REPORTAGEM
Olhai senhores, esta Lisboa que parece do “antigamente,
antes do turismo ter chegado à cidade”
Aos poucos, começam a reabrir esplanadas, restaurantes,
monumentos. Há quem aproveite para redescobrir algumas das zonas mais
turísticas de Lisboa, agora vazias, mas entre os comerciantes domina a tristeza
e a preocupação com o futuro. “Agora é esperar.”
Mara Gonçalves
(Texto) e Daniel Rocha (Fotografia) 27 de Maio de 2020, 21:26
Delfim Fernandes
é o único passageiro no eléctrico 28 à saída do Martim Moniz. Pouco falta para
as 11h. Até à Graça, entram mais quatro ou cinco pessoas, todas residentes na
zona. “Agora anda-se bem”, conta Delfim. “Às vezes, vai-se sozinho. Mas já
estão a encher.”
Aos 85 anos,
Delfim “já andava no 28” quando o eléctrico ia do Rossio ao Cemitério dos
Prazeres. Viu o trajecto alargar, substituindo outras carreiras. Assistiu às
enchentes de turistas, às filas intermináveis para entrar no eléctrico mais
famoso de Lisboa. Nunca deixou de o utilizar para subir até casa, na zona das
Escolas Gerais. Mas agora, com tão poucos passageiros, é “da maneira que os
carteiristas não aparecem”, atira. Aproveita a conversa para queixar-se do
serviço: “É uma carreira mal servida de transportes. Não há com frequência.”
Eduarda Baptista
confessa que “nunca usava” o 28. “Estava sempre à pinha e com muitos turistas à
espera nas paragens.” Mas, nos últimos dias, tem aproveitado para fazer partes
do trajecto. “Agora é mesmo agradável”, compara.
Encontramos
Eduarda e António Pais Neto no Miradouro da Senhora do Monte, ambos médicos de
25 anos, naturais do Porto. Eduarda mora em Lisboa desde Janeiro, António está
de visita, adiada desde Março. Ela fez o teste à covid-19 há uns dias, deu
negativo; ele está no apoio telefónico da linha de saúde pública há uns meses,
sem contacto com doentes. “Senti que era uma boa altura para vir cá.”
À excepção do
barulho de obras vindo do fundo da rua, não se ouve mais nada. Dois homens
descansam à sombra. O quiosque ambulante de limonadas está encerrado, não há
tuk-tuks. Eduarda e António são os únicos que passeiam por aqui esta manhã.
Nas ruas, contam,
“a diferença é enorme”. Há “muito menos gente”, um ambiente “mais calmo”,
muitos espaços ainda fechados. Viram uma “Rua Augusta vazia” e têm fotografias em
Belém “sem ninguém a um domingo”, um cenário “impossível” há poucos meses. Para
António, “é agradável ver Lisboa assim despida”. “Da próxima vez que cá voltar
vai ser diferente.”
Apesar de haver
“sempre algum receio” devido à covid-19, sentem uma “sensação de segurança”,
uma vez que a maioria das pessoas que encontram tem “as atitudes que são
recomendadas pela Direcção-Geral de Saúde (DGS)”. “De uma forma geral, como não
vemos muita gente à nossa volta, também nos sentimos protegidos”, diz António.
Esplanadas vazias
No Miradouro da
Graça, encontramos apenas a equipa da esplanada a preparar a reabertura, ainda
sem data definitiva. Querem “abrir com muita calma”, diz o proprietário, João
Garção. Das 45 mesas, ficam apenas 20, com cerca de dois metros de distância
entre elas e estão a ser instalados lavatórios de acesso público para a
higienização das mãos. Aqui, e entre algumas mesas, vão existir ainda “paredes
de flores” a servir de divisória. “Estamos numa situação tão triste que temos
de alegrar um bocadinho as coisas, não é?”, contrapõe o proprietário.
