quarta-feira, 20 de maio de 2020

Símbolo da resistência ao fascismo, Livraria Barata está agora em risco de fechar





LIVRARIA
Símbolo da resistência ao fascismo, Livraria Barata está agora em risco de fechar

Histórica livraria da capital, criada para vender livros proibidos pelo regime, viu as dificuldades por que já passava agravadas pela pandemia. Está agora a preparar um plano de reestruturação, com pilares na programação cultural regular e na venda online. “Se este projecto não tiver sucesso não nos parece possível [continuar].”

Cristiana Faria Moreira 19 de Maio de 2020, 18:11

José Rodrigues costuma dizer que gostava que as pessoas entrassem numa livraria como entram numa padaria ou numa gelataria. “As livrarias não fazem sentido se não entrarmos nelas de modo natural.” Como o sol que bate na calçada da Avenida de Roma, que se prolonga para o interior da Livraria Barata. Às tantas, damos por nós a olhar para as primeiras páginas dos jornais, capas de revistas e, de repente, a folhear livros.

Essa naturalidade é agora interrompida por uma pequena fila à entrada, um compasso de espera para que não se amontoem demasiadas pessoas dentro deste histórico estabelecimento. Muitas ali acorreram depois de terem ouvido as más notícias que começaram a circular por todo o lado: “A Livraria Barata está em risco de fechar.”

Quem ali entra, não quer acreditar. Ao balcão, o gerente José Rodrigues diz que é hora de levantar a cabeça. O encerramento — quase que por completo — da livraria, por dois meses, provocou uma quebra nas vendas entre 80 e 90%, deixando-os sem liquidez para fazer face às despesas. A Barata luta agora pela sua sobrevivência.

Helena Sá “não podia acreditar” quando as filhas lhe contaram que a sua livraria de sempre estaria em risco de fechar as portas. Habituou-se a comprar ali os presentes de Natal para filhos, netos e bisnetos, assistiu a lançamentos de livros. “Contava com a Barata.” Aos 88 anos, levava mais um livro para engrossar a colecção: A Aventura de Miguel Littín, Clandestino no Chile de Gabriel García Márquez.

A Livraria Barata foi sendo sempre “um sítio de encontro, reencontro e descoberta”, diz Gonçalo Albergaria, um jovem com 21 anos, que percorre aquelas estantes quase desde que começou a andar e fez daquele espaço uma “segunda casa”. “Nasci e cresci dois prédios ao lado da Barata e os meus avós viram o senhor Barata estabelecer o seu primeiro negócio. Há uma tradição familiar de fazermos as compras aqui”, conta.

Hoje estuda Literatura em Cambridge, mas quando está por Lisboa não falta um dia à livraria. “Vinha aqui todos os dias depois da escola. O prazer de ler, aliado ao cheiro e à sensação de estar aqui neste espaço, era muito importante para mim.” Tanto que, aos 11 anos, pediu aos pais para fazer voluntariado na livraria, tal era a “conexão e estima” que tinha — e tem — por este espaço.

No final do 12.º ano e início da faculdade trabalhou ali por um ano. “Trabalhava de manhã e ao final da tarde voltava para ver as coisas que tinham chegado.”

O que faz, afinal, desta livraria este espaço “único” como todos a qualificam? É o serviço “generoso”, a atenção ao cliente, a variedade, os livros que dificilmente se encontram noutro lugar, o convite nunca verbalizado a que se ali fique a folhear livros, vão elencando os clientes que na tarde de segunda-feira entravam pela livraria.

Senha e contra-senha
A Livraria Barata foi fundada em 1957 por António Barata com um propósito: vender livros proibidos pelo regime. Gonçalo Albergaria recorda a “candura” com o que o avô conta como comprava livros por “debaixo do balcão ao senhor Barata”. O atrevimento do fundador fez com que fosse detido várias vezes pela PIDE.

