OPINIÃO
Toda a gente sabia
Toda a gente sabe que Odemira está longe de ser o único
sítio, talvez até nem o pior, mas a pandemia desorganizou tudo.
António Barreto
8 de Maio de
2021, 0:10
https://www.publico.pt/2021/05/08/opiniao/noticia/gente-sabia-1961696
Toda a gente
sabia que a utilização da água dos perímetros de rega, tanto em Odemira como em
muitas mais localidades, não estava de acordo com as boas regras técnicas,
qualquer que seja o ponto de vista: da quantidade de água utilizada, das
respectivas condições sanitárias, dos produtos a que essas águas se destinam e
dos horários e calendários de acesso.
Toda a gente
sabia que havia culturas forçadas a mais, estufas mal concebidas e mal
construídas, uso abusivo de culturas hiper-intensivas ou ultra-intensivas.
Sabia-se que havia produção excessiva de hortofrutícolas graças ao uso
desmedido de factores de produção e com abuso de mão-de-obra precária, muito
barata e muito mal paga.
Sabe-se que em
certas operações do montado, na criação de gado, nas vindimas e em outros
cultivos intensivos, como olivais e estufas chegadas aos regadios,
especialmente na área de influência de Alqueva, mas também nos perímetros do Baixo
Alentejo e do Ribatejo, o uso e o abuso dos factores de produção, das condições
climáticas e da força de trabalho imigrante e desprotegida são quase a regra…
Toda a gente
sabia que há, no Alentejo, mas também no Ribatejo, no Algarve e mesmo em partes
das Beiras, agricultores e proprietários sem escrúpulos nem remorsos que se
aproveitam deste sistema sem lei.
Toda a gente sabe
que muitos proprietários deste género de empresas e de negócio entendem que
devem ser os governos e as autarquias a pagar e manter os alojamentos de que
eles se servem para depositar e amontoar os seus estrangeiros em péssimas
condições de salubridade e conforto.
Toda a gente
sabia que os estrangeiros, marroquinos, árabes, sudaneses, nepaleses,
tailandeses, romenos, indianos e outros, vinham para aqui trabalhar por
qualquer preço, em quaisquer circunstâncias, directamente ou através de
terceiros países (como a Espanha), de avião, de comboio, de carro, de camião
TIR ou de barco.
Toda a gente
sabia que havia redes de negreiros e de traficantes de gente que trazem
trabalhadores de qualquer parte do mundo por preços colossais na passagem, mas
irrisórios no vencimento, ficam-lhes com os passaportes, trabalham sem
contrato, sem cláusulas de regresso, sem bilhetes de avião garantidos e só lhes
pagam, quando pagam, muito mais tarde ou nos países de origem.
Mais de 9600 imigrantes viviam legalmente no concelho de Odemira em 2020
Toda a gente sabe
que se negoceiam, há anos, documentos oficiais, passaportes, autorizações de
trabalho e residência, atestados médicos, contratos, licenças de construção de
alojamentos e de estufas.
Todos sabiam que
alguns trabalhadores, sobretudo mulheres, mas também homens, deviam prestar outros
serviços íntimos fora das horas de trabalho agrícola.
Toda a gente
sabia que havia dezenas ou centenas de casas onde, em cada quarto previsto para
dois beliches ou quatro camas, dormiam dez ou vinte pessoas, sendo que muitos
destes alojamentos eram subalugados pelos angariadores e negreiros.
Toda a gente
sabia que em muitos casos, certamente a maioria de alojamentos sazonais deste
género, não havia água corrente potável, nem água quente, nem duche, nem banho,
nem esgotos.
Há anos que a PJ, o SEF, a PSP e a GNR conhecem as
situações. São simplesmente casos de evidente desastre ecológico, de atentado
humanitário e de obscena exploração
Toda a gente sabe
que as câmaras estão ao corrente destas situações, defendem a prosperidade
económica da região e do município, sabem perfeitamente em que condições vivem
aquelas pessoas, mas têm de manter a vida e os negócios.
Toda a gente
ficou a saber que as autoridades locais regionais e nacionais, juntas de
freguesias e câmaras municipais, polícias, serviços de segurança social e de
inspecção sanitária, inspecção de trabalho, a autoridade tributária, os
observatórios de tudo que por aí proliferam, os serviços de ambiente e de
protecção da natureza, assim como os de protecção civil, todos estão há muito
tempo ao corrente das situações, todos sinalizaram pessoas e empresas, todos
abriram processos e todos iniciaram inquéritos.
Toda a gente sabe
que Odemira está longe de ser o único sítio, talvez até nem o pior, mas a
pandemia desorganizou tudo. Os ministérios da Agricultura, do Trabalho, da
Administração Interna, da Saúde e da Economia, o SEF, a PJ, a GNR e a PSP estão
perfeitamente ao corrente do que se passa, há anos, nas zonas produtoras destes
cobiçados géneros no comércio externo.
O Ministério da
Agricultura e seus serviços conhecem bem o que aconteceu em Odemira e o que
está a acontecer em dezenas ou centenas de locais do país onde se vive de
culturas forçadas regadas, em regime de exploração intensiva, para fornecer
angariadores e intermediários que recolhem e transportam rapidamente para os
centros de exportação que levam aos mercados de primores europeus…
Toda a gente, ministros, directores gerais, polícias,
autarcas, deputados, proprietários garantiram publicamente que conheciam a
situação, que tinham a consciência tranquila, que cumpriam os seus deveres e
que esperavam que os outros cumprissem também os seus… Um mundo perfeito!
Há anos que a PJ,
o SEF, a PSP e a GNR conhecem as situações, abriram múltiplos processos,
sinalizaram muitas pessoas, muitas situações e muitas instalações, nesta e
noutras regiões. São simplesmente casos de evidente desastre ecológico, de
atentado humanitário e de obscena exploração.
Há, todavia, algo
que parece desconhecido para as autoridades, os autarcas e os serviços: o que
pensam e sentem as populações locais? Que efeitos têm, para as suas vidas,
estas situações? Que consequências têm estes factos na saúde dos locais, na
educação, na qualidade do ambiente, na vida económica, no comércio e na vida
social?
Toda a gente,
ministros, directores gerais e directores de serviços públicos, polícias,
autarcas, deputados, proprietários, produtores e comerciantes garantiram
publicamente que conheciam a situação, que tinham a consciência tranquila, que
cumpriam os seus deveres e que esperavam que os outros cumprissem também os
seus… Um mundo perfeito!
Sociólogo
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