segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A cidade do futuro será uma fantasia verde só para ricos?



A cidade do futuro será uma fantasia verde só para ricos?
Ainda ninguém sabe. Em Copenhaga houve promessas de incluir todos, de fazer uma transição justa da economia linear para a economia verde. Mas também se ouviu o desespero de quem não sabe se vai sobreviver ao dia seguinte.

João Pedro Pincha
João Pedro Pincha 12 de Outubro de 2019, 8:19

Quem quiser ter uma ideia do que podem ser as cidades do futuro encontrará em Copenhaga bons exemplos. Toda a zona portuária, onde até há escassos anos atracavam navios de carga, é hoje um enorme bairro onde estão a surgir milhares de casas, espaços públicos, escritórios.

A mudança é mais notória na parte norte do porto, Nordhavn, que ainda “há cinco ou seis anos estava cheia de silos industriais”, explica Rune Boserup, do gabinete de arquitectura que desenhou o plano geral para a zona. “Esta área estava fora do mapa mental dos moradores de Copenhaga. Agora é um bairro vibrante, com 14 mil residentes e muitos negócios”.

Enquanto fala, o barco que nos transporta afasta-se lentamente da novíssima Escola Internacional de Copenhaga, um grande edifício forrado a painéis solares azuis e verdes que lhe dão um certo ar de castelo de cartas. “O lema da escola é educar com uma perspectiva global e tornar o amanhã mais sustentável”, diz Mads Mandrup Hansen, arquitecto, explicando que isso o levou a adoptar tecnologia de ponta para garantir eficiência energética e baixas emissões poluentes.

Mais à frente, o barco abranda junto ao edifício da ONU, em forma de estrela, com 14 mil painéis solares no telhado, um sistema de aquecimento que usa a água do mar e persianas em todas as janelas, o que permite a este imóvel uma poupança energética a rondar os 40%. “Obviamente que isto custa mais do que uma construção normal”, admite Mads Mandrup. O colega Rune desabafa: “Nordhavn agora é uma zona onde moram muitas pessoas ricas.”

Copenhaga quer tornar-se a primeira cidade do mundo sem emissões de dióxido de carbono em 2025 e isso implica, entre outras coisas, construir edifícios energeticamente sustentáveis, que, para já, só são acessíveis a certos bolsos.

Nos últimos três dias, dezenas de autarcas de todo o mundo, empresários e activistas reuniram-se em Copenhaga para discutir como preparar as cidades para os impactos das alterações climáticas. Expressões como “economia verde”, “transição justa” e “justiça climática” foram repetidas inúmeras vezes em todos os painéis do Fórum Mundial de Autarcas C40, uma aliança de cidades pelo clima. Mas ficaram bem patentes as diferenças entre várias latitudes.

Wasim Akhtar, presidente da câmara de Karachi, capital do Paquistão, atirou a pedra ao charco. “Tenho uma situação alarmante na minha cidade. Vivem lá 30 milhões de pessoas. Não há água potável, há lixo por todo o lado, o sistema de esgotos colapsou. E 68% dos esgotos da cidade vão parar directamente ao mar, sem tratamento.”

Na sua mesa-redonda estavam autarcas de Joanesburgo, Veneza e Auckland. Ficaram todos em silêncio por um bocado. “A C40 tem de fazer acordos especiais para estas cidades que não têm capacidade financeira e técnica. Eu quero qualquer coisa da C40. Alguma fórmula, alguma decisão”, pediu Wasim Akhtar.

Fundada pelo ex-autarca de Nova Iorque e filantropo Michael Bloomberg, a aliança C40 congrega 94 cidades de diferentes geografias. Em Copenhaga, o novo presidente da organização, Eric Garcetti, autarca de Los Angeles, lançou um “Pacto Verde Global”, cujo principal objectivo é limitar o aquecimento do planeta a 1,5 graus e garantir a tal “transição justa”, procurando assegurar que não são os mais pobres a pagar a factura.

Sobreviver ao dia seguinte
“Preservação ecológica e crescimento económico não são contraditórios”, afirmou Garcetti. Mais tarde, Al Gore diria que as energias renováveis são as maiores responsáveis pela criação de emprego actualmente e que, portanto, esta transição é uma oportunidade para reduzir desigualdades.