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Esta livraria foi por isso sempre um espaço de divulgação cultural, de liberdade de pensamento, de resistência a um sistema ditatorial. Faz parte da história de muitos lisboetas, como Maria José Pauloura, de 65 anos, que recorda também os “sinais cabalísticos”, quase “uma senha e contra-senha” que tinham de fazer para que o senhor Barata soubesse se podia dar os livros ou não. “Ele descia à cave e os livros apareciam misteriosamente. Era tradição os universitários virem aqui pedir livros e ele arranjava-nos sempre”, recorda Maria José, que na altura estudava Direito na Universidade Clássica de Lisboa.

O limbo entre cultura e pragmatismo financeiro
As dificuldades da Livraria Barata — que se manteve sempre na família — não são de agora e foram-se acentuando com as mudanças no mercado livreiro, a proliferação das grandes cadeias, do comércio online, que ameaçam as casas mais pequenas.

Com o decreto do Estado de Emergência em meados de Março, para conter a propagação da covid-19, a Barata encostou as portas aos clientes mas não as fechou: começou a vender ao postigo jornais, revistas e um outro livro ou material que o cliente pedia. Com a Cooptáxis, montou um sistema de entregas ao domicílio, foram comunicando com os clientes via telefone, email, redes sociais. No entanto, não foi o suficiente para fazer face às despesas. “A nossa actividade, uma livraria com estas características, já é sinónimo de sustentabilidade difícil. Com a covid, ficamos a olhar para nada”, diz José Rodrigues, que com a mulher, Elsa Barata, está à frente da livraria há mais de 30 anos. ​“Foi começarmos a fazer contas e a perceber que não íamos ter condições de fazer face às responsabilidade que tínhamos.”

A quebra de fornecimento de publicações periódicas obrigou-os a criar soluções internas para que os clientes não ficassem sem os seus jornais e revistas. Houve fornecedores que não facilitaram. As necessidades mais prementes passam, assim, por garantir o restabelecimento de stock. “Para nós nos reerguermos precisamos de liquidez imediata”, diz.

Face à quebra de receita, a Barata fez um pedido de layoff parcial, que está ainda por aprovar, diz José. Quanto aos apoios lançados pelo Governo para livrarias independentes, abstém-se de comentar. Mas deixa um recado: “Nós, enquanto Barata, com o problema muito acentuado pelas condições que todos estamos a viver, devíamos, nos poderes decisórios, ter acesso a com quem conversar”.

Vêem-se num limbo entre a actividade cultural que têm — que se queixam de não receber atenção — e o “pragmatismo financeiro” que os coloca como “peças de risco”. “Portanto, ficamos em terra de ninguém”, define José Rodrigues.

A pandemia assume-se agora como um “desafio” para que a Barata se renove. Para concretizar essa renovação, da qual o futuro da livraria depende, há um plano que está a ser montado pelos gerentes que visa a requalificação do espaço histórico, o lançamento de um plano cultural para 18 meses que recupere essas actividades que o espaço sempre teve.


O futuro passará também pelo lançamento de uma plataforma de e-commerce e de iniciativas que se voltem para um público mais jovem, que é, no fundo, o garante da continuidade da livraria.

Para tal, nas próximas semanas, será lançada uma campanha de crowdfunding para tentar manter o negócio a funcionar e ganhar tempo para implementar este plano de renovação. Quando for apresentada a campanha, serão também apresentados um conjunto de acções a que a angariação dará suporte e as contrapartidas que serão dadas aos doadores. “Essas contrapartidas ainda estão a ser desenvolvidas mas queremos que sejam vistas pelos doadores como um investimento e deverão ser vertidas em produtos culturais e informativos a favor dos apoiantes”.

Para breve estará também uma reunião com a Câmara de Lisboa. A Livraria Barata está distinguida pelo município no Lojas com História, o programa municipal que visa a protecção dos estabelecimentos históricos. “É possível construir um projecto em renovação para o futuro, mas é preciso que a Barata não esteja tão solitária”, apela o gerente. Do sucesso deste programa dependerá o futuro da livraria. “Se este projecto não tiver sucesso não nos parece possível [continuar].”

tp.ocilbup@arierom.anaitsirc

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