O cenário não é
animador. Apesar de já se ver “muita gente na rua”, diz João Garção, há
“pouquíssimos turistas”. E aqui, na Esplanada da Igreja da Graça, o turismo
estrangeiro representava cerca de 90% dos clientes. “Se não perdermos muito já
não é mau”, aponta, prevendo “uma quebra superior a 50%” na facturação. “Não
vamos pensar em ganhar dinheiro, mas em sobreviver.”
Um universo que
contrasta com épocas anteriores: em 2018, segundo o Instituto Nacional de
Estatística, Lisboa recebia cerca de 4,5 milhões de turistas (hóspedes
estrangeiros), com o sector a gerar mais de 14,7 mil milhões de euros, segundo
um estudo da consultora Deloitte para a Associação de Turismo de Lisboa. Se
tivermos em conta apenas o número de hóspedes em alojamentos turísticos, a região
teve menos 64% de hóspedes em Março de 2020 face ao mesmo mês do ano passado.
Junto à Sé de
Lisboa, passam eléctricos praticamente vazios. É inexistente o vaivém habitual
de veículos turísticos e grupos organizados. Apesar de poder reabrir desde 18
de Março, o Quiosque Lisboa, do outro lado da rua, só retoma a actividade esta
semana. “Estivemos 70 dias fechados”, contabiliza Jackline Nabuco, em limpezas
na segunda-feira. “Desde que cheguei, fui abordada por três pessoas. Uma a
pedir informações, outra a perguntar se estávamos abertos e outra a perguntar o
que se estava a passar por não ver ninguém”, conta. O serviço, “mais voltado
para os turistas estrangeiros”, vai agora estar “focado” em “fidelizar os
portugueses”, com “preços” voltados para o cliente nacional. Jackline olha em
volta antes de regressar ao trabalho. “É uma tristeza ver a cidade assim.”
“É uma cidade
nua, uma coisa a começar”, há-de descrever Alfredo Martins, ao balcão da
marisqueira Concha D'Ouro, na Rua Augusta. Depois de dois meses e meio
encerrado, o restaurante reabriu portas esta segunda-feira, com 28 dos 96
lugares na esplanada. Refeições servidas? “Só um casal lá fora. Mais nada”, aponta.
A retoma vai demorar e a presença das máscaras de protecção “vai durar para
muito tempo”, “se não for para ficar”, vaticina.
O Castelo será
dos últimos a sentir a retoma
O cenário
repete-se por onde passemos. Já se sente algum movimento na Rua Augusta, mas as
esplanadas, rarefeitas, estão praticamente vazias. No Miradouro das Portas do
Sol reencontramos Eduarda e António e vemos outro casal, mais ninguém. Ficamos
sozinhos no Miradouro de Santa Luzia até chegar António Alves, natural do
Canadá mas a viver nesta zona de Lisboa há dez anos. “Faz lembrar um bocadinho
como era Lisboa antigamente, antes de o turismo ter chegado à cidade.”
Sentado num dos
bancos de pedra, a olhar o casario de Alfama e o Tejo lá em baixo, António
Alves espera que “os negócios reanimem” mas deseja que não se volte aos números
dos últimos anos. Tanto turismo, defende, “fez mal à cidade”. “É incrível estar
aqui a ouvir passarinhos em vez de carros e autocarros”, aponta. Pierre
Guibert, fotógrafo francês a viver em Portugal há vários anos, não esconde o
entusiasmo. Há cinco dias que anda a percorrer as ruas de Lisboa com câmaras e
um pequeno drone. Nunca tinha tido a oportunidade de registar a cidade vazia,
ainda para mais “estamos na altura dos jacarandás em flor”. “Está fantástico.”
Causa “estranheza”, assume, mas é “uma coisa incrível”. “Realmente é outro
mundo”, diz.
O contraste
esperado é absoluto entre os poucos que passeiam, e vêem no desconfinamento sem
turistas a possibilidade de redescobrir a cidade, e quem depende do turismo
estrangeiro para subsistir.
