Teresa de Sousa
ANÁLISE
O “Brexit” pode
ser apenas um sintoma
17 de Outubro de
2019, 7:01
1. Quando tudo
parece indicar que, finalmente, um acordo está ao alcance da mão entre a União
Europeia e o Reino Unido, depois de um desgastante processo negocial, vale a
pena deixar de olhar apenas para as árvores e tentar abarcar a floresta. Há
três anos o resultado do referendo britânico apanhou toda a gente de surpresa.
Até então, a hipótese de um país sair da União não era sequer considerada.
David Cameron não tinha pensado dois minutos sobre a possibilidade de um
resultado negativo. Nesse ano e quase em simultâneo, a Europa somou ao choque
do “Brexit”, o choque da eleição de Donald Trump. Nada voltou a ser igual,
mesmo que os governos e as instituições europeias tenham sempre bastante
dificuldade em reconhecer a realidade. A estratégia europeia resumiu-se a um
objectivo central: negociar de tal forma que dissuadisse qualquer outro país de
seguir as pisadas do Reino Unido. Inicialmente, o debate foi sobre uma saída
suave, à norueguesa, em que o Reino Unido se manteria no Mercado Único,
tornando mais fácil a resolução da fronteira entre as duas partes da Irlanda.
Rapidamente se verificou que não era essa a intenção da maioria do Partido
Conservador, desejoso de cortar todas as amarras com o continente. Prevaleceu
um hard Brexit que tornou mais difícil a questão irlandesa. Theresa May
conseguiu negociar o backstop, que Boris Johnson tratou de pôr imediatamente em
causa, passando a brandir a ameaça constante de uma saída sem acordo. A União
Europeia também se mostrou intransigente, em nome da inviolabilidade do Mercado
Interno e na defesa dos interesses de Dublin.
2. Ao longo do
tempo, somaram-se os cenários e os prognósticos, quase todos de mera incidência
económica. Previram-se catástrofes para a economia britânica, que nunca
aconteceram e não se espera que venham a acontecer. Chegada a hora da verdade,
convém olhar para as coisas com distância e realismo. Em primeiro lugar, a
previsão da catástrofe era manifestamente exagerada. A economia britânica
aguentou bem as consequências da saída, que foram sendo antecipadas nas
decisões de empresas e de consumidores. Evitou a recessão. Mantém uma taxa de
desemprego muito baixa e o problema das empresas é a falta de mão-de-obra e não
a necessidade de despedir, mesmo que isso tenha acontecido em alguns sectores
específicos como a indústria automóvel. O investimento continua a fluir e a
City continuará a contar como uma das maiores praças financeiras do mundo. O
Reino Unido é a quinta economia mundial, empatada com a França. O sector dos
serviços é dominante e tem, em boa parte, dimensão mundial. O comércio com a
Europa representa cerca de 50% das importações e das exportações – um valor
bastante inferior ao da generalidade das economias europeias, muito mais
dependentes do mercado interno. Os britânicos vão atravessar momentos difíceis,
mas os cálculos sobre a perda de poder de compra a dez anos não são, longe
disso, assustadores. Vão ter de negociar novos acordos de comércio com as
grandes economias mundiais, mas a sua economia continua a ser atractiva – pela
dimensão e pela flexibilidade. Têm algumas das universidades mais prestigiadas
do mundo e lideram em muitos domínios da I&D.
3. Mas a questão
fundamental não é a economia, mesmo que seja ela que domina a maioria das
análises. O “Brexit” não é um fenómeno isolado, atribuível apenas ao proverbial
eurocepticismo britânico. É um sintoma. Se correr relativamente bem, haverá
provavelmente outros países a equacionar a mesma possibilidade. Não é uma
fatalidade. Mas se a Europa não conseguir vencer a crise interna que a está a
destruir aos poucos, reencontrando um propósito comum, o caminho da
fragmentação dos últimos anos agravar-se-á. A fractura Leste-Oeste não pára de
aumentar. O desafio migratório não encontra uma resposta conjunta. O abandono
americano da liderança mundial e da aliança transatlântica deixa-a indefesa
perante um mundo que é cada vez mais o resultado da relação de forças entre
grandes potências. A retirada dos EUA do Médio Oriente, abre espaço à Rússia e
deixa a Europa sem capacidade de resposta. A saída do Reino Unido enfraquece
ainda mais a sua capacidade de defesa, deixando a França sozinha, enquanto
Macron tenta pressionar Berlim a assumir maiores responsabilidades – tarefa quase
sempre inglória. Sem os EUA e o Reino Unido, os países do arco atlântico – como
Portugal, Dinamarca ou Holanda – perdem influência, obrigando-os provavelmente
a terem de fazer das fraquezas forças para recriar um eixo atlântico que
compense em parte a ausência britânica. A Alemanha preocupar-se-á cada vez mais
com a sua vizinhança no Leste e no Centro da Europa. A França tentará preservar
o seu papel de charneira. Mas encontrar novos equilíbrios de poder não será
fácil
4. Basta olhar
para a intervenção militar da Turquia contra os curdos da Síria, aproveitando a
retirada americana, para se ter a antevisão de um futuro que é bastante
assustador. Sem capacidade para pressionar Ancara, os europeus assistem
impotentes ao avanço do eixo Moscovo-Damasco-Teerão para ocupar o espaço
deixado vazio pela América. Mas o que veremos a partir de hoje em Bruxelas,
numa cimeira europeia dedicada ao “Brexit”, será uma Europa profundamente
dividida e impotente perante o que a rodeia. Da Síria ao Irão, passando pela
Rússia e incluindo as negociações ferozes sobre como distribuir um orçamento
comunitário que pode nem chegar a ser um por cento do PIB europeu. Para aqueles
que se agarram à ideia de que, sem o Reino Unido, os europeus ficariam mais
unidos, chegou talvez o tempo de acordarem.
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