domingo, 24 de maio de 2020

Merkel merece palmas. E Macron também / Merkel’s milestone moment




Merkel merece palmas. E Macron também

Alemanha precisa da Europa e não tenciona deixar cair a Europa

TERESA DE SOUSA
24 de Maio de 2020, 6:58

1. Ninguém quis poupar nas palavras que saudaram a inesperada iniciativa da chanceler alemã e do Presidente francês para ajudar a relançar a economia europeia. Há razões para isso. A iniciativa propõe um fundo de recuperação de 500 mil milhões de euros para apoiar os países mais afectados pela pandemia em condições que ninguém ousava imaginar apenas há meia dúzia de dias. O fundo deverá ser financiado por dívida conjunta emitida pela União Europeia. As verbas serão transferidas para os destinatários sob a forma de subvenções e não de empréstimos. Não é tanto o montante do fundo – mesmo que significativo – que impressiona. O que é totalmente novo é a decisão alemã de aceitar a emissão de dívida conjunta, mesmo que para um objectivo específico, e a sua transferência directa para os países com menor margem de manobra para enfrentar as devastadoras consequências económicas e sociais da pandemia. Representa uma ruptura com a política europeia de Berlim. É um passo de gigante em direcção a uma maior partilha de riscos, e não apenas de regras, entre os países da zona euro. É um sinal forte de que a Alemanha precisa da Europa e não tenciona deixar cair a Europa. E é a manifestação de que a França continua a ser capaz de desempenhar o seu papel fundamental de charneira entre o Norte e o Sul, fazendo a ponte entre os interesses dos países mais penalizados pela anterior crise das dívidas soberanas e uma Alemanha por vezes demasiado hesitante sobre o seu destino europeu ou sobre que destino dar ao seu poder económico. “É mais do que excepcional, não tem precedente. Paris e Berlim concordaram numa questão que era intocável para os alemães há apenas algumas semanas”, diz Tara Varma, directora do European Council on Foreign Relations de Paris.

“Nós, comentadores que ganhamos a vida a denunciar a falta de visão, as limitações e frustrações da integração europeia, das instituições de Bruxelas e dos 27 países-membros, devíamos dedicar pelo menos um minuto a aplaudir uma viragem histórica quando ela ocorre”, escreveu o muito experiente Paul Taylor, no Politico.eu

2. Merkel acabou por surpreender até os seus mais próximos aliados em Berlim e a sua decisão final apenas foi confirmada em Paris pouco antes de segunda-feira passada, quando os dois líderes apresentaram publicamente a iniciativa. Dizem fontes que lhe são próximas que a chanceler percebeu que apenas um “grande gesto” seria capaz de demonstrar, para além de qualquer dúvida, o seu total empenho na União Europeia e no euro. Ao contrário do que aconteceu na última crise, quando o seu lema foi fazer apenas o estritamente necessário para evitar a implosão do euro e sempre a coberto de outras instituições - como a Comissão, o BCE ou até o FMI -, desta vez a chanceler foi muito além do seu habitual comportamento. Porquê? Porque acreditou que esta crise ia, também ela, para além de qualquer outra que a Europa já enfrentou desde a guerra. Ela própria o disse várias vezes e, normalmente, a chanceler não tem o hábito de falar por falar. Porque o acórdão do Tribunal Constitucional de Karlsruhe, pondo em causa o programa de compra de activos do BCE, ameaçava precipitar a zona euro numa nova crise, se não fosse encontrada uma via orçamental comum para lhe fazer frente. E porque também é preciso fazer justiça ao seu ministro das Finanças, Olaf Scholz, membro do SPD, que teve um papel crucial na decisão final da chanceler. Foi ele que saudou, talvez com algum exagero, a iniciativa franco-alemã como o caminho para o “momento hamiltoniano da Europa”, numa referência ao primeiro secretário do Tesouro, Alexandre Hamilton, um dos “pais-fundadores” dos EUA, quando propôs aos 13 Estados fundadores assumir a respectiva dívida a nível federal.

Ainda não estamos aí nem, provavelmente, a Europa alguma vez poderá ser semelhante aos Estados Unidos. Mas isso não tira a relevância desta decisão. Não é tanto o montante do fundo de recuperação que conta, embora represente quase 4 por cento do PIB da União. Alguns cálculos efectuados pelo Financial Times e pela Economist demonstram que, por exemplo, para Itália (que será um dos maiores beneficiários), o recurso ao fundo pode reduzir o seu endividamento em 10 ou 15 por cento, mantendo-o ainda a níveis muito altos. O mais importante é a carga política do gesto da chanceler e, tão importante como isso, o relançamento do motor franco-alemão, há demasiado tempo gripado pelos desentendimentos entre Paris e Berlim sobre o funcionamento da união monetária e da própria União Europeia. A persistência de Macron e o seu europeísmo autêntico acabaram por dar frutos e isso é bom para toda a Europa. O que a Alemanha está a dizer aos mercados – e aos seus parceiros europeus - é que soluções solidárias desta natureza podem funcionar agora como no futuro perante novas crises, afastando a incerteza quanto à determinação de Berlim de fazer o que for preciso para manter o euro que é, como a própria chanceler costuma dizer, o mais sólido cimento da integração. Mas, mais ainda, o gesto de Merkel acaba por ser um desafio aos restantes governos da União sobre o seu verdadeiro empenhamento na construção de uma Europa mais integrada e mais unida, capaz de fazer face a um mundo que lhe é cada vez mais hostil. Há ainda um longo caminho a percorrer e, como sempre na História, muitas coisas podem ainda correr mal. Mas o primeiro passo está dado.

3. Como disse o primeiro-ministro português quando saudou a iniciativa franco-alemã, falta ainda convencer (pelo menos) quatro países com uma visão muito diferente da solidariedade e do interesse comum europeus, para os quais qualquer ajuda tem de ser concedida sob a forma de empréstimos e sujeita aos duros condicionalismos que foram impostos aos países que precisaram de apoio durante a crise provocada pelo crash financeiro de 2008. O espírito “punitivo” e “condescendente” que ditou a imposição de uma austeridade cega a esses países ainda não desapareceu da Haia ou de Viena. Ontem, a imprensa europeia noticiava que os quatro “frugais” – Países Baixos, Áustria, Suécia e Dinamarca – estariam a preparar uma contraproposta, o que quer dizer que ainda não baixaram os braços, apesar de terem ficado sem a sombra protectora da Alemanha. O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, o mais duro entre os duros, não se pronunciou publicamente sobre o plano franco-alemão. A primeira reacção da Suécia foi de alguma prudência – o governo de Estocolmo está dividido e sofrerá a pressão directa do grupo dos Socialistas e Democratas. Merkel não terá dificuldade em “convencer” o seu homólogo austríaco, Sebastian Kurz, cujo partido integra o PPE, onde a sua CDU é dominante. A Dinamarca é ainda uma incógnita – e um caso difícil -, apesar de ter um governo social-democrata e ter negociado um “opting-out” em relação à UEM como condição para aprovar o Tratado de Maastricht. Tal como Rutte, a primeira-ministra dinamarquesa enfrenta uma forte presença populista no Parlamento de Copenhaga e um problema mal resolvido com a imigração islâmica, agravado pela onda de refugiados da guerra das Síria. O fundo de recuperação será aprovado em conjunto com o Quadro Financeiro Plurianual – provavelmente já durante a presidência alemã da União Europeia, o que não é indiferente -, o que quer dizer que os quatro podem negociar algumas compensações neste último domínio. Mesmo assim, esses governos – como, aliás, todos os outros – vão ter de confrontar-se com uma pergunta bem mais fundamental do que os dois instrumentos financeiros destinados a enfrentar esta crise: o que querem que a Europa seja daqui a 10 anos. É este o verdadeiro significado do gesto de Angela Merkel. Que não resolve a crise de identidade do seu país, mas coloca o debate noutro patamar.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret


 EUROPE AT LARGE
Merkel’s milestone moment

German chancellor writes herself into EU history by embracing common borrowing and European solidarity.

By PAUL TAYLOR 5/19/20, 7:14 PM CET Updated 5/21/20, 5:12 AM CET

Paul Taylor, a contributing editor at POLITICO, writes the “Europe At Large” column.

PARIS — She did it!

In the twilight of her chancellorship, Angela Merkel has secured her place in the pantheon of European statesmanship by agreeing to common EU borrowing to help the countries hardest hit by the coronavirus rebuild their economies.

In so doing, she has jumped over the shadow of tight-fisted German conservatism, faced down the high priests of fiscal and monetary orthodoxy in Frankfurt and Karlsruhe, and finally practiced the mantra she preached in the 2008-2015 financial crisis: that “if the euro fails, Europe fails.”

The German chancellor’s agreement with French President Emmanuel Macron to allow the European Commission to raise €500 billion in debt to distribute in grants to stricken member countries is by any definition a landmark moment.

I bet the Dutch and their frugal fraternity will fold rather than die in a ditch to prevent European solidarity.

We commentators who earn a living skewering the myriad shortcomings, pettinesses and frustrations of European integration as practiced by the Brussels institutions and the now 27 member countries should take at least a minute to applaud a historic breakthrough when one occurs.

To be sure, it’s not a European Union agreement yet, just a Franco-German proposal.

There is plenty of fine print to be added, plenty of Dutch, Austrian, Swedish and Finnish resistance to be overcome, and plenty of predictable Polish and Hungarian objections to allowing coronavirus-stricken countries to get their snouts in the trough ahead of poorer Central European cousins to be assuaged.

Merkel is also bound to face a backlash at home among some of her own conservative supporters — including perhaps some of the candidates to succeed her — as well as from the nationalist, Euroskeptic far right. The ayatollahs of austerity are already denouncing an immoral, inflationary “transfer union through the back door.”


Perfectionists will argue, not without cause, that even €500 billion may pack too small a macroeconomic punch, given the massive depression the COVID-19 lockdown will bequeath to the European economy. But as always, it’s better to start with what is possible now than to demand the politically impossible immediately.

So, let’s savor this historic moment.

I bet the Dutch and their frugal fraternity will fold rather than die in a ditch to prevent European solidarity. Dutch Prime Minister Mark Rutte and Austrian Chancellor Sebastian Kurz could afford to grandstand noisily against EU generosity as long as they knew Germany was behind them. When the tide turns in Berlin, people will soon see who was swimming naked.


The Poles and Hungarians may be a bit harder to manage, given current confrontations with Brussels over their defiance of EU norms on the rule of law, the independence of the judiciary and the conduct of democracy.

But since Warsaw and Budapest expect to be among the greatest beneficiaries of the next long-term EU budget, it’s not in their interest to block agreement. And if they fight too hard, the French and Germans could always go outside the EU treaties and create a special purpose vehicle to fund COVID recovery in southern Europe, leaving the Central European dissidents high and dry.

The frugals and the Central Europeans made a wrong bet on Germany hanging tough. They are in a weaker position for having misread the strength of the Franco-German alliance in times of acute crisis.

So why has Merkel done this now, after 15 cautious years in office when she became notorious for a policy of small steps which critics rightly branded too little, too late? Even at the height of her power, the chancellor often argued that she didn’t have the domestic authority to take the bolder measures that others — from Nicolas Sarkozy to Barack Obama or Jean-Claude Juncker — urged on her.

First, her sure-handed management of the coronavirus crisis has given her a massive new injection of political capital, with a stratospheric domestic approval ratings, which she can afford to spend in her final year or so in office. She has nothing much to lose. Her Social Democratic coalition partners, and the Greens opposition party, are likely to back her decision.

Second, the coronavirus is such a different challenge from the eurozone debt crisis, in that the “moral hazard” argument for avoiding rewarding bad behavior simply doesn’t apply. This is not about bailing out a country that has lied about its statistics and run unsustainable fiscal policies, as Greece had in 2009.

As Mario Monti, the former Italian prime minister, put it when Italy was forced into an economically catastrophic lockdown: “This is not about la dolce vita [the good life], it’s about la vita — about life itself.”

Third, Merkel’s hand may paradoxically have been forced by the Federal Constitutional Court, which last week challenged the legality of the European Central Bank’s sovereign bond-buying program.

By giving the ECB three months to justify the “proportionality” of its policy, the Constitutional Court opened a latent constitutional crisis within the EU on top of all the other pressures bearing down on the bloc.

In appearing to challenge the supremacy of EU treaty law, and of the Court of Justice of the European Union as its sole arbiter, the Constitutional Court lobbed a hand grenade into the coronavirus crisis which, if not defused, could have undermined confidence in the survival of the euro and of the EU itself.

Berlin was under pressure act to shore up confidence and demonstrate that it would not let the red-robed judges in Karlsruhe derail European monetary solidarity. Merkel could have muddled through, as she so often has done, by sending the court a justification of the “proportionality” of the ECB. The dogs would have continued to bark, but the caravan would have limped on its way.

Merkel may just have set Europe on the road to the moral high ground as a model of interdependence and solidarity.

Instead, she decided to double down and do exactly what successive presidents of the ECB have demanded of EU governments — and especially of the bloc’s biggest and most powerful economy: use fiscal policy as well as monetary policy to fight the crisis.

In doing so, Merkel has finally delivered a German answer for which Macron has been waiting since his 2017 Sorbonne speech, when he called for a stronger, more sovereign EU.

History doesn’t often offer second chances, so we should be doubly grateful that Merkel has seized this one to lay a new foundation for deeper European solidarity.

In crossing the Rubicon of common borrowing, she has taken a giant political risk at home — one that is almost certain to land the government back in court in Karlsruhe in a year or two’s time.

But she has earned her place in the lineage of postwar leaders, from Konrad Adenauer to Willy Brandt, Helmut Schmidt and Helmut Kohl, who understood that securing a vibrant, stable Europe based on a social market economy is Germany’s supreme national interest.

As the coronavirus crisis drives the United States, China and Russia to intensify potentially fateful power and propaganda rivalries, Merkel may just have set Europe on the road to the moral high ground as a model of interdependence and solidarity.

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