A ampliação da Ordem dos Arquitectos é um projecto para a
Lisboa pós-pandemia
Arquitecto vencedor do concurso diz que é preciso pensar
“num futuro pós-covid para a cidade” porque o turismo esvaziou o centro e “a
prova de que o caminho foi errado está à vista”.
João Pedro Pincha
João Pedro Pincha
26 de Maio de 2020, 6:58
Rua a rua,
edifício a edifício, o Cais do Sodré foi mudando nos últimos anos ao ritmo do
turismo, aliando a renovação dos prédios à renovação das caras, mas uma esquina
permaneceu inalterada e degradada, em contraponto à pintura de fresco que
surgia à sua volta. As traseiras da Ordem dos Arquitectos continuam a sê-lo –
umas traseiras –, mas o projecto que acaba de ser escolhido para ali quer acabar
com essa condição menor e dar ao bairro um vislumbre do que pode ser a
arquitectura e a cidade no pós-pandemia.
A Ordem anunciou
na sexta-feira o resultado do concurso para a ampliação da sua sede e a
proposta vencedora, do arquitecto Luís Pedro Pinto, rejeita abertamente a
lavagem de cara que, diz o autor, tem caracterizado a reabilitação urbana
lisboeta. “Interessa-me muito manter a história daquelas paredes. Gosto dos
cartazes, dos grafites. Assistimos ali à volta a um discurso muito contrário a
este, o do rigor higienista, o da limpeza.”
O edifício fica
nas traseiras do Mercado da Ribeira, na esquina entre a Rua da Ribeira Nova e a
Praça Dom Luís, e está em avançado estado de degradação. Quando a Ordem lançou
o concurso, há um ano, era ponto assente que o projecto para ali não poderia
ser totalmente novo – pelo menos os arcos das portas teriam de ser mantidos. A
partir daí era uma questão de cumprir o programa: uma cafetaria/restaurante,
salas para formações e uma sala polivalente. Houve 66 propostas a concurso.
Na sua memória
descritiva, Luís Pedro Pinto mostrou ao que vinha: “À sua volta tem-se
assistido a uma rápida e expressiva requalificação do edificado: os prédios
passaram a ter ‘cara lavada’. Hoje são hotéis e apartamentos de ‘luxo’, o
Mercado da Ribeira tornou-se no food court de uma revista lifestyle e as
pessoas deram lugar a outras pessoas sentadas em tuk-tuks. Uma certa cultura
popular e underground que sempre povoou o Cais do Sodré foi-se rapidamente
afastando…”
O projecto
consiste na construção de um corpo de betão claro e curvilíneo, de forma
triangular. “Havia no programa a ideia de um mini-centro de cultura e este
projecto tenta maximizar isso ao máximo. Há no desenho a ideia de que o
edifício transpareça para fora o que é por dentro”, diz o arquitecto ao
PÚBLICO.
O júri, presidido
por Egas José Vieira (que, com Manuel Graça Dias, reabilitou os Banhos de São
Paulo onde funciona a sede da Ordem), fez-lhe muitos elogios, destacando a “sua
coesão, coerência e imagem unitária”, a “sua singularidade” e a sua “informal
leveza”. “É a proposta que melhor se adequa ao tecido urbano”, escreveram os
jurados, sublinhando o “significativo contributo para a valorização
arquitectónica, urbanística e ambiental do local”.
“A encomenda não
resolve a cidade”
Luís Pedro Pinto
trabalha hoje em nome próprio, mas durante década e meia fez parte de um
atelier com sede no Cais do Sodré, o que lhe permitiu testemunhar as muitas
mudanças por que a zona passou. “Desde 2000 até 2015 assisti a um processo
muito profundo. Era uma zona muito degradada que tinha uma cultura própria.
Hoje, Maio de 2020, no pós-covid, passamos lá e não vemos ninguém”, reflecte.
O arquitecto não
responsabiliza os seus pares – afinal, a crise na classe foi grande e o turismo
rendeu muitas encomendas. Exigia era mais aos poderes públicos. “Se estamos à
espera de que a encomenda resolva a cidade, não vai resolver. A encomenda
resolve a encomenda. O que é preciso é perceber como é que a encomenda pode
servir a cidade. A cidade é muito importante e a prova de que o caminho foi
errado está à vista no pós-covid. Tem de se adivinhar um futuro pós-covid para
a cidade.”
O seu projecto,
argumenta, aponta pistas. Obrigado a respeitar a pré-existência, que era “um
ponto-chave” do programa do concurso, Luís Pinto diz ter ido para além disso,
procurando integrar os elementos novos e velhos sem uma ruptura acentuada. “É
um projecto que quer contrariar a ‘fachadização’”, afirma. Isso consegue-se com
recurso ao betão, que “constrói todo o edifício, interiores e exteriores”. O
material deverá ser “um creme o mais claro possível, um pouco como o lioz da
cidade”, diz.
Outro ponto que
também destaca – e que salta à vista nas fotomontagens – é a manutenção das
camadas nas paredes já existentes, com os seus cartazes sobrepostos e as
pichagens. Talvez esteja a sonhar demasiado, admite, mas causa-lhe comichão a
ideia de um edifício limpo, de paredes lisas.
Com a Ordem dos
Arquitectos a meio de um processo eleitoral, cujo desfecho está marcado para
dentro de um mês, Luís Pedro Pinto espera que o projecto se torne “um desígnio
da própria Ordem” e não seja encarado como “o projecto da direcção cessante”.
O júri decidiu
atribuir o segundo lugar da competição ao consórcio Pedro Matos Gameiro e
Bugio, que propunha uma abertura para a Travessa do Carvalho que a proposta de
Luís Pedro Pinto não contempla, e o terceiro lugar a Samuel Dias Pereira, que
apostava em dar “uma visibilidade e uma identidade clara” ao edifício.
Não foram
atribuídas menções honrosas porque, explicam os jurados no relatório final,
apesar do “expressivo número de propostas a concurso”, apenas 20% tiveram uma
pontuação final acima dos 14 valores e mais de 10% das propostas tiveram menos
de 10 valores, “reveladoras de uma manifesta falta de entendimento sobre os
valores urbanos, arquitectónicos e patrimoniais em presença.”
“Nenhuma proposta
classificada abaixo dos três primeiros lugares reunia aspectos particularmente
meritórios e passíveis de serem mencionados”, conclui o júri.
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