LIVRARIA
Símbolo da resistência ao fascismo, Livraria Barata está
agora em risco de fechar
Histórica livraria da capital, criada para vender livros
proibidos pelo regime, viu as dificuldades por que já passava agravadas pela
pandemia. Está agora a preparar um plano de reestruturação, com pilares na
programação cultural regular e na venda online. “Se este projecto não tiver
sucesso não nos parece possível [continuar].”
Cristiana Faria
Moreira 19 de Maio de 2020, 18:11
José Rodrigues
costuma dizer que gostava que as pessoas entrassem numa livraria como entram
numa padaria ou numa gelataria. “As livrarias não fazem sentido se não
entrarmos nelas de modo natural.” Como o sol que bate na calçada da Avenida de
Roma, que se prolonga para o interior da Livraria Barata. Às tantas, damos por
nós a olhar para as primeiras páginas dos jornais, capas de revistas e, de
repente, a folhear livros.
Essa naturalidade
é agora interrompida por uma pequena fila à entrada, um compasso de espera para
que não se amontoem demasiadas pessoas dentro deste histórico estabelecimento.
Muitas ali acorreram depois de terem ouvido as más notícias que começaram a
circular por todo o lado: “A Livraria Barata está em risco de fechar.”
Quem ali entra,
não quer acreditar. Ao balcão, o gerente José Rodrigues diz que é hora de
levantar a cabeça. O encerramento — quase que por completo — da livraria, por
dois meses, provocou uma quebra nas vendas entre 80 e 90%, deixando-os sem
liquidez para fazer face às despesas. A Barata luta agora pela sua
sobrevivência.
Helena Sá “não
podia acreditar” quando as filhas lhe contaram que a sua livraria de sempre
estaria em risco de fechar as portas. Habituou-se a comprar ali os presentes de
Natal para filhos, netos e bisnetos, assistiu a lançamentos de livros. “Contava
com a Barata.” Aos 88 anos, levava mais um livro para engrossar a colecção: A
Aventura de Miguel Littín, Clandestino no Chile de Gabriel García Márquez.
A Livraria Barata
foi sendo sempre “um sítio de encontro, reencontro e descoberta”, diz Gonçalo
Albergaria, um jovem com 21 anos, que percorre aquelas estantes quase desde que
começou a andar e fez daquele espaço uma “segunda casa”. “Nasci e cresci dois
prédios ao lado da Barata e os meus avós viram o senhor Barata estabelecer o
seu primeiro negócio. Há uma tradição familiar de fazermos as compras aqui”,
conta.
Hoje estuda
Literatura em Cambridge, mas quando está por Lisboa não falta um dia à
livraria. “Vinha aqui todos os dias depois da escola. O prazer de ler, aliado
ao cheiro e à sensação de estar aqui neste espaço, era muito importante para
mim.” Tanto que, aos 11 anos, pediu aos pais para fazer voluntariado na
livraria, tal era a “conexão e estima” que tinha — e tem — por este espaço.
No final do 12.º
ano e início da faculdade trabalhou ali por um ano. “Trabalhava de manhã e ao
final da tarde voltava para ver as coisas que tinham chegado.”
O que faz,
afinal, desta livraria este espaço “único” como todos a qualificam? É o serviço
“generoso”, a atenção ao cliente, a variedade, os livros que dificilmente se
encontram noutro lugar, o convite nunca verbalizado a que se ali fique a
folhear livros, vão elencando os clientes que na tarde de segunda-feira
entravam pela livraria.
Senha e contra-senha
A Livraria Barata
foi fundada em 1957 por António Barata com um propósito: vender livros
proibidos pelo regime. Gonçalo Albergaria recorda a “candura” com o que o avô
conta como comprava livros por “debaixo do balcão ao senhor Barata”. O
atrevimento do fundador fez com que fosse detido várias vezes pela PIDE.
Na reabertura, as
bibliotecas vão optar pelo take-away e pôr livros de quarentena
Esta livraria foi
por isso sempre um espaço de divulgação cultural, de liberdade de pensamento,
de resistência a um sistema ditatorial. Faz parte da história de muitos
lisboetas, como Maria José Pauloura, de 65 anos, que recorda também os “sinais
cabalísticos”, quase “uma senha e contra-senha” que tinham de fazer para que o
senhor Barata soubesse se podia dar os livros ou não. “Ele descia à cave e os
livros apareciam misteriosamente. Era tradição os universitários virem aqui
pedir livros e ele arranjava-nos sempre”, recorda Maria José, que na altura
estudava Direito na Universidade Clássica de Lisboa.
O limbo entre
cultura e pragmatismo financeiro
As dificuldades
da Livraria Barata — que se manteve sempre na família — não são de agora e
foram-se acentuando com as mudanças no mercado livreiro, a proliferação das
grandes cadeias, do comércio online, que ameaçam as casas mais pequenas.
Com o decreto do
Estado de Emergência em meados de Março, para conter a propagação da covid-19,
a Barata encostou as portas aos clientes mas não as fechou: começou a vender ao
postigo jornais, revistas e um outro livro ou material que o cliente pedia. Com
a Cooptáxis, montou um sistema de entregas ao domicílio, foram comunicando com
os clientes via telefone, email, redes sociais. No entanto, não foi o
suficiente para fazer face às despesas. “A nossa actividade, uma livraria com
estas características, já é sinónimo de sustentabilidade difícil. Com a covid,
ficamos a olhar para nada”, diz José Rodrigues, que com a mulher, Elsa Barata,
está à frente da livraria há mais de 30 anos. “Foi começarmos a fazer contas e
a perceber que não íamos ter condições de fazer face às responsabilidade que
tínhamos.”
A quebra de
fornecimento de publicações periódicas obrigou-os a criar soluções internas
para que os clientes não ficassem sem os seus jornais e revistas. Houve
fornecedores que não facilitaram. As necessidades mais prementes passam, assim,
por garantir o restabelecimento de stock. “Para nós nos reerguermos precisamos
de liquidez imediata”, diz.
Face à quebra de
receita, a Barata fez um pedido de layoff parcial, que está ainda por aprovar,
diz José. Quanto aos apoios lançados pelo Governo para livrarias independentes,
abstém-se de comentar. Mas deixa um recado: “Nós, enquanto Barata, com o
problema muito acentuado pelas condições que todos estamos a viver, devíamos,
nos poderes decisórios, ter acesso a com quem conversar”.
Vêem-se num limbo
entre a actividade cultural que têm — que se queixam de não receber atenção — e
o “pragmatismo financeiro” que os coloca como “peças de risco”. “Portanto,
ficamos em terra de ninguém”, define José Rodrigues.
A pandemia
assume-se agora como um “desafio” para que a Barata se renove. Para concretizar
essa renovação, da qual o futuro da livraria depende, há um plano que está a
ser montado pelos gerentes que visa a requalificação do espaço histórico, o
lançamento de um plano cultural para 18 meses que recupere essas actividades
que o espaço sempre teve.
O futuro passará
também pelo lançamento de uma plataforma de e-commerce e de iniciativas que se
voltem para um público mais jovem, que é, no fundo, o garante da continuidade
da livraria.
Para tal, nas
próximas semanas, será lançada uma campanha de crowdfunding para tentar manter
o negócio a funcionar e ganhar tempo para implementar este plano de renovação.
Quando for apresentada a campanha, serão também apresentados um conjunto de
acções a que a angariação dará suporte e as contrapartidas que serão dadas aos
doadores. “Essas contrapartidas ainda estão a ser desenvolvidas mas queremos
que sejam vistas pelos doadores como um investimento e deverão ser vertidas em
produtos culturais e informativos a favor dos apoiantes”.
Para breve estará
também uma reunião com a Câmara de Lisboa. A Livraria Barata está distinguida
pelo município no Lojas com História, o programa municipal que visa a protecção
dos estabelecimentos históricos. “É possível construir um projecto em renovação
para o futuro, mas é preciso que a Barata não esteja tão solitária”, apela o
gerente. Do sucesso deste programa dependerá o futuro da livraria. “Se este
projecto não tiver sucesso não nos parece possível [continuar].”
tp.ocilbup@arierom.anaitsirc
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