EDITORIAL
Um pouco de tino na discussão sobre os sefarditas
Para se obter a nacionalidade, é preciso querer, sentir e
merecer sem discussão. Não podem bastar uns milhares de euros investidos numa
árvore genealógica, num parecer ou nos serviços de advogados que se
especializaram no negócio.
MANUEL CARVALHO
23 de Maio de
2020, 5:30
A discussão sobre
a concessão de nacionalidade portuguesa a descendentes de sefarditas envolve
traumas da memória histórica, preconceitos larvares da xenofobia ou emoções
bafientas do patriotismo nacionalista e tem, por isso, todos os ingredientes
para correr mal. Deixou, por exemplo, de ser possível afirmar que a
nacionalização desses descendentes se transformou num negócio especulativo. É
arriscado discutir sobre se faz sentido atribuir nacionalidade portuguesa a
membros de comunidades com uma ligação distante e remota ao país. É quase até
proibido tentar perceber se os mecanismos que ligam essas comunidades à sefarad
dos séculos XVI e XVII se baseiam em provas cabais, ou se não há o risco de
falsificação da memória.
Ponto prévio: a
lei de 2013 que abriu a oportunidade de nacionalização aos sefarditas é nos
seus princípios e nas suas finalidades de uma irrecusável justiça. Talvez por
isso foi aprovada por unanimidade e acolhida com simpatia pelos portugueses.
Mas, passaram sete anos, e é normal e desejável que o legislador faça a sua
avaliação e, eventualmente, lhe introduza correcções. Espanha, que aprovou uma lei
bastante mais exigente do que portuguesa (exigia que falassem castelhano e
tinham de receber o passaporte num registo em Espanha, por exemplo), acabou com
a concessão de nacionalidade em 2019 e em boa razão pelos mesmos motivos que
levam o parlamento a suscitar a sua reanálise: os pedidos de nacionalidade
avolumaram-se, combinando pretensões legítimas e sinceras de descendentes de
sefarditas com interesses cuja finalidade é apenas a obtenção de um passaporte
europeu, português ou lituano tanto faz.
É por isso que,
se faz todo o sentido manter aberta a nacionalidade portuguesa a descendentes
de sefarditas sem exigências discutíveis, não se pode considerar que a
exigência de uma “efectiva ligação à comunidade nacional” seja uma manifestação
de antissemitismo, como se chegou a ouvir por aí. A cidadania portuguesa pode
depender de uma vaga, porque remota, ligação a Portugal. Para se obter a
nacionalidade, é preciso querer, sentir e merecer sem discussão. Não podem
bastar uns milhares de euros investidos numa árvore genealógica, num parecer das
comunidades israelitas de Lisboa e Porto e nos serviços de advogados que se
especializaram no negócio. A culpa histórica não basta para se prescindir de
exigências similares às que são colocadas aos netos de portugueses que
pretendem a nacionalidade. Com o número de pedidos de nacionalidade de
sefarditas a disparar, há-de ser possível um equilíbrio entre a reparação
histórica e a abertura ao mundo que se exigem com os valores inerentes à
condição de nacionalidade que não se dispensam.
Sem comentários:
Enviar um comentário