Junto ao Castelo
de São Jorge, que reabre apenas a 1 de Junho, ainda está quase tudo fechado. É
preciso subir à Rua de Santa Cruz do Castelo para encontrar duas casas abertas,
porta frente a porta. Foi pelo convívio com os vizinhos que José Luís, 71 anos,
reabriu a loja de souvenirs, Drogaria do Castelo Militar. “Nunca mudei o nome
para manter a homenagem ao meu pai”, conta, mostrando uma fotografia antiga da
loja centenária, na família desde 1948.
No sábado ainda
passaram algumas pessoas, recorda, de resto “não houve praticamente nada”. A
clientela era 98% estrangeira, agora vêem-se “muito poucos”. A verdade é que
“já estava farto de estar confinado em casa”, confessa. E aqui tem “muitos
amigos e colegas comerciantes”, são “praticamente uma família”. “Já tinha
saudades das pessoas daqui”.
Aponta para o
tecto para falar do alojamento local. “Neste prédio há duas casas. Desde
Dezembro que não há qualquer movimento.” Conhece casos de quem está a tentar
alugar os apartamentos a curto prazo “para ver se ganha algum”, mas há “muita
casa vazia” no bairro. Acredita que, antes de Agosto, “não vai haver grandes
movimentações” de turistas. Provavelmente, “só lá mais para o final do ano”.
“Agora é esperar.” É tudo o que podem fazer.
À porta da loja,
Nuno Ramos, da Gelataria Portuguesa, mesmo em frente, lança-se à conversa com
uma certeza: muitos espaços “vão fechar”. Na gelataria, foram “cinco meses de
Inverno” e agora a pandemia. “Este ano, vai ser para esquecer.” Nos Verões
anteriores, havia dias em que “não se conseguia ver as paredes [da rua] com o
turismo que existia”. Por esta altura, já vendia uns 800 gelados por semana. Na
primeira semana de reabertura vendeu 35. Acredita que esta zona será uma das
últimas a sentir a retoma. “Não é uma zona habitual de passagem, dependemos da
abertura do castelo e das fronteiras.”
Alfama sem Santos
Populares
Pelas ruas de
Alfama, só encontramos moradores e restaurantes à espera de clientes. No Largo
de São Rafael, todas as esplanadas estão vazias às 13h. “Foi uma bolha que
rebentou, nem há explicações”, lamenta Manuela Faria, 68 anos, sentada à porta
da mercearia. “Não sendo os turistas, quem é que cá mora?”, atira. “Isto estava
só para eles.” Agora, no bairro só há “casas fechadas e ninguém lá dentro”.
Antes, o turismo excessivo que invadia Alfama e roubava alojamento aos
moradores e as vivências antigas era “um terror, um pesadelo”. Mas ver o bairro
assim não é sonho melhor.
No ano passado,
por esta altura, já “ninguém parava aqui”. A marcha já estava pronta a desfilar
perante o júri, já havia arraiais e bancas montadas. Os turistas “eram muitos”
e o adiantar da festa era uma forma de os restaurantes aproveitarem para fazer
negócio. É “um grande desgosto”. “As crianças estavam sempre a pedir uma
moedinha para o Santo António e este ano nem se lembraram”, aponta.
Não, “nunca
passou pela cabeça de ninguém” viver um Junho sem Santos Populares em Alfama.
“Até telefonam a perguntar: Mas não há mesmo nada, nada?” Manuela resigna-se.
“É uma imensa tristeza, mas é preciso que tenhamos vida e saúde e para o ano,
se Deus quiser e houver condições, vamos recomeçar.”
Alejandro Lula
não demora mais do que dois minutos a comprar Pastéis de Belém. Não há fila no
balcão virado à rua. Tinha tirado férias, é a primeira vez que passeia para lá
do quarteirão onde vive. O balanço da primeira semana de reabertura é “muito
fraco” comparativamente àquilo que era o movimento habitual, assume Miguel
Clarinha, gerente da empresa. “Andamos a 20% do que era normal.” E o normal era
venderem uma média de 20 mil pastéis de nata. Por dia.
