Trump abre
passagem à Turquia e enfrenta a fúria dos seus apoiantes no Senado
Presidente
norte-americano vai permitir que as tropas turcas entrem no Nordeste da Síria,
numa mudança radical da política dos EUA para a região. Senador republicano
Lindsey Graham ameaça aplicar sanções e apelar à expulsão da Turquia da NATO.
Alexandre Martins
Alexandre Martins
7 de Outubro de 2019, 20:30
Há sete meses,
quando o Presidente dos EUA declarou vitória sobre os extremistas islâmicos do
Daesh na Síria, os seus aliados curdos nessa luta sangrenta ficaram numa
situação difícil: ao mesmo tempo que recolhiam os louros por terem sido
fundamentais na derrota do temido califado, viam Donald Trump a afastar-se cada
vez mais deles e a deixá-los expostos às ameaças da Turquia. Essa aliança de
conveniência pode ter chegado ao fim esta segunda-feira, à medida que as tropas
norte-americanas começaram a recuar das suas posições no Nordeste sírio para
abrirem a porta ao avanço do Exército turco nas zonas controladas pelos curdos
– e a uma possível nova catástrofe humanitária que pode trazer de volta o
extremismo do Daesh.
A vontade da
Turquia de descer da sua fronteira e entrar no Norte da Síria não é nova, mas
passou a ser vista como inevitável quando se percebeu que o Daesh deixara de
dar trabalho às Forças Democráticas Sírias (FDS) – o exército que combateu
contra os extremistas islâmicos no Norte e no Nordeste da Síria, nos últimos
anos, e cujo sucesso acabou por servir para que os curdos decretassem uma região
autónoma sob o olhar da Turquia.
Mas era uma
questão de tempo até que Ancara decidisse intervir nas zonas controladas pelos
curdos, coladas à sua fronteira. Apesar de a milícia curda do YPG (Unidades de
Defesa do Povo) ter combatido ao lado dos norte-americanos contra o Daesh, para
os turcos trata-se de uma organização terrorista por causa dos laços com o PKK
(Partido dos Trabalhadores do Curdistão), cuja luta pela criação de um Estado
autónomo no Sudeste da Turquia fez mais de 50 mil mortos nos últimos 40 anos.
Para cumprir o
objectivo de travar a criação de um Estado curdo no Nordeste da Síria, que
poderia depois alastrar-se ao Sudeste da Turquia, o Presidente turco, Recep
Tayyip Erdogan, precisava que os norte-americanos saíssem do caminho. E foi que
aconteceu entre domingo e segunda-feira, quando um primeiro comunicado da Casa
Branca a anunciar a retirada das tropas da zona de fronteira foi confirmado
mais tarde pelo próprio Presidente dos EUA, no Twitter.
“Os curdos
lutaram connosco, mas receberam montanhas de dinheiro e de equipamento para o
fazer. Eles lutam contra a Turquia há décadas, e eu suspendi esse combate
durante quase três anos. Mas chegou a hora de sairmos destas ridículas guerras
intermináveis, muitas delas tribais, e de trazer para casa os nossos soldados”,
disse Trump, reforçando, com letras maiúsculas, uma das suas ideias centrais
sobre o envolvimento dos EUA em guerras no estrangeiro: “VAMOS COMBATER ONDE
ISSO NOS BENEFICIAR, E SÓ LUTAREMOS PARA GANHAR.”
Ao mesmo tempo, o
Presidente Erdogan dizia aos jornalistas, na Turquia, que o seu Exército – o
segundo mais poderoso da NATO, a seguir ao dos EUA – estava pronto para atacar.
“Há uma frase que costumamos dizer: podemos chegar a qualquer momento, sem
nenhum aviso. Para nós, está completamente fora de questão continuarmos a
tolerar as ameaças destes grupos terroristas”, disse o Presidente turco, citado
pelo site do canal Al-Jazira.
"Mancha na
honra"
A decisão do
Presidente Trump de ordenar um recuo das tropas norte-americanas e permitir o
avanço dos soldados turcos terá sido tomada após uma conversa telefónica com o
seu homólogo da Turquia, no domingo, depois de os dois líderes terem falhado um
encontro a sós durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Setembro. E
está a ser criticada em vários sectores da política e da vida militar
norte-americana, incluindo por figuras próximas do Presidente Trump.
