A cidade do
futuro será uma fantasia verde só para ricos?
Ainda ninguém
sabe. Em Copenhaga houve promessas de incluir todos, de fazer uma transição
justa da economia linear para a economia verde. Mas também se ouviu o desespero
de quem não sabe se vai sobreviver ao dia seguinte.
João Pedro Pincha
João Pedro Pincha
12 de Outubro de 2019, 8:19
Quem quiser ter
uma ideia do que podem ser as cidades do futuro encontrará em Copenhaga bons
exemplos. Toda a zona portuária, onde até há escassos anos atracavam navios de
carga, é hoje um enorme bairro onde estão a surgir milhares de casas, espaços
públicos, escritórios.
A mudança é mais
notória na parte norte do porto, Nordhavn, que ainda “há cinco ou seis anos
estava cheia de silos industriais”, explica Rune Boserup, do gabinete de
arquitectura que desenhou o plano geral para a zona. “Esta área estava fora do
mapa mental dos moradores de Copenhaga. Agora é um bairro vibrante, com 14 mil
residentes e muitos negócios”.
Enquanto fala, o
barco que nos transporta afasta-se lentamente da novíssima Escola Internacional
de Copenhaga, um grande edifício forrado a painéis solares azuis e verdes que
lhe dão um certo ar de castelo de cartas. “O lema da escola é educar com uma
perspectiva global e tornar o amanhã mais sustentável”, diz Mads Mandrup
Hansen, arquitecto, explicando que isso o levou a adoptar tecnologia de ponta
para garantir eficiência energética e baixas emissões poluentes.
Mais à frente, o
barco abranda junto ao edifício da ONU, em forma de estrela, com 14 mil painéis
solares no telhado, um sistema de aquecimento que usa a água do mar e persianas
em todas as janelas, o que permite a este imóvel uma poupança energética a
rondar os 40%. “Obviamente que isto custa mais do que uma construção normal”,
admite Mads Mandrup. O colega Rune desabafa: “Nordhavn agora é uma zona onde
moram muitas pessoas ricas.”
Copenhaga quer
tornar-se a primeira cidade do mundo sem emissões de dióxido de carbono em 2025
e isso implica, entre outras coisas, construir edifícios energeticamente
sustentáveis, que, para já, só são acessíveis a certos bolsos.
Nos últimos três
dias, dezenas de autarcas de todo o mundo, empresários e activistas reuniram-se
em Copenhaga para discutir como preparar as cidades para os impactos das
alterações climáticas. Expressões como “economia verde”, “transição justa” e
“justiça climática” foram repetidas inúmeras vezes em todos os painéis do Fórum
Mundial de Autarcas C40, uma aliança de cidades pelo clima. Mas ficaram bem
patentes as diferenças entre várias latitudes.
Wasim Akhtar,
presidente da câmara de Karachi, capital do Paquistão, atirou a pedra ao
charco. “Tenho uma situação alarmante na minha cidade. Vivem lá 30 milhões de
pessoas. Não há água potável, há lixo por todo o lado, o sistema de esgotos
colapsou. E 68% dos esgotos da cidade vão parar directamente ao mar, sem
tratamento.”
Na sua
mesa-redonda estavam autarcas de Joanesburgo, Veneza e Auckland. Ficaram todos
em silêncio por um bocado. “A C40 tem de fazer acordos especiais para estas
cidades que não têm capacidade financeira e técnica. Eu quero qualquer coisa da
C40. Alguma fórmula, alguma decisão”, pediu Wasim Akhtar.
Fundada pelo
ex-autarca de Nova Iorque e filantropo Michael Bloomberg, a aliança C40
congrega 94 cidades de diferentes geografias. Em Copenhaga, o novo presidente
da organização, Eric Garcetti, autarca de Los Angeles, lançou um “Pacto Verde
Global”, cujo principal objectivo é limitar o aquecimento do planeta a 1,5
graus e garantir a tal “transição justa”, procurando assegurar que não são os
mais pobres a pagar a factura.
Sobreviver ao dia
seguinte
“Preservação
ecológica e crescimento económico não são contraditórios”, afirmou Garcetti.
Mais tarde, Al Gore diria que as energias renováveis são as maiores
responsáveis pela criação de emprego actualmente e que, portanto, esta
transição é uma oportunidade para reduzir desigualdades.
