quinta-feira, 28 de maio de 2020

Maioria dos investimentos na ferrovia não vai aumentar velocidade dos comboios



COMBOIOS
Maioria dos investimentos na ferrovia não vai aumentar velocidade dos comboios
Setenta anos depois, uma idêntica abordagem persiste nos mesmos erros.

Projectos do Ferrovia 2020, em que estão a ser gastos 2000 milhões, são pensados sobretudo para o transporte de mercadorias e não contemplam a diminuição dos tempos de trajecto dos comboios de passageiros, mantendo as mesmas velocidades de há 20 anos.

Carlos Cipriano 28 de Maio de 2020, 6:38

A Infra-estruturas de Portugal prevê um investimento de 32 milhões de euros para modernizar a Linha do Algarve, que até já tem sinalização automática e está electrificada num pequeno troço entre Tunes e Faro. O objectivo é electrificá-la na sua totalidade, mas entre Tunes e Lagos esta “modernização” vai deixar os comboios a circular à velocidade máxima de 90km/hora, tal como há 60 anos.

Este é apenas um exemplo que se repete por todo o país. Os planos da IP para modernizar a rede ferroviária nacional assentam sobretudo na electrificação das vias e na instalação de sistemas modernos de sinalização e telecomunicações, mas ignoram correcções de traçado na infra-estrutura que permitam aumentar as velocidades dos comboios.

Ainda no Algarve, entre Vila Real de Sto. António e Faro, onde seria possível de forma relativamente fácil aumentar a velocidade nas rectas, os comboios circulam hoje à velocidade máxima de 120km/hora e assim continuarão depois de a catenária ser instalada e as velhas automotoras a diesel serem substituídas por composições eléctricas.

Apesar disso, a velocidade comercial aumentará, porque os comboios eléctricos têm mais poder de aceleração e de frenagem, mas este efeito poderia ser conjugado com intervenções na via férrea que permitiriam potenciar uma maior rapidez nas viagens.

A Linha do Norte é outro exemplo. Um terço da principal linha férrea do país continua por modernizar, coexistindo troços onde se circula a 220km/hora com outros a 120 km/hora. Mas a intervenção da Infra-estruturas de Portugal para este eixo ferroviário limita-se a pouco mais do que uma manutenção pesada, isto é, a substituir carris, travessas e balastro por materiais novos sem qualquer impacto no aumento da velocidade.

O troço Ovar-Gaia é o que está em pior estado na Linha do Norte e as obras previstas, que deverão custar perto de 70 milhões de euros, vão aumentar a segurança e a fiabilidade da circulação dos comboios. Mas estes vão continuar a circular limitados aos 120km/hora e a 140km/hora (160km/hora para os pendulares).

O resultado é que, para os comboios mais rápidos (intercidades e alfa pendulares) a viagem entre Lisboa e Porto continuará a ser um rally ferroviário com constantes acelerações e reduções de velocidade, que fazem consumir energia, desgastam o material e não deixam tirar partido do seu potencial de rapidez.

Recuperar o tempo perdido
Na Linha da Beira Alta, o próprio documento do Ferrovia 2020 é explícito: uma das razões para investir 500 milhões de euros na linha que vai para a Guarda e Vilar Formoso é “eliminar restrições de velocidade e recuperação dos tempos de trajecto dos serviços de passageiros de longo curso”.

Isto quer dizer que os comboios já foram mais rápidos nesta linha, mas a degradação da infra-estrutura obrigou a reduzir a velocidade, penalizando o tempo de percurso. A modernização, que está neste momento em fase de concurso público, pretende repor (e não aumentar) as velocidades anteriores.

Não surpreende assim que em 2013 o Intercidades Lisboa-Guarda demorasse 4h10 a ligar as duas cidades e hoje demore 4h21. No entretanto, chegou a demorar a 4h30 devido à degradação da infra-estrutura (e também ao aumento do número de paragens nas estações).

Mas estas questões são colaterais para o grande desígnio do Ferrovia 2020 que, herdado do PETI 3+ do Governo de Passos Coelho, visa sobretudo aumentar a capacidade da rede ferroviária para a circulação de comboios de mercadorias.

É o que vai acontecer na Beira Baixa, entre a Covilhã e a Guarda. Esta linha está fechada desde 2009 e deverá reabrir no fim deste ano. As obras, com um investimento previsto de 85 milhões de euros, não contemplam qualquer aumento de velocidade para além do que advém do uso de comboios eléctricos. Mesmo na secção com um traçado mais fácil, entre Caria e Belmonte, onde estes 11 quilómetros poderiam ser percorridos a 120km/hora sem grande incremento do investimento, a velocidade máxima vai continuar nos 90km/hora.