“O comunicado da
Casa Branca não tem qualquer relação com os factos no terreno”, disse ao jornal
New York Times Brett McGurk, o antigo enviado especial da Casa Branca na
coligação internacional contra o Daesh. “Se a decisão for posta em prática, os
riscos para o nosso pessoal vão aumentar de forma significativa, e vai acelerar
o ressurgimento do ISIS [acrónimo em inglês para Daesh].”
Um receio
partilhado por um dos políticos mais próximos do Presidente norte-americano, o
senador Lindsey Graham, do Partido Republicano – um dos mais fervorosos
defensores do Presidente norte-americano no processo de destituição que foi
lançado pelo Partido Democrata na Câmara dos Representantes.
Numa primeira
reacção, esta segunda-feira, Graham referiu-se à decisão de abrir caminho às tropas
turcas no Nordeste da Síria como “um desastre anunciado”, e salientou quatro
consequências negativas para os EUA: “Assegura o regresso do ISIS; obriga os
curdos a alinharem-se com Assad e o Irão; destrói as relações da Turquia com o
Congresso norte-americano; e será uma mancha na honra da América, ao abandonar
os curdos.”
Sanções à Turquia
Numa decisão que
corta com o passado recente de apoio a Trump, e logo no momento mais sensível
para o Presidente norte-americano, o senador Graham anunciou que vai propor ao
Senado que aplique sanções à Turquia no caso de uma invasão da Síria, e que
recomendará a expulsão do país da NATO se as forças curdas forem atacadas.
“Espero que as
sanções contra a Turquia – se vierem a ser necessárias – sejam à prova de veto”,
afirmou Lindsey Graham, deixando o Presidente Trump numa situação difícil: ou
recua e enfrenta a fúria de Erdogan, ou mantém a sua decisão e arrisca-se a
sofrer uma derrota política num Senado com maioria do seu partido.
O senador
republicano apontou ainda o risco de os EUA perderem aliados em futuras
guerras, e disse que a decisão do Presidente Trump “envia o mais perigoso sinal
possível”: “A América não é um aliado confiável e é só uma questão de tempo até
que a China, a Rússia, o Irão e a Coreia do Norte comecem a agir de formas
muito perigosas.”
“Temos sempre de
proteger os nossos aliados, se esperamos que eles também nos protejam”,
concluiu Lindsey Graham. “Os curdos foram decisivos na nossa luta bem sucedida
contra o ISIS na Síria. Deixá-los lá para morrerem é um grande erro.”
Pouco depois, o
Presidente Trump respondeu de forma indirecta aos receios dos seus críticos,
garantindo que se a Turquia fizer algo “fora dos limites”, irá pagar por isso:
“Tal como já afirmei antes, e quero apenas reiterar, se a Turquia fizer algo
que eu, na minha grande e inigualável sabedoria, considerar fora dos limites,
irei destruir totalmente e obliterar a economia da Turquia (já o fiz antes!)”
Regresso dos refugiados
Um dos maiores
receios dos críticos da decisão do Presidente norte-americano é que o Daesh
possa levantar-se na Síria, aproveitando-se do enfraquecimento dos curdos – são
eles que gerem, com o apoio norte-americano, os campos e as prisões onde
dezenas de milhares de ex-combatentes do Daesh e seus familiares estão retidos.
Num deles, em
Al-Hol, no extremo Nordeste da Síria junto à fronteira com o Iraque, mais de 70
mil pessoas, a maioria crianças, vivem em condições deploráveis e sem saberem o
seu futuro. Segundo uma reportagem do Washington Post, os guardas curdos são
atacados com facas de cozinha, os prisioneiros leais ao Daesh aterrorizam as
mulheres, e pelo menos 300 crianças morreram num período de sete meses, entre
Dezembro de 2018 e Julho de 2019.
Esta falta de
condições faz do campo de Al-Hol um alvo privilegiado de recrutamento para o
Daesh, que pode também vir a beneficiar de possíveis ataques contra os curdos e
do fim do controlo que eles ainda exercem nos campos e nas prisões.
Para além de
querer travar os curdos, o Presidente Erdogan quer também enviar de volta para
a Síria cerca de três milhões de deslocados da guerra que vivem actualmente em
campos na Turquia – uma situação insustentável para o seu Governo, numa altura
em que os refugiados e deslocados são vistos como culpados pela fraca prestação
da economia.
Para isso, a
entrada do Exército turco no Norte da Síria tem como objectivo o
estabelecimento de uma zona livre, com pouco mais de 30 quilómetros de
profundidade e quase 500 quilómetros de largura, para onde milhões de
refugiados serão enviados.
tp.ocilbup@snitram.erdnaxela
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