quarta-feira, 27 de maio de 2020

Olhai senhores, esta Lisboa que parece do “antigamente, antes do turismo ter chegado à cidade”




REPORTAGEM
Olhai senhores, esta Lisboa que parece do “antigamente, antes do turismo ter chegado à cidade”

Aos poucos, começam a reabrir esplanadas, restaurantes, monumentos. Há quem aproveite para redescobrir algumas das zonas mais turísticas de Lisboa, agora vazias, mas entre os comerciantes domina a tristeza e a preocupação com o futuro. “Agora é esperar.”

Mara Gonçalves (Texto) e Daniel Rocha (Fotografia) 27 de Maio de 2020, 21:26

Delfim Fernandes é o único passageiro no eléctrico 28 à saída do Martim Moniz. Pouco falta para as 11h. Até à Graça, entram mais quatro ou cinco pessoas, todas residentes na zona. “Agora anda-se bem”, conta Delfim. “Às vezes, vai-se sozinho. Mas já estão a encher.”

Aos 85 anos, Delfim “já andava no 28” quando o eléctrico ia do Rossio ao Cemitério dos Prazeres. Viu o trajecto alargar, substituindo outras carreiras. Assistiu às enchentes de turistas, às filas intermináveis para entrar no eléctrico mais famoso de Lisboa. Nunca deixou de o utilizar para subir até casa, na zona das Escolas Gerais. Mas agora, com tão poucos passageiros, é “da maneira que os carteiristas não aparecem”, atira. Aproveita a conversa para queixar-se do serviço: “É uma carreira mal servida de transportes. Não há com frequência.”

Eduarda Baptista confessa que “nunca usava” o 28. “Estava sempre à pinha e com muitos turistas à espera nas paragens.” Mas, nos últimos dias, tem aproveitado para fazer partes do trajecto. “Agora é mesmo agradável”, compara.

Encontramos Eduarda e António Pais Neto no Miradouro da Senhora do Monte, ambos médicos de 25 anos, naturais do Porto. Eduarda mora em Lisboa desde Janeiro, António está de visita, adiada desde Março. Ela fez o teste à covid-19 há uns dias, deu negativo; ele está no apoio telefónico da linha de saúde pública há uns meses, sem contacto com doentes. “Senti que era uma boa altura para vir cá.”

À excepção do barulho de obras vindo do fundo da rua, não se ouve mais nada. Dois homens descansam à sombra. O quiosque ambulante de limonadas está encerrado, não há tuk-tuks. Eduarda e António são os únicos que passeiam por aqui esta manhã.

Nas ruas, contam, “a diferença é enorme”. Há “muito menos gente”, um ambiente “mais calmo”, muitos espaços ainda fechados. Viram uma “Rua Augusta vazia” e têm fotografias em Belém “sem ninguém a um domingo”, um cenário “impossível” há poucos meses. Para António, “é agradável ver Lisboa assim despida”. “Da próxima vez que cá voltar vai ser diferente.”

Apesar de haver “sempre algum receio” devido à covid-19, sentem uma “sensação de segurança”, uma vez que a maioria das pessoas que encontram tem “as atitudes que são recomendadas pela Direcção-Geral de Saúde (DGS)”. “De uma forma geral, como não vemos muita gente à nossa volta, também nos sentimos protegidos”, diz António.

Esplanadas vazias
No Miradouro da Graça, encontramos apenas a equipa da esplanada a preparar a reabertura, ainda sem data definitiva. Querem “abrir com muita calma”, diz o proprietário, João Garção. Das 45 mesas, ficam apenas 20, com cerca de dois metros de distância entre elas e estão a ser instalados lavatórios de acesso público para a higienização das mãos. Aqui, e entre algumas mesas, vão existir ainda “paredes de flores” a servir de divisória. “Estamos numa situação tão triste que temos de alegrar um bocadinho as coisas, não é?”, contrapõe o proprietário.

O cenário não é animador. Apesar de já se ver “muita gente na rua”, diz João Garção, há “pouquíssimos turistas”. E aqui, na Esplanada da Igreja da Graça, o turismo estrangeiro representava cerca de 90% dos clientes. “Se não perdermos muito já não é mau”, aponta, prevendo “uma quebra superior a 50%” na facturação. “Não vamos pensar em ganhar dinheiro, mas em sobreviver.”

Um universo que contrasta com épocas anteriores: em 2018, segundo o Instituto Nacional de Estatística, Lisboa recebia cerca de 4,5 milhões de turistas (hóspedes estrangeiros), com o sector a gerar mais de 14,7 mil milhões de euros, segundo um estudo da consultora Deloitte para a Associação de Turismo de Lisboa. Se tivermos em conta apenas o número de hóspedes em alojamentos turísticos, a região teve menos 64% de hóspedes em Março de 2020 face ao mesmo mês do ano passado.

Junto à Sé de Lisboa, passam eléctricos praticamente vazios. É inexistente o vaivém habitual de veículos turísticos e grupos organizados. Apesar de poder reabrir desde 18 de Março, o Quiosque Lisboa, do outro lado da rua, só retoma a actividade esta semana. “Estivemos 70 dias fechados”, contabiliza Jackline Nabuco, em limpezas na segunda-feira. “Desde que cheguei, fui abordada por três pessoas. Uma a pedir informações, outra a perguntar se estávamos abertos e outra a perguntar o que se estava a passar por não ver ninguém”, conta. O serviço, “mais voltado para os turistas estrangeiros”, vai agora estar “focado” em “fidelizar os portugueses”, com “preços” voltados para o cliente nacional. Jackline olha em volta antes de regressar ao trabalho. “É uma tristeza ver a cidade assim.”

“É uma cidade nua, uma coisa a começar”, há-de descrever Alfredo Martins, ao balcão da marisqueira Concha D'Ouro, na Rua Augusta. Depois de dois meses e meio encerrado, o restaurante reabriu portas esta segunda-feira, com 28 dos 96 lugares na esplanada. Refeições servidas? “Só um casal lá fora. Mais nada”, aponta. A retoma vai demorar e a presença das máscaras de protecção “vai durar para muito tempo”, “se não for para ficar”, vaticina.

O Castelo será dos últimos a sentir a retoma
O cenário repete-se por onde passemos. Já se sente algum movimento na Rua Augusta, mas as esplanadas, rarefeitas, estão praticamente vazias. No Miradouro das Portas do Sol reencontramos Eduarda e António e vemos outro casal, mais ninguém. Ficamos sozinhos no Miradouro de Santa Luzia até chegar António Alves, natural do Canadá mas a viver nesta zona de Lisboa há dez anos. “Faz lembrar um bocadinho como era Lisboa antigamente, antes de o turismo ter chegado à cidade.”

Sentado num dos bancos de pedra, a olhar o casario de Alfama e o Tejo lá em baixo, António Alves espera que “os negócios reanimem” mas deseja que não se volte aos números dos últimos anos. Tanto turismo, defende, “fez mal à cidade”. “É incrível estar aqui a ouvir passarinhos em vez de carros e autocarros”, aponta. Pierre Guibert, fotógrafo francês a viver em Portugal há vários anos, não esconde o entusiasmo. Há cinco dias que anda a percorrer as ruas de Lisboa com câmaras e um pequeno drone. Nunca tinha tido a oportunidade de registar a cidade vazia, ainda para mais “estamos na altura dos jacarandás em flor”. “Está fantástico.” Causa “estranheza”, assume, mas é “uma coisa incrível”. “Realmente é outro mundo”, diz.

O contraste esperado é absoluto entre os poucos que passeiam, e vêem no desconfinamento sem turistas a possibilidade de redescobrir a cidade, e quem depende do turismo estrangeiro para subsistir.

Junto ao Castelo de São Jorge, que reabre apenas a 1 de Junho, ainda está quase tudo fechado. É preciso subir à Rua de Santa Cruz do Castelo para encontrar duas casas abertas, porta frente a porta. Foi pelo convívio com os vizinhos que José Luís, 71 anos, reabriu a loja de souvenirs, Drogaria do Castelo Militar. “Nunca mudei o nome para manter a homenagem ao meu pai”, conta, mostrando uma fotografia antiga da loja centenária, na família desde 1948.

No sábado ainda passaram algumas pessoas, recorda, de resto “não houve praticamente nada”. A clientela era 98% estrangeira, agora vêem-se “muito poucos”. A verdade é que “já estava farto de estar confinado em casa”, confessa. E aqui tem “muitos amigos e colegas comerciantes”, são “praticamente uma família”. “Já tinha saudades das pessoas daqui”.

Aponta para o tecto para falar do alojamento local. “Neste prédio há duas casas. Desde Dezembro que não há qualquer movimento.” Conhece casos de quem está a tentar alugar os apartamentos a curto prazo “para ver se ganha algum”, mas há “muita casa vazia” no bairro. Acredita que, antes de Agosto, “não vai haver grandes movimentações” de turistas. Provavelmente, “só lá mais para o final do ano”. “Agora é esperar.” É tudo o que podem fazer.

À porta da loja, Nuno Ramos, da Gelataria Portuguesa, mesmo em frente, lança-se à conversa com uma certeza: muitos espaços “vão fechar”. Na gelataria, foram “cinco meses de Inverno” e agora a pandemia. “Este ano, vai ser para esquecer.” Nos Verões anteriores, havia dias em que “não se conseguia ver as paredes [da rua] com o turismo que existia”. Por esta altura, já vendia uns 800 gelados por semana. Na primeira semana de reabertura vendeu 35. Acredita que esta zona será uma das últimas a sentir a retoma. “Não é uma zona habitual de passagem, dependemos da abertura do castelo e das fronteiras.”

Alfama sem Santos Populares
Pelas ruas de Alfama, só encontramos moradores e restaurantes à espera de clientes. No Largo de São Rafael, todas as esplanadas estão vazias às 13h. “Foi uma bolha que rebentou, nem há explicações”, lamenta Manuela Faria, 68 anos, sentada à porta da mercearia. “Não sendo os turistas, quem é que cá mora?”, atira. “Isto estava só para eles.” Agora, no bairro só há “casas fechadas e ninguém lá dentro”. Antes, o turismo excessivo que invadia Alfama e roubava alojamento aos moradores e as vivências antigas era “um terror, um pesadelo”. Mas ver o bairro assim não é sonho melhor.

No ano passado, por esta altura, já “ninguém parava aqui”. A marcha já estava pronta a desfilar perante o júri, já havia arraiais e bancas montadas. Os turistas “eram muitos” e o adiantar da festa era uma forma de os restaurantes aproveitarem para fazer negócio. É “um grande desgosto”. “As crianças estavam sempre a pedir uma moedinha para o Santo António e este ano nem se lembraram”, aponta.

Não, “nunca passou pela cabeça de ninguém” viver um Junho sem Santos Populares em Alfama. “Até telefonam a perguntar: Mas não há mesmo nada, nada?” Manuela resigna-se. “É uma imensa tristeza, mas é preciso que tenhamos vida e saúde e para o ano, se Deus quiser e houver condições, vamos recomeçar.”

Alejandro Lula não demora mais do que dois minutos a comprar Pastéis de Belém. Não há fila no balcão virado à rua. Tinha tirado férias, é a primeira vez que passeia para lá do quarteirão onde vive. O balanço da primeira semana de reabertura é “muito fraco” comparativamente àquilo que era o movimento habitual, assume Miguel Clarinha, gerente da empresa. “Andamos a 20% do que era normal.” E o normal era venderem uma média de 20 mil pastéis de nata. Por dia.

O período de encerramento foi aproveitado para “fazer alguma remodelação nas salas” e, para já, estão apenas a fazer atendimento ao balcão com horário reduzido (das 11h às 19h30). “Ainda não se justificou abrir o serviço de mesa porque obriga a empresa a retirar uma série de pessoas do lay-off.” Ao início da semana, conta, cerca de 150 dos 190 trabalhadores permaneciam no regime de lay-off. Acredita que durante o mês de Junho deverão reabrir as salas, mas ainda não existe uma data definida.

“Estamos a viver o dia-a-dia”, assume o gerente. Para já, estão a estudar a hipótese de “procurar outros meios para fazer chegar os pastéis às pessoas” e a pensar em formas de “optimizar ainda mais o serviço”. “É isso que gostava de fazer”, diz. “Aproveitar o mau desta situação para tentar evoluir e melhorar a empresa para, quando houver uma retoma, estar preparado e com um serviço melhor do que antes.”

Mais à frente, no Mosteiro dos Jerónimos também não há filas de espera para entrar. No dia 18 de Maio, com reabertura gratuita em Dia Internacional dos Museus, o claustro acolheu “284 pessoas” e a Torre de Belém 117, contabiliza Dalila Rodrigues, directora dos dois monumentos nacionais mais visitados do país.

No Mosteiro dos Jerónimos, há agora um sentido único de visita e o período de encerramento foi aproveitado para iniciar “o processo de requalificação de espaços”: a antiga loja e a exposição que ocupava uma das salas do piso superior já não existem e a água voltou a brotar da taça central do claustro, enumera a responsável. Já na Torre de Belém, é apenas visitável a zona do baluarte, uma vez que a escada que serve a torre é “muito apertada” e não permite “garantir as condições de segurança necessárias”. Enquanto o acesso à torre não for reaberto, a entrada custa 3€.

Antes da pandemia, recorda Dalila Rodrigues, havia dias em que chegavam a receber mais de 10 mil visitantes no Mosteiro dos Jerónimos. No total da primeira semana de reabertura, não chegaram a 1200. Na Torre de Belém, contaram-se 698 entradas. “A reabertura ou não das fronteiras no espaço europeu vai determinar o número de visitantes nos próximos dois anos”, acredita. E a recuperação dos circuitos internacionais deverá demorar “dois ou três”.

No entanto, acrescenta, é “desejável” apostar “fortemente” na gestão sustentável do património e encontrar um equilíbrio entre “uma procura turística que permita gerar receita e conservar este património”, em vez de se regressar às “práticas de insustentabilidade antes da crise pandémica”. “Desejo a procura turística necessária para que se reconstitua o tecido socioeconómico do país. Mas as hordas de turistas e toda a sorte de elementos predadores de turismo de massas desejo absolutamente que não se repita e que se tenha aprendido alguma coisa”, reitera.

Para Dalila Rodrigues, este é o momento de os portugueses aproveitarem para revisitar os monumentos e usufruírem de uma “fruição plena deste magnífico património” nas melhores condições e com “muito pouco público”.

Albert Yvin vai regressar a Belém para mostrar o claustro do Mosteiro dos Jerónimos a uma amiga. Em Fevereiro, o francês de 68 anos mudou-se para Portugal para viver a reforma na “cidade preferida” e tem aproveitado os últimos dias para passear pela cidade. Tinha vindo em Novembro e encontrou uma “Lisboa agitada, turística, barulhenta”. “Não gostei muito”, confessa. “Fez-me pensar em Barcelona.”

Na sexta-feira passada, viu uma “cidade tão charmosa”, um Rossio cheio de “flores perfumadas”. “Nem pensámos no coronavírus”, admite. Esta tarde, o sentimento mudou. Encontrou pouca gente no eléctrico, nos restaurantes, em Belém. “Achei Lisboa um pouco triste, adormecida. Sente-se a doença, a pandemia.”

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