quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Fim do carvão em Portugal: vitória com pontas soltas



João Camargo
OPINIÃO
Fim do carvão em Portugal: vitória com pontas soltas

As centrais a carvão do Pego e de Sines são responsáveis por até 20% das emissões nacionais de gases com efeito de estufa. O seu encerramento é um passo em frente na efectiva descarbonização.

30 de Outubro de 2019, 4:21

O que era impossível já não é: na tomada de posse do Governo, António Costa anunciou que as centrais a carvão de Sines e do Pego encerrarão até ao final da legislatura. Esta é uma grande vitória do movimento pela justiça climática em Portugal e a primeira grande conquista das greves climáticas estudantis (em cujos manifestos sempre esteve esta reivindicação).

O Parlamento foi empurrado pelas ruas para a declaração de emergência climática, mas o anterior governo recusou-se a efectivar esta declaração. Na altura, o ministro Matos Fernandes disse mesmo que se Pego e Sines fechassem “metade do país ficaria às escuras”. Felizmente não foi preciso esperar nem um ano para que esta mentira do actual ministro do Ambiente e Acção Climática fosse exposta publicamente.

As centrais a carvão do Pego e de Sines são responsáveis por até 20% das emissões nacionais de gases com efeito de estufa. O seu encerramento é um passo em frente na efectiva descarbonização. O Plano Nacional de Energia e Clima (PNIEC) e o Roteiro para a Neutralidade de Carbono 2050 (RNC2050), que usam como base dos seus cálculos o ano de 2005, pico de emissões nacionais, fazem um golpe de judo nas metas climáticas ao prometerem um corte de 45 a 55% das emissões, fazendo com que o corte real seja de apenas 35% (tendo como base as emissões de 2016). Além disso, omitem futuros projectos, como novos aeroportos e expansões portuárias. Os cortes reais de emissões, implícitos no encerramento das centrais a carvão, são a chave do avanço, ao contrário de declarações vagas e magia contabilística, mas há ainda pontas soltas.

O programa do Governo continua a apostar no comércio europeu de emissões, uma fraude cuja responsabilidade na redução de emissões é mínima, se alguma. A redução de emissões na Europa fez-se à conta da deslocalização das suas fábricas para outros países, principalmente para a China, para depois importar as manufacturas e os produtos industriais, um truque contabilístico que na verdade faz aumentar as emissões globais, imputando à China as emissões do consumo europeu. Por aí não vamos a lado nenhum.

Ficam por responder questões centrais neste processo: o que vai acontecer às pessoas que trabalham em Sines e no Pego? Não houve qualquer referência por parte do primeiro-ministro a estes trabalhadores. Ou o processo de descarbonização é uma transição justa que inclui os impactos sociais da modificação económica, ou será um processo anti-social e anti-popular, quando ele é o contrário disso e a única ferramenta para evitar o colapso climático.

É necessário começar imediatamente a requalificação profissional das centenas de trabalhadores de Sines e do Pego. Estes devem ter prioridade de contratação em todos os novos postos de trabalho associados à instalação de mais 2 gigawatts de energia solar nos próximos dois anos, na melhoria da interligação eléctrica, no reforço dos parques eólicos, nas renováveis offshore e nas smartgrids. Os trabalhadores mais velhos devem ter a possibilidade de reforma antecipada e os trabalhadores precários, mantidos à margem pelas empresas de trabalho temporário, devem ser integrados nesta transição.

Tal como propõe a campanha Empregos para o Clima, pelo menos um dia da semana de trabalho destas pessoas tem de ser dedicado a esta requalificação sem qualquer penalização salarial.

Importa finalmente saber se não haverá substituição da energia eléctrica do Pego ou Sines por electricidade de origem fóssil, com acréscimo de uso das centrais a gás (que também têm de fechar brevemente) ou vinda de Espanha ou Marrocos. Para garantir uma descarbonização real, o Estado deve deixar de titubear à volta do problema: é preciso uma produtora pública de electricidade renovável, deixando de alimentar a fantasia de que os mercados estão a resolver ou sequer podem resolver a crise climática.

A EDP está em liquidação dos seus activos em Portugal – e é também no âmbito desta realidade que a central de Sines será encerrada. A nacionalização desta empresa é um imperativo perante a ameaça clara de desmantelamento e a necessidade da transição energética justa. A descarbonização da economia precisa de planeamento e não existe outra ferramenta de planeamento no curto prazo que não seja ter empresas públicas com garantias de controlo da origem da energia e distribuição adequada para as reais necessidades sociais. Para isso é óbvio que as regras da “competitividade” do capitalismo têm de ser desmanteladas para construir uma economia justa, estacionária e redistributiva que trave o colapso climático. O movimento pela justiça climática tem de continuar a construir a força e as ideias políticas para o futuro, atando as pontas soltas.

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