EDITORIAL
Perfilados de medo
O medo, que não toldou o enorme grupo de portugueses que
manteve o país a funcionar normalmente enquanto a outra parte se confinava, vai
ser assassino para a economia.
ANA SÁ LOPES
17 de Maio de
2020, 9:14
Os números em
Portugal da evolução da covid-19 no pós-confinamento podem ser “encorajadores”,
como diz o Governo. A progressão de novos infectados mantém-se baixa, a
possibilidade de cada novo “positivo” infectar outro, também. Mas o prolongado
confinamento exacerbou aquilo que passou a ser, agora, o inimigo número um do
regresso a qualquer “novo normal” e da essencial retoma económica: o medo
paralisante.
O confinamento
foi fácil de instituir porque os portugueses estavam genuinamente
aterrorizados. Com uma ou outra excepção, não fizeram como os ingleses, que mal
viam uma nesga de sol corriam a encher parques sem qualquer distanciamento
social. Os britânicos têm talvez a pior taxa da Europa em número de mortos, e o
medo português protegeu-nos. Continua a proteger-nos. Vale a pena lembrar que,
antes de existir estado de emergência e de o Governo decretar o confinamento,
todos os portugueses que podiam já se tinham autoconfinado. Na verdade, ninguém
precisou de ordens.
O problema do
medo é que é irracional e paralisante, e a sua velocidade de contágio é muito
superior à do vírus. Percebe-se que António Costa, ao ver o PIB contrair-se à
volta de 7%, venha para o Chiado apelar a que as pessoas façam compras. Fazer
compras é neste momento um desígnio nacional — mas como o fazer se os
portugueses se mantêm em modo pânico, com todos os que podem a resistir a sair
dos seus casulos particulares? O primeiro-ministro pode bem fazer incursões
diárias aos centros de várias cidades portuguesas a apelar à reanimação do
comércio local que vai deparar com um monstro que se revelará de mais difícil
combate do que a covid-19 — esse medo que transfigurou os nossos hábitos e
acabou a transfigurar-nos de um modo radical. Agora sabemos que sabemos
confinar-nos; ainda não sabemos que podemos viver normalmente.
O estudo da
Universidade Católica que publicamos na edição de hoje mostra de uma forma crua
como esse medo é, ele, afinal, “o novo normal”. A ideia de que a esmagadora
maioria dos portugueses não tenciona passar as férias fora de casa é um golpe
no turismo — sendo que o turismo interno era agora a esperança para que a
indústria decisiva não fosse por água abaixo.
O estudo de
opinião faz sentido se atentarmos em dois outros dados: os portugueses acham
mais provável apanhar o vírus do que perder o emprego — apesar de a crise
económica estar aí. E, ao contrário do previsto, não sentiram quaisquer
consequências psicológicas do confinamento: nem depressão, nem tristeza. Tudo
isto combinado é explosivo para qualquer retorno à normalidade. E esse medo,
que não toldou o enorme grupo de portugueses que manteve o país a funcionar
normalmente enquanto a outra parte se confinava, vai ser assassino para a
economia.
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