OPINIÃO
A “verdade” do Chega
O livro de Riccardo Marchi é um mero exercício panegírico
ao Chega. É pouco para um cientista social, mas chega perfeitamente como
panfleto partidário.
Marina Costa Lobo
11 de Agosto de
2020, 0:10
https://www.publico.pt/2020/08/11/opiniao/opiniao/verdade-chega-1927548
A polémica do
Verão, no que diz respeito às ciências sociais, foi sem dúvida a carta
publicada no jornal PÚBLICO por umas dezenas de investigadores e professores
universitários, denunciando a posição apologética do professor universitário
Riccardo Marchi nas televisões e jornais quando convidado a falar do Chega.
Ora, rapidamente se percebeu que a crítica havido sido feita sem os
subscritores da carta terem lido o livro do politólogo sobre esse partido.
Trata-se de uma injustiça para com o visado, que, sendo cientista social e
tendo publicado um livro, merece ser avaliado, sobretudo por esse prisma. Li,
pois, o livro de Riccardo Marchi, com o intuito de o recensear, até porque este
estudo foi considerado “sério e desapaixonado”.
Constatei por
isso, com alguma surpresa, que não se trata de um estudo de ciência política
nem de história. É uma simples narrativa pormenorizada do percurso de Ventura e
do aparecimento do Chega. Lê-se como um daqueles livros que os políticos lançam
antes de uma campanha eleitoral, para mobilizar o seu eleitorado e que são
rapidamente esquecidos depois da eleição.
De facto, o livro
não cumpre critérios mínimos de distanciamento do objeto de estudo, nem do
ponto de vista da ciência política nem da história. O livro não tem um
enquadramento analítico, nem teórico, nem quaisquer comparações históricas ou
da atualidade portuguesa ou europeia que possam iluminar o percurso deste novo
partido. Também não inclui fontes alternativas de investigação, para além de
notícias de jornal, nem sequer entrevistas a políticos que não sejam do Chega,
para enquadrar devidamente as afirmações que vão sendo apresentadas por parte
do núcleo duro do partido como “verdades”.
O livro está
dividido em três partes – sobre o líder, o partido e as ideias. Quando se
centra no percurso biográfico de Ventura, a ideia principal é retratá-lo como
um outsider do regime. Ventura tem origens modestas, mas nesse ponto não se
destaca nem de Passos Coelho nem do principal líder do PSD das últimas décadas,
Cavaco Silva. Marchi nunca refere tal coisa. Pelo contrário, afirma que o caso
de Ventura é “inovador e único” (p.19), porque “os líderes fundadores de
anteriores partidos já tinham estruturas montadas em 1974 de forma rápida e
consistente, graças à convergência de recursos materiais maciços”. Ora, tal não
é verdade: os líderes fundadores lutaram num contexto de absoluta fluidez
constitucional, institucional, económica, social e política. Ou seja, num
contexto de enormes dificuldades.
Além disso, o
“regime” foi suave para com o jovem Ventura. Depois do curso de Direito na
Nova, foi trabalhar num dos grandes escritórios de advogados, a Uria Menendez,
tirou o doutoramento na Irlanda pago pelo Estado português, deu aulas em várias
universidades. Passado pouco tempo tornou-se comentador na BTV e na CMTV, e
rapidamente integrou órgãos dirigentes do PSD-Lisboa e foi candidato às
autárquicas em Loures por esse partido.
Parece um início
de carreira fulgurante com o apoio de alguns insiders, mas o autor prefere
singularizá-lo sempre como outsider. Afirma que o sucesso eleitoral nas
legislativas se deveu apesar da oposição dos media tradicionais, tendo sido
todo feito através de meios incipientes nas redes sociais, onde o líder do
Chega contactava e era contactado pelos cidadãos comuns, omitindo nessa parte
do livro que André Ventura já desde 2015 vinha ganhando enorme notoriedade em
programas sobre crime e futebol na BTV e CMTV. Marchi também se esquece de
mencionar na parte biográfica as ligações do líder do Chega à sociedade de
advogados Caiado e Guerreiro, ou à consultora financeira FinPartner (referido
apenas en passant já noutro capítulo).
