domingo, 23 de agosto de 2020

O nacional-vigarismo


OPINIÃO

O nacional-vigarismo

 

Na extrema-direita internacional, a vigarice é mais do que uma compulsão, é um dos fundamentos da sua ideologia: o vigarismo.

 

Rui Tavares

24 de Agosto de 2020, 0:05

https://www.publico.pt/2020/08/24/mundo/opiniao/nacionalvigarismo-1929033

 

A semana passada foi preso Steve Bannon, guru da extrema-direita mundial que dirigiu a campanha de Trump e o levou ao poder, por ter desviado cerca de um milhão de dólares de uma recolha de fundos destinada a construir o famoso muro que Trump prometeu fazer na fronteira com o México. Segundo a acusação, Bannon desviou esse dinheiro para gastar em coisas como carros novos, obras em casa e tratamentos estéticos e de cirurgia plástica (estes últimos, de orçamento ilimitado e resultados limitados). O que é interessante do ponto de vista nacional é que ainda Bannon não estava cá fora de novo, após pagamento de uma fiança de cinco milhões de dólares, e o líder da extrema-direita em Portugal já se solidarizava com ele, alegando que “a prisão de Steve Bannon por uma questão qualquer de angariação de fundos” seria um sinal de “instrumentalização da justiça” que ele deseja “que nunca aconteça cá” agora que supostamente o seu partido “começa a incomodar tanto”.

 

Há uma bela locução latina que nos oferece a forma mais imediata de interpretar esta solidariedade preventiva do nosso demagogo da extrema-direita doméstica para com o demagogo da extrema-direita internacional. É ela “excusatio non petita, accusatio manifesta” — ou seja, quem oferece justificações que não lhe foram solicitadas está manifestamente a acusar-se de culpas próprias, como um vigarista que defende outro vigarista para antecipar as desculpas que usará se as suas vigarices vierem a ser descobertas. E no caso do líder do Chega há porventura muito para antecipar se algum dia o Ministério Público vier a dar a atenção devida às assinaturas falsas que foram entregues para a legalização do seu partido ou o cheiro a esturro dos seus orçamentos de campanha.

 

Mas não podemos ficar apenas por aqui, porque este caso e a reação a ele lança luz sobre um dos mecanismos fundamentais do funcionamento desta extrema-direita. A dependência da vigarice por parte da extrema-direita internacional é tão grande que não pode ser só ocasional mas antes estrutural. O líder da extrema-direita austríaca Heinz-Christian Strache foi filmado a oferecer contratos públicos a um oligarca russo numa mansão em Ibiza. Trump vigarizou milhares de pessoas na sua vida profissional, incluindo os pobres coitados que gastavam trinta e cinco mil dólares à cabeça para andar numa Universidade Trump que era uma gigantesca fraude — e pelo menos uma meia-dúzia dos seus aliados mais próximos foram acusados de crimes e presos, à exceção daqueles que ele libertou com o seu perdão presidencial. Na Itália, o partido Matteo Salvini conseguiu superar Berlusconi desviando 49 milhões de dinheiro público para os seus cofres (que agora vai pagar, sem juros, e sem atualização monetária, durante setenta anos, depois de ter passado pelo governo, roubando os italianos segunda vez). A lista poderia continuar. Na extrema-direita internacional, a vigarice é mais do que uma compulsão, é um dos fundamentos da sua ideologia: o vigarismo.

 

Ilustremos uma das formas como esta ideologia funciona. Já repararam como um dos dos lugares comuns no discurso de extrema-direita está em incentivar os ressentimentos de inferioridade do seu público em relação a todos aqueles que os possam avisar contra a própria extrema-direita? Para que servem todos aqueles ataques aos “bem-pensantes” que “pensam que vocês são idiotas”? Pois bem, essa é uma técnica de manipulação mental típica de um vigarista. O seu objetivo é o de levar a vítima a pensar que o vigarista é seu amigo, porque puxa pelo seu amor-próprio (na verdade, pelo seu rancor), e que quem quer o quiser alertar contra o vigarista é que é seu inimigo, por achar que a vítima poderia deixar-se vigarizar. Isto dá ao vigarista uma dose tripla de proteção: para distrair a vítima, numa primeira fase; para a pôr contra quem a pudesse ajudar, numa segunda fase; e, finalmente, para levar a vítima a negar que foi vigarizada. Quem conhece pessoas que foram vítimas de esquemas fraudulentos sabe que é assim: os sentimentos de orgulho são instrumentais no momento em que a vítima cai na armadilha, e os sentimentos de vergonha são instrumentais para evitar que a vítima denuncie o esquema em que caiu. O vigarista incha o orgulho da sua vítima para a enganar e conta com a vergonha dela para se escapar.

 

O que a extrema-direita está a fazer é meramente ampliar a escala do golpe. De um indivíduo, passam a atacar uma sociedade inteira: convencem-nos de que a sua nação é a melhor do mundo mas que ao mesmo tempo é vítima dos malandros dos estrangeiros; insinuam-lhes que os “outros” acham que eles são estúpidos mas que eles podem contra-atacar mandando dólares para construir um muro que era suposto ser feito pelo governo e pago pelos mexicanos; e se tudo correr como a Bannon acabam a beber champanhe no iate de um oligarca chinês no momento em que são presos. É o nacional-vigarismo no seu esplendor.

 

O que este circuito de fraude política esconde é o seu segredo vergonhoso: na verdade, quem acha que o eleitorado é estúpido é a extrema-direita. Um vigarista político como Bannon ou os seus imitadores em todos os países, incluindo Portugal, não pode deixar de ver os seus próprios apoiantes como otários. Para Bannon, o muro na fronteira é uma tanga e que quem acredita nela merece ser aliviado do seu dinheiro — e um dia este episódio será contado como as histórias dos recém-chegados a uma cidade que foram convencidos a comprar uma ponte.

 

E agora, será que ao ver que o seu guru era um burlão levará os apoiantes dele a abandoná-lo? Nada é menos certo. Toda a gente pode ser enganada. Reconhecer que se foi enganado, e agir em conformidade, é mais raro, mais demorado, e necessitará de um desmascaramento mais sistemático.

 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


Sem comentários: