COMBOIOS
Maioria dos investimentos na ferrovia não vai aumentar
velocidade dos comboios
Setenta anos depois, uma idêntica abordagem persiste nos
mesmos erros.
Projectos do Ferrovia 2020, em que estão a ser gastos
2000 milhões, são pensados sobretudo para o transporte de mercadorias e não
contemplam a diminuição dos tempos de trajecto dos comboios de passageiros,
mantendo as mesmas velocidades de há 20 anos.
Carlos Cipriano
28 de Maio de 2020, 6:38
A
Infra-estruturas de Portugal prevê um investimento de 32 milhões de euros para
modernizar a Linha do Algarve, que até já tem sinalização automática e está
electrificada num pequeno troço entre Tunes e Faro. O objectivo é
electrificá-la na sua totalidade, mas entre Tunes e Lagos esta “modernização”
vai deixar os comboios a circular à velocidade máxima de 90km/hora, tal como há
60 anos.
Este é apenas um
exemplo que se repete por todo o país. Os planos da IP para modernizar a rede
ferroviária nacional assentam sobretudo na electrificação das vias e na
instalação de sistemas modernos de sinalização e telecomunicações, mas ignoram
correcções de traçado na infra-estrutura que permitam aumentar as velocidades
dos comboios.
Ainda no Algarve,
entre Vila Real de Sto. António e Faro, onde seria possível de forma
relativamente fácil aumentar a velocidade nas rectas, os comboios circulam hoje
à velocidade máxima de 120km/hora e assim continuarão depois de a catenária ser
instalada e as velhas automotoras a diesel serem substituídas por composições
eléctricas.
Apesar disso, a
velocidade comercial aumentará, porque os comboios eléctricos têm mais poder de
aceleração e de frenagem, mas este efeito poderia ser conjugado com
intervenções na via férrea que permitiriam potenciar uma maior rapidez nas
viagens.
A Linha do Norte
é outro exemplo. Um terço da principal linha férrea do país continua por
modernizar, coexistindo troços onde se circula a 220km/hora com outros a 120
km/hora. Mas a intervenção da Infra-estruturas de Portugal para este eixo
ferroviário limita-se a pouco mais do que uma manutenção pesada, isto é, a
substituir carris, travessas e balastro por materiais novos sem qualquer
impacto no aumento da velocidade.
O troço Ovar-Gaia
é o que está em pior estado na Linha do Norte e as obras previstas, que deverão
custar perto de 70 milhões de euros, vão aumentar a segurança e a fiabilidade
da circulação dos comboios. Mas estes vão continuar a circular limitados aos
120km/hora e a 140km/hora (160km/hora para os pendulares).
O resultado é
que, para os comboios mais rápidos (intercidades e alfa pendulares) a viagem
entre Lisboa e Porto continuará a ser um rally ferroviário com constantes
acelerações e reduções de velocidade, que fazem consumir energia, desgastam o
material e não deixam tirar partido do seu potencial de rapidez.
Recuperar o tempo
perdido
Na Linha da Beira
Alta, o próprio documento do Ferrovia 2020 é explícito: uma das razões para investir
500 milhões de euros na linha que vai para a Guarda e Vilar Formoso é “eliminar
restrições de velocidade e recuperação dos tempos de trajecto dos serviços de
passageiros de longo curso”.
Isto quer dizer
que os comboios já foram mais rápidos nesta linha, mas a degradação da
infra-estrutura obrigou a reduzir a velocidade, penalizando o tempo de
percurso. A modernização, que está neste momento em fase de concurso público,
pretende repor (e não aumentar) as velocidades anteriores.
Não surpreende
assim que em 2013 o Intercidades Lisboa-Guarda demorasse 4h10 a ligar as duas
cidades e hoje demore 4h21. No entretanto, chegou a demorar a 4h30 devido à
degradação da infra-estrutura (e também ao aumento do número de paragens nas
estações).
Mas estas
questões são colaterais para o grande desígnio do Ferrovia 2020 que, herdado do
PETI 3+ do Governo de Passos Coelho, visa sobretudo aumentar a capacidade da
rede ferroviária para a circulação de comboios de mercadorias.
É o que vai
acontecer na Beira Baixa, entre a Covilhã e a Guarda. Esta linha está fechada
desde 2009 e deverá reabrir no fim deste ano. As obras, com um investimento
previsto de 85 milhões de euros, não contemplam qualquer aumento de velocidade
para além do que advém do uso de comboios eléctricos. Mesmo na secção com um
traçado mais fácil, entre Caria e Belmonte, onde estes 11 quilómetros poderiam
ser percorridos a 120km/hora sem grande incremento do investimento, a
velocidade máxima vai continuar nos 90km/hora.
O mesmo aconteceu
entre Caíde e Marco de Canaveses, onde se gastaram 17,2 milhões de euros sem
qualquer aumento de velocidade. Após obras que se arrastaram durante anos e
levaram mesmo ao encerramento da linha durante quatro meses, esta reabriu
electrificada, mas com os comboios a circular limitados às velocidades de 80 e
90km/hora.
Situação idêntica
acontece na Linha do Minho, que já está electrificada até Viana do Castelo, mas
cujo traçado não foi rectificado para aumentar velocidades. Neste caso, ainda
nem sequer foi instalada sinalização automática e a exploração continua a ser
feita totalmente dependente de meios humanos.
O aumento da
rapidez dos comboios de passageiros e a coesão territorial estão ausentes do
Ferrovia 2020. As mercadorias são o primeiro objectivo dos investimentos e se o
tráfego de passageiros ficar a ganhar será por acréscimo. É o caso do
Évora-Elvas (470 milhões de euros), que a própria IP admite ser uma linha de
alta velocidade, porque estará parametrizada para velocidades de 250km/hora,
resultado de se ter aproveitado o traçado do projecto do TGV do tempo do
Governo de Sócrates.
Mas só se
aproveitou isto. A aproximação a Elvas – que nem terá uma estação de
passageiros – é feita à velocidade
máxima de 130km/hora e entre Évora e Évora Norte a velocidade máxima é de
100km/hora.
Desde Lisboa, um
comboio para Badajoz (ou para Madrid) circulará a 60km/hora até ao Pragal, a
120km/hora (com alguns momentos a 160) até Coina, a 160km/hora até ao Pinhal
Novo, a 60km/hora para atravessar a estação de Pinhal Novo, a 220km/hora até ao
Poceirão, a 120km/hora até Casa Branca, a 200km/hora até Évora, a 100km/hora
até Évora Norte e depois 250km/hora até Elvas.
Um verdadeiro
rally devido à falta de planeamento para homogeneizar as velocidades e porque o
que verdadeiramente importa são as mercadorias.
O aumento da
velocidade dos comboios portugueses está, assim, comprometido na maioria das
linhas, porque, no futuro, qualquer tentativa para melhorar o traçado obriga a
novas obras e à deslocalização dos postes da catenária. Entre o acréscimo de
investimento actual para aumentar as velocidades e a realização desse objectivo
mais tarde vai uma diferença abissal.
No primeiro caso
beneficia-se de economias de escala, porque a obra se faz num único momento; no
segundo é necessário um novo projecto, um novo estaleiro, novas obras, novas
interrupções do serviço e alterar o que já foi feito aquando da electrificação.
Esta situação não
é nova na ferrovia nacional. O início da electrificação da rede ferroviária
portuguesa em 1956 enfermou dos mesmos erros. A Linha do Norte precisava nessa
altura de uma modernização da infra-estrutura. O bom senso aconselhava que se
procedesse a um investimento integrado que melhorasse o traçado a par da
electrificação, mas a opção foi colocar apenas os postes, a catenária e
sistemas de energia associados – um erro que durante décadas se pagaria caro pela
ineficiência da exploração numa infra-estrutura que não permitia utilizar
plenamente as maiores capacidades dos comboios eléctricos.
Setenta anos depois, uma idêntica abordagem persiste nos
mesmos erros.
Um alargado
debate e consenso nacional
O PÚBLICO
perguntou à IP por que motivo o aumento das velocidades não constituiu uma
prioridade nos investimentos ferroviários e se esta filosofia se manterá nos
projectos do PNI 2030, mas a empresa limitou-se a responder que os
investimentos em curso “resultaram de um alargado debate e consenso nacional em
torno dos investimentos previstos e dos objectivos por eles preconizados,
designadamente no que toca à potenciação do tráfego de mercadorias”.
A IP dá conta da
electrificação da rede ferroviária, “na instalação de sinalização interoperável
em mais de 500 quilómetros de linhas e na eliminação de reduções de velocidade
e aumento da fiabilidade da infra-estrutura”. Estes investimentos “permitem o
aumento das velocidades comerciais praticadas pelos operadores ferroviários,
sendo especialmente relevante a redução de tempos de percurso possibilitada
pela nova ligação Évora-Caia, pelas electrificações das linhas do Algarve,
Oeste (neste caso também relevante a construção de quase 20 quilómetros de
desvios activos), Douro e Minho e pela supressão de limitações de velocidade
nas linhas do Norte e Beira Alta”.
Por sua vez, a
CP, em resposta a perguntas do PÚBLICO, diz que o aumento das velocidades
máximas “potencia o incremento da capacidade da infra-estrutura, bem como a
melhoria da velocidade comercial, que se traduz pela redução do tempo de
viagem”.
tp.ocilbup@onairpic.solrac
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