O período de
encerramento foi aproveitado para “fazer alguma remodelação nas salas” e, para
já, estão apenas a fazer atendimento ao balcão com horário reduzido (das 11h às
19h30). “Ainda não se justificou abrir o serviço de mesa porque obriga a
empresa a retirar uma série de pessoas do lay-off.” Ao início da semana, conta,
cerca de 150 dos 190 trabalhadores permaneciam no regime de lay-off. Acredita
que durante o mês de Junho deverão reabrir as salas, mas ainda não existe uma
data definida.
“Estamos a viver
o dia-a-dia”, assume o gerente. Para já, estão a estudar a hipótese de
“procurar outros meios para fazer chegar os pastéis às pessoas” e a pensar em
formas de “optimizar ainda mais o serviço”. “É isso que gostava de fazer”, diz.
“Aproveitar o mau desta situação para tentar evoluir e melhorar a empresa para,
quando houver uma retoma, estar preparado e com um serviço melhor do que
antes.”
Mais à frente, no
Mosteiro dos Jerónimos também não há filas de espera para entrar. No dia 18 de
Maio, com reabertura gratuita em Dia Internacional dos Museus, o claustro
acolheu “284 pessoas” e a Torre de Belém 117, contabiliza Dalila Rodrigues,
directora dos dois monumentos nacionais mais visitados do país.
No Mosteiro dos
Jerónimos, há agora um sentido único de visita e o período de encerramento foi
aproveitado para iniciar “o processo de requalificação de espaços”: a antiga
loja e a exposição que ocupava uma das salas do piso superior já não existem e
a água voltou a brotar da taça central do claustro, enumera a responsável. Já
na Torre de Belém, é apenas visitável a zona do baluarte, uma vez que a escada
que serve a torre é “muito apertada” e não permite “garantir as condições de
segurança necessárias”. Enquanto o acesso à torre não for reaberto, a entrada
custa 3€.
Antes da
pandemia, recorda Dalila Rodrigues, havia dias em que chegavam a receber mais
de 10 mil visitantes no Mosteiro dos Jerónimos. No total da primeira semana de
reabertura, não chegaram a 1200. Na Torre de Belém, contaram-se 698 entradas.
“A reabertura ou não das fronteiras no espaço europeu vai determinar o número
de visitantes nos próximos dois anos”, acredita. E a recuperação dos circuitos
internacionais deverá demorar “dois ou três”.
No entanto,
acrescenta, é “desejável” apostar “fortemente” na gestão sustentável do
património e encontrar um equilíbrio entre “uma procura turística que permita
gerar receita e conservar este património”, em vez de se regressar às “práticas
de insustentabilidade antes da crise pandémica”. “Desejo a procura turística
necessária para que se reconstitua o tecido socioeconómico do país. Mas as
hordas de turistas e toda a sorte de elementos predadores de turismo de massas
desejo absolutamente que não se repita e que se tenha aprendido alguma coisa”,
reitera.
Para Dalila
Rodrigues, este é o momento de os portugueses aproveitarem para revisitar os
monumentos e usufruírem de uma “fruição plena deste magnífico património” nas
melhores condições e com “muito pouco público”.
Albert Yvin vai
regressar a Belém para mostrar o claustro do Mosteiro dos Jerónimos a uma
amiga. Em Fevereiro, o francês de 68 anos mudou-se para Portugal para viver a
reforma na “cidade preferida” e tem aproveitado os últimos dias para passear
pela cidade. Tinha vindo em Novembro e encontrou uma “Lisboa agitada,
turística, barulhenta”. “Não gostei muito”, confessa. “Fez-me pensar em
Barcelona.”
Na sexta-feira
passada, viu uma “cidade tão charmosa”, um Rossio cheio de “flores perfumadas”.
“Nem pensámos no coronavírus”, admite. Esta tarde, o sentimento mudou.
Encontrou pouca gente no eléctrico, nos restaurantes, em Belém. “Achei Lisboa
um pouco triste, adormecida. Sente-se a doença, a pandemia.”
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