De facto,
comparativamente, Ventura é muito mais insider do que, por exemplo, André Silva
do PAN, ou mesmo do que Carlos Guimarães Pinto da Iniciativa Liberal, ambos
realmente desconhecidos do grande público e dos tradicionais circuitos de poder
político-partidário.
No que concerne
ao percurso político, o autor centra-se na carreira política de André Ventura,
mas unicamente do ponto de vista dele e dos que lhe são próximos. Com efeito,
Ventura saiu do PSD em outubro de 2018, mas Riccardo Marchi não entrevista um
único dirigente deste partido para ouvir o outro lado da história. Nas eleições
europeias de 2019, o Chega/Basta aliou-se ao PPM e ao movimento Dem-21. O autor
também não considerou relevante falar com ninguém destas forças políticas para
explicar as razões do desfecho da coligação.
E aqui chegamos
ao real propósito do livro, a saber, a legitimação do partido e do líder do
ponto de vista político. Estamos perante um partido que não é racista, nem de
extrema-direita, mas sim, tal como indica o título do livro, uma nova direita
anti-sistema. O facto de André Ventura ter politizado o tema dos ciganos em
Loures, acusando toda uma comunidade por comportamentos individuais, é visto
como uma justa oposição dos cidadãos comuns à subsidiodependência; os repetidos
ataques a Katar Moreira são descartados como “provocações”; os posts racistas
de dirigentes do Chega, desculpados com o crescimento desordenado do partido; a
infiltração de membros de grupos de extrema-direita, um mero acaso a resolver,
pois todos estão de boa fé. Marchi cita estudos em que se menciona que nas
eleições legislativas de 2019 o Chega teve mais êxito em círculos onde a
comunidade cigana ou a imigração estarão mais presentes. Isto, no entanto, não
o leva a retirar a ilação que o apelo de Ventura poderá dever-se a ter jogado a
carta da discriminação racial e étnica. Apenas afirma que nos estatutos o
partido se afirma como não sendo racista, pelo que o partido não é racista.
Quanto à questão
da extrema-direita, o trabalho também é subtil. Como explica o autor, todo o
ideário do partido se fica a dever a dois indivíduos, Jorge Castela e Diogo
Pacheco de Amorim, dissociando assim o líder das ideias programáticas. Ora, o
programa de 2019 defendia, entre outras coisas, o fim do Sistema Nacional de
Saúde e da Educação pública. Propunha o combate à imigração ilegal, uma Europa
das nações e soberanista, defendia a família tradicional e o combate à
ideologia de género. Tendo eu codificado o posicionamento do PNR ao longo de
vários atos eleitorais passados, não vejo diferenças sérias entre o programa do
Chega e do PNR. Teria sido útil que Marchi tentasse fazer o mesmo exercício
para 2019 no livro, mas isso não acontece.
Talvez o autor pudesse fazer um esforço para fazer o
teste do pato: se parece um pato, nada como um pato e grasna como um pato,
provavelmente é um pato. Mas isso nunca acontece ao longo do livro
Já no mês
passado, em Julho, o Chega aderiu ao grupo europeu Identidade e Democracia, que
integra o partido de Marine Le Pen e a Lega de Salvini. Logo Ventura se
apressou a dizer que havia nesse grupo uns partidos mais radicais que outros,
mas que o Chega não era de extrema-direita. Marchi seguramente argumentará que
estes partidos italiano e francês também não são de extrema-direita, mas apenas
populistas de direita. No entanto, os casos húngaro e polaco mostram o
contrário.
Talvez o autor
pudesse fazer um esforço para fazer o teste do pato: se parece um pato, nada
como um pato e grasna como um pato, provavelmente é um pato. Mas isso nunca
acontece ao longo do livro, pois estamos perante um exercício panegírico ao
Chega. É pouco para um cientista social, realmente, quer seja de história ou de
ciência política. Mas chega perfeitamente como um panfleto partidário.

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