados” do complexo que detém 160 das cerca de 260 casas de madeira do empreendimento. O Supremo Tribunal Administrativo aceitou a providência cautelar apresentada por um grupo de donos das habitações amovíveis que quer suspender a eficácia do despacho que determinou a requisição civil. Em princípio, a simples aceitação da acção urgente tem como efeito suspender a requisição civil a partir do momento em que o Governo é notificado da admissão do processo por parte do tribunal. No entanto, a lei possibilita à Administração Pública recorrer à chamada resolução fundamentada que retira os efeitos práticos desta suspensão automática. O MAI garantiu esta sexta-feira à noite ainda não ter sido citado pelo tribunal, mas já disse que irá apresentar a tal resolução fundamentada.

 

A verdade é que o tempo médio que o STA demora habitualmente a decidir acções urgentes como esta, um prazo que oscila entre os dois e os três meses, deverá retirar qualquer efeito útil a este procedimento urgente. O Supremo recusou fazer o chamado “decretamento provisório da providência”, que retiraria margem de reacção ao Governo, considerando “os relevantes valores e interesses que estão em causa e que aconselham a ouvir previamente as razões dos demandados” e argumentando com o tal efeito automático previsto na lei que determina que a “autoridade administrativa, recebido o duplicado do requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução do acto administrativo”.

 

O problema de interpretação do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, uma discussão já antiga, é que logo a seguir a esta afirmação diz: “Salvo se, mediante remessa ao tribunal de resolução fundamentada na pendência do processo cautelar, reconhecer que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público.”

 

Proprietários de quê?

Na providência apresentada os “proprietários” assumem que não têm de facto essa qualidade, já que o que possuem são as casas de madeira, um bem móvel não sujeito a registo. Isto porque a propriedade é um terreno rural único onde a construção é muito limitada e nem sequer está dividida em lotes. A maior parte dos donos das casas tem um contrato com a empresa que é dona do empreendimento e de 100 das casas de madeira para cederem “o equipamento móvel de alojamento” mediante o pagamento de uma comissão que varia entre os 40 e os 60% do valor do aluguer. Alguns optaram por não disponibilizar as suas casas para aluguer.

 

Apesar de ser um grande empreendimento turístico, o Zmar está licenciado como um parque de campismo. Se o complexo falir, como temem os donos das 160 casas, estes terão de desmontar as habitações, retirá-las do local e arranjar um novo terreno para as colocar. Isso mesmo admitem na providência que apresentaram no Supremo onde invocam inúmeros vícios ao despacho do Governo, passando pela incompetência de quem proferiu a decisão até à violação da proporcionalidade da medida.

 

Pelo menos quatro imigrantes deviam sair esta sexta-feira do empreendimento, porque a Câmara de Odemira já arranjou um local alternativo para ficarem. Tal devia-se ao facto de a alternativa ser mais próximas dos locais de trabalho dos imigrantes e não está relacionada com a providência cautelar.

 

As freguesias de Longueira-Almograve e São Teotónio, no concelho de Odemira, estão em cerca sanitária desde a semana passada por causa da elevada incidência de covid-19 entre os imigrantes que trabalham na agricultura na região. Na altura, o Governo determinou “a requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional”, da “totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes” que compõem o complexo turístico Zmar Eco Experience, na freguesia de Longueira-Almograve, ou seja, dentro da cerca sanitária.

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