Só que o caminho,
além de longo, está repleto de obstáculos. “Quando as pessoas não têm os meios
básicos para sobreviver, ninguém está preocupado com as alterações climáticas.
Querem é soluções para o dia seguinte”, disse Joy Belmonte, autarca de Quezon
City, um enorme subúrbio de Manila, nas Filipinas. “Em Quezon as pessoas não
têm uma vida muito próspera e, por isso, as alterações climáticas são um
assunto muito secundário, a menos que sintam um impacto real nas suas vidas.”
Foi o que
aconteceu em 2009. “Tivemos três dias seguidos de chuva muito intensa, como
nunca tinha acontecido. E quando a água secou, ficámos espantados porque a
cidade estava coberta de plástico”, relatou Belmonte. Esse acontecimento serviu
de pretexto para banir o uso de sacos de plástico em 2012.
“Foi preocupante
ver alguns painéis em que se falou da transição justa só com pessoas brancas
dos países ricos”, disse ao PÚBLICO Jamie Margolin, uma activista climática de
17 anos com quem todos os autarcas quiseram tirar fotografias. Margolin lidera
o movimento Zero Hour e tornou-se uma espécie de Greta Thunberg dos Estados
Unidos, incentivando jovens a protestarem e a pressionarem os governos pelo
clima.
“Um futuro verde
é o único possível, mas tem de ser para todos, não pode ser apenas uma fantasia
para os ricos”, afirmou. “Só teremos uma transição justa se tivermos todas as
pessoas sentadas à mesma mesa e a serem ouvidas. As decisões não podem ser
hierarquizadas, dos países ricos do norte para os países pobres do sul.”
Cidades para quem?
As preocupações
das cidades europeias e americanas contrastam com as das cidades africanas e
asiáticas. “Seattle cresceu muito, é uma das cidades que mais cresce na
América. As pessoas que ganham o ordenado mínimo têm sido empurradas cada vez
para mais longe, para sítios onde os transportes não são bons e, por isso, têm
de vir de carro trabalhar”, relatou Jenny Durkan, presidente da câmara daquela
cidade. “Eu quero pôr portagens [congestion pricing] em Seattle, mas sei que ao
fazê-lo vou prejudicar as pessoas mais pobres, as que precisam mesmo de chegar
à cidade de carro.”
Tal como
Copenhaga, inúmeras metrópoles por todo o mundo estão a trabalhar para ter mais
espaços verdes, mais ciclovias e menos espaço para os automóveis. “Os preços
das casas aumentam junto aos parques e jardins”, reconheceu Rafal Trzaskowski,
presidente da câmara de Varsóvia, na Polónia. Solução? Fazer mais jardins.
“Para acabar com as desigualdades nas cidades os autarcas têm de pôr árvores
onde há cimento, criar jardins. Se queremos ter uma cidade para todos temos de
ter espaços verdes públicos”, vaticinou.
Fernando Medina,
que participava na mesma conversa, focou outro aspecto. “Obviamente que os
preços das casas vão subir à volta de um parque. Mas vou deixar de construir o
parque por causa disso? Não, tenho é de ter casas públicas. Se a habitação
estiver apenas entregue ao mercado, não vamos conseguir”, disse o autarca
lisboeta.
Vandana Shiva,
activista e filósofa indiana, dramatizou. Perfila-se um futuro “em que uns são
descartáveis e os outros fogem para Marte”, declarou. “A fuga é uma
irresponsabilidade dos super-ricos. A Terra fornece o suficiente para todos,
mas não para a ganância de alguns.”
Na sua
comunicação ao plenário, o secretário-geral da ONU pediu aos autarcas que
coadunem os regulamentos de urbanismo aos princípios do Acordo de Paris e aos
Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. “Temos de ter as políticas sociais
necessárias para acautelar os interesses das pessoas que vão inevitavelmente
ser afectadas pelas alterações climáticas”, disse António Guterres.
O relógio move-se
depressa. Mais de 100 grandes cidades comprometeram-se a atingir o pico de
emissões até 2020 e a reduzi-las para metade até 2030. “Esta vai ser a década
mais importante da História da Humanidade”, proclamou Eric Garcetti. “Seremos a
geração que põe os lucros à frente das pessoas?” Em Copenhaga, jurou-se que
não.
O PÚBLICO viajou
para Copenhaga a convite da Câmara Municipal de Lisboa
tp.ocilbup@ahcnip.oaoj
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