O mesmo aconteceu entre Caíde e Marco de Canaveses, onde se gastaram 17,2 milhões de euros sem qualquer aumento de velocidade. Após obras que se arrastaram durante anos e levaram mesmo ao encerramento da linha durante quatro meses, esta reabriu electrificada, mas com os comboios a circular limitados às velocidades de 80 e 90km/hora.

Situação idêntica acontece na Linha do Minho, que já está electrificada até Viana do Castelo, mas cujo traçado não foi rectificado para aumentar velocidades. Neste caso, ainda nem sequer foi instalada sinalização automática e a exploração continua a ser feita totalmente dependente de meios humanos.

O aumento da rapidez dos comboios de passageiros e a coesão territorial estão ausentes do Ferrovia 2020. As mercadorias são o primeiro objectivo dos investimentos e se o tráfego de passageiros ficar a ganhar será por acréscimo. É o caso do Évora-Elvas (470 milhões de euros), que a própria IP admite ser uma linha de alta velocidade, porque estará parametrizada para velocidades de 250km/hora, resultado de se ter aproveitado o traçado do projecto do TGV do tempo do Governo de Sócrates.

Mas só se aproveitou isto. A aproximação a Elvas – que nem terá uma estação de passageiros  – é feita à velocidade máxima de 130km/hora e entre Évora e Évora Norte a velocidade máxima é de 100km/hora.

Desde Lisboa, um comboio para Badajoz (ou para Madrid) circulará a 60km/hora até ao Pragal, a 120km/hora (com alguns momentos a 160) até Coina, a 160km/hora até ao Pinhal Novo, a 60km/hora para atravessar a estação de Pinhal Novo, a 220km/hora até ao Poceirão, a 120km/hora até Casa Branca, a 200km/hora até Évora, a 100km/hora até Évora Norte e depois 250km/hora até Elvas.

Um verdadeiro rally devido à falta de planeamento para homogeneizar as velocidades e porque o que verdadeiramente importa são as mercadorias.

O aumento da velocidade dos comboios portugueses está, assim, comprometido na maioria das linhas, porque, no futuro, qualquer tentativa para melhorar o traçado obriga a novas obras e à deslocalização dos postes da catenária. Entre o acréscimo de investimento actual para aumentar as velocidades e a realização desse objectivo mais tarde vai uma diferença abissal.

No primeiro caso beneficia-se de economias de escala, porque a obra se faz num único momento; no segundo é necessário um novo projecto, um novo estaleiro, novas obras, novas interrupções do serviço e alterar o que já foi feito aquando da electrificação.

Esta situação não é nova na ferrovia nacional. O início da electrificação da rede ferroviária portuguesa em 1956 enfermou dos mesmos erros. A Linha do Norte precisava nessa altura de uma modernização da infra-estrutura. O bom senso aconselhava que se procedesse a um investimento integrado que melhorasse o traçado a par da electrificação, mas a opção foi colocar apenas os postes, a catenária e sistemas de energia associados – um erro que durante décadas se pagaria caro pela ineficiência da exploração numa infra-estrutura que não permitia utilizar plenamente as maiores capacidades dos comboios eléctricos.

Setenta anos depois, uma idêntica abordagem persiste nos mesmos erros.

Um alargado debate e consenso nacional
O PÚBLICO perguntou à IP por que motivo o aumento das velocidades não constituiu uma prioridade nos investimentos ferroviários e se esta filosofia se manterá nos projectos do PNI 2030, mas a empresa limitou-se a responder que os investimentos em curso “resultaram de um alargado debate e consenso nacional em torno dos investimentos previstos e dos objectivos por eles preconizados, designadamente no que toca à potenciação do tráfego de mercadorias”.

A IP dá conta da electrificação da rede ferroviária, “na instalação de sinalização interoperável em mais de 500 quilómetros de linhas e na eliminação de reduções de velocidade e aumento da fiabilidade da infra-estrutura”. Estes investimentos “permitem o aumento das velocidades comerciais praticadas pelos operadores ferroviários, sendo especialmente relevante a redução de tempos de percurso possibilitada pela nova ligação Évora-Caia, pelas electrificações das linhas do Algarve, Oeste (neste caso também relevante a construção de quase 20 quilómetros de desvios activos), Douro e Minho e pela supressão de limitações de velocidade nas linhas do Norte e Beira Alta”.

Por sua vez, a CP, em resposta a perguntas do PÚBLICO, diz que o aumento das velocidades máximas “potencia o incremento da capacidade da infra-estrutura, bem como a melhoria da velocidade comercial, que se traduz pela redução do tempo de viagem”.

tp.ocilbup@onairpic.solrac

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