Só que o caminho, além de longo, está repleto de obstáculos. “Quando as pessoas não têm os meios básicos para sobreviver, ninguém está preocupado com as alterações climáticas. Querem é soluções para o dia seguinte”, disse Joy Belmonte, autarca de Quezon City, um enorme subúrbio de Manila, nas Filipinas. “Em Quezon as pessoas não têm uma vida muito próspera e, por isso, as alterações climáticas são um assunto muito secundário, a menos que sintam um impacto real nas suas vidas.”

Foi o que aconteceu em 2009. “Tivemos três dias seguidos de chuva muito intensa, como nunca tinha acontecido. E quando a água secou, ficámos espantados porque a cidade estava coberta de plástico”, relatou Belmonte. Esse acontecimento serviu de pretexto para banir o uso de sacos de plástico em 2012.

“Foi preocupante ver alguns painéis em que se falou da transição justa só com pessoas brancas dos países ricos”, disse ao PÚBLICO Jamie Margolin, uma activista climática de 17 anos com quem todos os autarcas quiseram tirar fotografias. Margolin lidera o movimento Zero Hour e tornou-se uma espécie de Greta Thunberg dos Estados Unidos, incentivando jovens a protestarem e a pressionarem os governos pelo clima.

“Um futuro verde é o único possível, mas tem de ser para todos, não pode ser apenas uma fantasia para os ricos”, afirmou. “Só teremos uma transição justa se tivermos todas as pessoas sentadas à mesma mesa e a serem ouvidas. As decisões não podem ser hierarquizadas, dos países ricos do norte para os países pobres do sul.”

Cidades para quem?
As preocupações das cidades europeias e americanas contrastam com as das cidades africanas e asiáticas. “Seattle cresceu muito, é uma das cidades que mais cresce na América. As pessoas que ganham o ordenado mínimo têm sido empurradas cada vez para mais longe, para sítios onde os transportes não são bons e, por isso, têm de vir de carro trabalhar”, relatou Jenny Durkan, presidente da câmara daquela cidade. “Eu quero pôr portagens [congestion pricing] em Seattle, mas sei que ao fazê-lo vou prejudicar as pessoas mais pobres, as que precisam mesmo de chegar à cidade de carro.”

Tal como Copenhaga, inúmeras metrópoles por todo o mundo estão a trabalhar para ter mais espaços verdes, mais ciclovias e menos espaço para os automóveis. “Os preços das casas aumentam junto aos parques e jardins”, reconheceu Rafal Trzaskowski, presidente da câmara de Varsóvia, na Polónia. Solução? Fazer mais jardins. “Para acabar com as desigualdades nas cidades os autarcas têm de pôr árvores onde há cimento, criar jardins. Se queremos ter uma cidade para todos temos de ter espaços verdes públicos”, vaticinou.

Fernando Medina, que participava na mesma conversa, focou outro aspecto. “Obviamente que os preços das casas vão subir à volta de um parque. Mas vou deixar de construir o parque por causa disso? Não, tenho é de ter casas públicas. Se a habitação estiver apenas entregue ao mercado, não vamos conseguir”, disse o autarca lisboeta.

Vandana Shiva, activista e filósofa indiana, dramatizou. Perfila-se um futuro “em que uns são descartáveis e os outros fogem para Marte”, declarou. “A fuga é uma irresponsabilidade dos super-ricos. A Terra fornece o suficiente para todos, mas não para a ganância de alguns.”

Na sua comunicação ao plenário, o secretário-geral da ONU pediu aos autarcas que coadunem os regulamentos de urbanismo aos princípios do Acordo de Paris e aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. “Temos de ter as políticas sociais necessárias para acautelar os interesses das pessoas que vão inevitavelmente ser afectadas pelas alterações climáticas”, disse António Guterres.

O relógio move-se depressa. Mais de 100 grandes cidades comprometeram-se a atingir o pico de emissões até 2020 e a reduzi-las para metade até 2030. “Esta vai ser a década mais importante da História da Humanidade”, proclamou Eric Garcetti. “Seremos a geração que põe os lucros à frente das pessoas?” Em Copenhaga, jurou-se que não.

O PÚBLICO viajou para Copenhaga a convite da Câmara Municipal de Lisboa

tp.ocilbup@ahcnip.oaoj

Sem comentários: