OPINIÃO
O nacional-vigarismo
Na extrema-direita internacional, a vigarice é mais do
que uma compulsão, é um dos fundamentos da sua ideologia: o vigarismo.
Rui Tavares
24 de Agosto de
2020, 0:05
https://www.publico.pt/2020/08/24/mundo/opiniao/nacionalvigarismo-1929033
A semana passada
foi preso Steve Bannon, guru da extrema-direita mundial que dirigiu a campanha
de Trump e o levou ao poder, por ter desviado cerca de um milhão de dólares de
uma recolha de fundos destinada a construir o famoso muro que Trump prometeu
fazer na fronteira com o México. Segundo a acusação, Bannon desviou esse
dinheiro para gastar em coisas como carros novos, obras em casa e tratamentos
estéticos e de cirurgia plástica (estes últimos, de orçamento ilimitado e
resultados limitados). O que é interessante do ponto de vista nacional é que
ainda Bannon não estava cá fora de novo, após pagamento de uma fiança de cinco
milhões de dólares, e o líder da extrema-direita em Portugal já se solidarizava
com ele, alegando que “a prisão de Steve Bannon por uma questão qualquer de
angariação de fundos” seria um sinal de “instrumentalização da justiça” que ele
deseja “que nunca aconteça cá” agora que supostamente o seu partido “começa a
incomodar tanto”.
Há uma bela
locução latina que nos oferece a forma mais imediata de interpretar esta
solidariedade preventiva do nosso demagogo da extrema-direita doméstica para com
o demagogo da extrema-direita internacional. É ela “excusatio non petita,
accusatio manifesta” — ou seja, quem oferece justificações que não lhe foram
solicitadas está manifestamente a acusar-se de culpas próprias, como um
vigarista que defende outro vigarista para antecipar as desculpas que usará se
as suas vigarices vierem a ser descobertas. E no caso do líder do Chega há
porventura muito para antecipar se algum dia o Ministério Público vier a dar a
atenção devida às assinaturas falsas que foram entregues para a legalização do
seu partido ou o cheiro a esturro dos seus orçamentos de campanha.
Mas não podemos
ficar apenas por aqui, porque este caso e a reação a ele lança luz sobre um dos
mecanismos fundamentais do funcionamento desta extrema-direita. A dependência
da vigarice por parte da extrema-direita internacional é tão grande que não
pode ser só ocasional mas antes estrutural. O líder da extrema-direita
austríaca Heinz-Christian Strache foi filmado a oferecer contratos públicos a
um oligarca russo numa mansão em Ibiza. Trump vigarizou milhares de pessoas na
sua vida profissional, incluindo os pobres coitados que gastavam trinta e cinco
mil dólares à cabeça para andar numa Universidade Trump que era uma gigantesca
fraude — e pelo menos uma meia-dúzia dos seus aliados mais próximos foram
acusados de crimes e presos, à exceção daqueles que ele libertou com o seu
perdão presidencial. Na Itália, o partido Matteo Salvini conseguiu superar
Berlusconi desviando 49 milhões de dinheiro público para os seus cofres (que
agora vai pagar, sem juros, e sem atualização monetária, durante setenta anos,
depois de ter passado pelo governo, roubando os italianos segunda vez). A lista
poderia continuar. Na extrema-direita internacional, a vigarice é mais do que
uma compulsão, é um dos fundamentos da sua ideologia: o vigarismo.
Ilustremos uma
das formas como esta ideologia funciona. Já repararam como um dos dos lugares
comuns no discurso de extrema-direita está em incentivar os ressentimentos de
inferioridade do seu público em relação a todos aqueles que os possam avisar
contra a própria extrema-direita? Para que servem todos aqueles ataques aos
“bem-pensantes” que “pensam que vocês são idiotas”? Pois bem, essa é uma
técnica de manipulação mental típica de um vigarista. O seu objetivo é o de
levar a vítima a pensar que o vigarista é seu amigo, porque puxa pelo seu amor-próprio
(na verdade, pelo seu rancor), e que quem quer o quiser alertar contra o
vigarista é que é seu inimigo, por achar que a vítima poderia deixar-se
vigarizar. Isto dá ao vigarista uma dose tripla de proteção: para distrair a
vítima, numa primeira fase; para a pôr contra quem a pudesse ajudar, numa
segunda fase; e, finalmente, para levar a vítima a negar que foi vigarizada.
Quem conhece pessoas que foram vítimas de esquemas fraudulentos sabe que é
assim: os sentimentos de orgulho são instrumentais no momento em que a vítima
cai na armadilha, e os sentimentos de vergonha são instrumentais para evitar
que a vítima denuncie o esquema em que caiu. O vigarista incha o orgulho da sua
vítima para a enganar e conta com a vergonha dela para se escapar.
O que a
extrema-direita está a fazer é meramente ampliar a escala do golpe. De um
indivíduo, passam a atacar uma sociedade inteira: convencem-nos de que a sua
nação é a melhor do mundo mas que ao mesmo tempo é vítima dos malandros dos
estrangeiros; insinuam-lhes que os “outros” acham que eles são estúpidos mas
que eles podem contra-atacar mandando dólares para construir um muro que era
suposto ser feito pelo governo e pago pelos mexicanos; e se tudo correr como a
Bannon acabam a beber champanhe no iate de um oligarca chinês no momento em que
são presos. É o nacional-vigarismo no seu esplendor.
O que este
circuito de fraude política esconde é o seu segredo vergonhoso: na verdade,
quem acha que o eleitorado é estúpido é a extrema-direita. Um vigarista
político como Bannon ou os seus imitadores em todos os países, incluindo
Portugal, não pode deixar de ver os seus próprios apoiantes como otários. Para
Bannon, o muro na fronteira é uma tanga e que quem acredita nela merece ser
aliviado do seu dinheiro — e um dia este episódio será contado como as
histórias dos recém-chegados a uma cidade que foram convencidos a comprar uma
ponte.
E agora, será que
ao ver que o seu guru era um burlão levará os apoiantes dele a abandoná-lo?
Nada é menos certo. Toda a gente pode ser enganada. Reconhecer que se foi
enganado, e agir em conformidade, é mais raro, mais demorado, e necessitará de
um desmascaramento mais sistemático.
O autor escreve
segundo o novo acordo ortográfico
Sem comentários:
Enviar um comentário